Capitalização de Juros

Supremo Tribunal Federal está prestes a decidir sobre juros compostos

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7 de agosto de 2014, 6h39

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

O plenário do Supremo Tribunal Federal deverá decidir em breve se a norma que permite a capitalização de juros em intervalos inferiores a 12 meses guarda ou não conformidade com a Constituição. Qualquer que seja a decisão, ela terá consequências práticas importantes, as quais são aqui analisadas.

Os antecedentes
Em setembro do ano 2000 o Partido Liberal (hoje Partido da República, resultado de fusão com o Prona) deu entrada no STF de Ação Direta de Inconstitucionalidade (2.316) visando suprimir os efeitos do artigo 5º da Medida Provisória 1.963, então na sua versão 22. A MPV, adotada inicialmente em 1998 com número 1.782 e reeditada muitas vezes (adotando na sequência os números 1.907, 1.963, 2.087 e 2.170), dispunha sobre “a administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional” e matérias afins.[1]

Dito artigo 5º havia sido enxertado pelo Poder Executivo na versão 17 da MPV (março de 2000) e dispunha que “Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.” O parágrafo único disciplinava a transparência de tais operações.

Na exposição de motivos o ministro da Fazenda, Pedro Malan, explicava que o funcionamento de um mercado de capitais moderno requeria flexibilidade das taxas de juros e faculdade de capitalizar juros em operações ativas e passivas. Ambas capacidades eram negadas pela Lei de Usura (Decreto 22.626 de 1933). Em particular, a proibição de contar “juros de juros” havia sido afirmada pelo STF em 1963 em termos claríssimos: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada” (Súmula 121).

A Lei de Reforma Bancária (4.595 de 1965), reconhecia o ministro, havia liberado as taxas de juros praticadas por instituições financeiras. Tanto que o STF adotara, em 1976, a Súmula 596 do seguinte teor: “As disposições do Decreto 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional”. Mas a vedação à capitalização em períodos inferiores a um ano permanecia inabalada.

Havia, portanto, um vácuo legal entre o que o mercado amplamente praticava —inclusive no crédito de rendimentos às cadernetas de poupança e no débito de juros aos cartões de crédito — e o que a lei permitia fazer no mês, trimestre ou semestre.[2] O artigo 5º vinha preencher essa lacuna.

O ataque à capitalização
Alto lá!, diz a ADI, modus in rebus! Não através de medida provisória, que precisa passar nos testes de relevância e urgência, ausentes neste caso. Para adotar capitalização em períodos inferiores a um ano haveria que recorrer ao processo legislativo normal. Ademais, a regulação de mercado de capitais só poderia ser feita por lei complementar, não via lei ordinária.

Igualmente importante, aduz a peça inicial de ADI, falta mérito à proposta de “capitalização de juros, reivindicação antiga das instituições financeiras”. “É a cobrança de juros dos juros, por mais de um século proibida pelo nosso ordenamento jurídico, mas agora imiscuída sorrateiramente no menos democrático dos instrumentos legiferantes”. “Os efeitos dessa prática tão nefasta e onerosa são quase incompreensíveis para o homem médio e dificilmente dicerníveis [sic] de uma somatória complexa, que constitui quase prestidigitação de números…”

Ao invés de usarem juros simples, “As instituições financeiras… procedem complexos cálculos financeiros, geralmente convertidos em índices multiplicadores após a resolução de longas fórmulas matemáticas…” “Em suma: um empréstimo com juros lineares é muito mais barato do que um empréstimo com juros capitalizados”. … “Cobrar juros de juros representa cobrar juros de um montante que a instituição financeira não emprestou”. … “O enriquecimento gerado pela admissão desse critério, portanto, é evidente, e está mais para a usura e desrespeito ao mínimo direito do consumidor…” Não há razão, pois, para alterar a Lei da Usura.

Alguns pontos para reflexão
Os argumentos sobre a substância da proposta, reproduzidos acima de maneira sucinta, se lastreiam em teses que apelam ao senso comum mas dificilmente passam pelo crivo da comprovação. Dado que aqui não cabe fazer demonstrações extensas, oferecem-se apenas elementos para reflexão. Em particular:

(a) “Juros simples são mais fáceis de calcular que juros compostos”. Sim, no caso de empréstimo feito por curto tempo e sem desembolsos ou pagamentos parcelados. Nos empréstimos que envolvem pagamentos em prestações periódicas (mensais, por exemplo) o cálculo por juros compostos é mais fácil.

(b) “Um empréstimo a juros simples é mais barato que um empréstimo a juros capitalizados”. Não é certo. O que dirá se um empréstimo é mais barato ou mais caro que outro é a relação entre as taxas de juros deles, não se os juros são calculados por um sistema ou por outro. Nenhuma pessoa sensata escolheria pagar juros simples de 1% ao mês, que ao fim do ano somam 12%, se tiver opção de pagar juros de 0,7% ao mês que, capitalizados, resultarão em juro anual de 8,7%.

(c) “Juros compostos são quase incompreensíveis para o homem médio”. Certo, mas também o são os juros simples aplicados a uma operação complexa. Não se pode esperar que o homem médio conheça matemática financeira. Mas até um homem inculto sabe o valor do financiamento que recebe e o sacrifício que terá que fazer para pagar as prestações avençadas.

(d) “Juros dos juros estão proibidos há mais de um século.” Na verdade, a proibição de capitalizar, que existiu entre 1850 (Código Comercial) e 1916 (Código Civil) e a partir de 1933 (Lei de Usura), ressalvava a capitalização anual. E até a capitalização intra-ano tem sido facultada por leis posteriores a muitas operações setoriais.

(e) “Capitalizar juros implica cobrar juros de quantia que a instituição financeira não emprestou.” Compor juros é adicioná-los ao capital (onde renderá mais juros). Mas o acréscimo ao capital só se pode fazer em relação aos juros que venceram e que, por acordo, ao invés de pagos são acrescidos ao principal. Os juros vencidos e não pagos (por acordo, não confundir com mora), constituem-se, portanto em novo empréstimo — sujeito a juros.

Onde a crítica da ADI é válida é em relação ao instrumento utilizado. Se fossem submetidas com rigor às peneiras da relevância e da urgência, poucas dentre as milhares de MPVs restariam de pé. Elas são herdeiras diretas dos decretos-lei tão utilizados no passado pelos regimes autoritários; o que vemos é governo após governo não se pejar de atrofiar o Legislativo ao usar e abusar do instituto da medida provisória.

O Supremo, por seu turno, tem sido extremamente cuidadoso e evitado sobrepor seus próprios conceitos de relevância e urgência. A prudência está informada pelo objetivo de preservar a independência dos poderes, pedra de toque de nossa democracia.

A reação do Judiciário
Que os argumentos da ADI foram poderosos não resta dúvida a julgar pela disposição manifestada por vários ministros do STF de conceder medida liminar para suspender a aplicação da MPV até o julgamento final. Assim votou o relator, ministro Sydney Sanches, e como ele os ministros Carlos Velloso, Ayres Britto e Marco Aurélio. Pelo indeferimento do pedido de cautelar votaram os ministros Menezes Direito e Carmen Lúcia. Portanto, dos seis votos dados, quatro são pelo deferimento e dois contrários.

Em novembro de 2008 o julgamento da liminar foi suspenso para aguardar quorum completo. Visto que o ministro Gilmar Mendes se declarou impedido, faltam votar quatro ministros: O sucessor do ministro Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Rosa Weber e o relator Celso de Mello. Não faria muito sentido conceder, agora, a liminar, pois a motivação da urgência se haverá diluído nos 14 anos que decorreram desde a solicitação.

Mais importantemente, a concessão de liminar pode ter um impacto mais negativo sobre a economia que a decisão definitiva, qualquer que seja ela. É que as instituições financeiras assinam milhares de contratos, diariamente, alguns deles de longo prazo e envolvendo capitalização. Uma possível mudança de regras, sem que se saiba qual será o regime definitivo, resultaria em incerteza e volatilidade nos mercados financeiros. Nesta matéria deve-se seguir o método recomendado no corte da cauda do cachorro: deve ser feito de uma só vez, sem gradualismos.

Julgado o pedido de liminar, o STF — na sua composição atual, riscada a história dos votos dados à liminar — estará em condições de julgar o mérito da ADI. No processo de decisão, os ministros se depararão com o enorme hiato que existe entre o que reza a lei e o que fazem pessoas, empresas e instituições financeiras, inclusive as mantidas pelo poder público. Terão, na prática, que optar entre convalidar prática reiterada ou impor estruturas radicalmente diferentes às existentes hoje nas relações de financiamento.

De qualquer forma, a impetração da ADI e a incapacidade do Judiciário de dar-lhe solução ágil, fez crescer enormemente o número de demandas. A morosidade processual em todas as instâncias e a falta de jurisprudência estável incentivou a litigação como maneira de evitar, reduzir ou pelo menos postergar pagamentos contratados. Vicejaram as bancas especializadas e os peritos, estes para esmiuçar contratos em busca do vírus da capitalização. A proliferação de lides foi apropriadamente chamada por magistrado carioca de demandismo.

Com a responsabilidade de guardião da consistência jurisprudencial no âmbito federal, o Superior Tribunal de Justiça tem-se recusado a invadir a competência privativa do STF e prejulgar constitucionalidade. Matérias concernentes à MPV referida são, assim, resolvidas de acordo com a lei posta.

A cautela do STF não é, entretanto, observada por tribunais regionais e estaduais. Os chamados Órgãos Especiais, e até mesmo câmaras de Tribunais de Justiça, têm declarado inconstitucional, incidentalmente em casos concretos, a MPV 2.170-36 e assim negado seus efeitos.

Como é impossível antecipar a decisão do STF no julgamento da ADI 2316, consideremos dois cenários possíveis.

Cenário 1: O pedido de declaração de inconstitucionalidade não é acolhido
Neste caso, a validade da MPV 2.170-36 é confirmada. As instituições financeiras poderão praticar a capitalização de juros em instrumentos de captação de recursos e financiamentos em intervalos inferiores a um ano.

Ou seja, continuaríamos na situação atual de liberalização tímida e imperfeita. Bancos podem praticar capitalização mensal ou trimestral (o que é correto) mas não empresas construtoras que vendem e financiam diretamente seus imóveis. O crédito direto ao consumidor terá obrigatoriamente que ser canalizado através de instituição financeira, como hoje. Tampouco poderá ser praticada a capitalização nos mútuos entre empresas. Entre pessoas físicas, nem pensar.

Dificilmente o STF aceitará, no julgamento desta ADI, a tese de que a matéria tratada pela MPV guerreada requereria lei complementar. Isso porque os tribunais maiores, em outras demandas, já afastaram a premissa. Se for assim, o julgamento se centrará no atendimento ou não dos requisitos de relevância e urgência para edição da medida.

Sob o cenário 1 de decisão, ficarão (como hoje) ao abrigo da lei apenas aqueles setores e operações favorecidos pelo sistema político: operações de instituições financeiras e operações com cédulas de crédito de setores selecionados. No casuísmo mais recente, a lei do programa Minha Casa, Minha Vida (ver art. 75 da Lei 11.977 de 2009) permitiu a capitalização mensal em financiamentos do Sistema Nacional de Habitação. Mensal pode, trimestral e semestral não pode!

Em resumo, continuaremos a ter, em matéria de capitalização de juros, não um sistema racional mas um arquipélago de possibilidades. Cada vez que seja necessário viabilizar um novo instrumento financeiro surgirão MPVs ou leis que expandam a lista de exceções.

Cenário 2: O pedido de declaração de inconstitucionalidade é acolhido
As implicações neste caso dependerão de como o STF mandaria aplicar a decisão. Se retroativamente (conceito ex tunc), geraria uma avalancha de ações judiciais, pois todos os portadores de cartões de crédito e clientes de cheque especial teriam em princípio elegibilidade por devoluções de juros pagos (talvez nos últimos 20 anos se considerado o tempo normal de decadência das ações civis) — a crescidos naturalmente de mora e ajuste monetário. O mesmo se aplicaria a muitos outros tipos de operação de crédito inclusive o financiamento direto ao consumidor.

Ainda que o STF, ao decidir conforme cenário 2, venha a adotar não o conceito ex tunc mas alguma forma de modulação em conceito ex nunc (em que a decisão não se aplica a fatos anteriores a certa data), é de se esperar uma profusão de novas ações. Essas ações visariam não apenas reparar o uso da capitalização mencionada no parágrafo anterior, agora proibida sob o cenário 2, mas seriam instigadas pelo fato de que existe uma lenda urbana, defendida ardorosamente por alguns e adota acriticamente por muitos magistrados, de que os planos de amortização envolvem juros compostos, quer adotem eles a tabela conhecida como Price (de prestações constantes) ou o plano SAC (Sistema de Amortização Constante).

Mas é claro que o mundo não iria parar com o cenário 2. Os contratos seriam modificados (com complexidade adicional, é claro) tal que a aplicação de juros simples (juros não capitalizados), explícitos, gerem o mesmo resultado financeiro que o uso atual de juros compostos. As instituições financeiras logo criariam maneiras de oferecer produtos de investimento (por exemplo, através de resgates e reaplicações automáticos) tal que se produzisse o efeito de capitalização de juros com instrumentos que são formalmente de juros simples.

O comércio, por sinal, não está a esperar a decisão do Supremo. Já se antecipou. Basta entrar nos sites das Casas Piauí ou do Ponto Quente, por exemplo, para ver que pode-se comprar aquele TV LED de 32 polegadas (onde anda nosso sistema métrico decimal?!) por R$1,2 mil em 12 prestações mensais iguais de R$100, sem juros! Nada de juros compostos, também nada de juros simples: totalmente sem juros.

Ou melhor, “sem juros”, já que os juros verdadeiros ficam escondidos no preço. A primeira vítima da pretensão de controlar a forma de contagem dos juros, ou de limitá-los, é a transparência. A segunda é o próprio consumidor, que acaba pagando, quando os juros são ilegais, juros disfarçados mais elevados.

A melhor disciplina dos juros
Como vimos acima, quer decida conforme cenário 1 (repelindo a ADI) ou conforme cenário 2 (acolhendo a ADI), o STF terá chegado a solução prenhe de problemas. Os problemas não são decorrentes da decisão em si mesma, mas da legislação inadequada que rege os juros nas relações financeiras.

Tudo considerado, talvez o cenário 2 de decisão seja o melhor para o País. Pois isso criará tanto tumulto na economia que forçará uma análise séria do assunto. E talvez escapemos, numa reforma legislativa, do modo de pensar tacanho e maniqueísta que vê, na questão dos juros, “consumidores bonzinhos e inocentes” enfrentando “rentistas e banqueiros maldosos”.

Toda a desordem jurídica que enfrentamos em matéria de juros surge da Lei de Usura, introduzida pelo populismo getulista em 1933 (Governo Provisório). Antes disso a matéria era regulada pelo Código Civil de 1916, cujo artigo 1.262 dispunha: “É permitido, mas só por cláusula expressa, fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. Esses juros podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal (art. 1.062), com ou sem capitalização.”

Tão claro, simples e justo! Mas tão difícil de adotar, como é difícil alterar todo dispositivo legal de caráter populista, mesmo aqueles que atrasam o desenvolvimento do País e a prosperidade de seu povo.

Por juros mais baixos
Não interessa aos poupadores, aos operadores econômicos, às instituições financeiras se os juros são capitalizados ou não. O que interessa a todos é o nível da taxa de juros que pagam ou recebem. E também interessa a todos, inclusive os não envolvidos na operação financeira, que haja plena transparência.

Os juros no Brasil são excessivamente elevados. Em cartões de crédito, o juro mensal tipicamente excede o juro anual de cartão de crédito em economias avançadas. No cheque especial, é taxa é algo menor, mas ainda muito elevada. As operações mercantis têm juros incompatíveis com a margem de lucro propiciada por muitos negócios. As grandes empresas, amigas do rei, obtêm linhas de crédito favorecido, mas empresas médias e pequenas são excluídas dessas benesses. Uns são forçados a pagar mais para que outros paguem menos.

O Banco Central faz, há anos, estudos sobre o spread bancário, mas não se vê a tradução das conclusões desses estudos em medidas que beneficiam o consumidor através de taxas menores. Talvez o setor bancário seja em boa medida excessivamente concentrado ou oligopolizado e assim logre obter rendas extraordinárias através de spreads elevados. Se for assim, haveria que adotar medidas que aumentassem a concorrência no setor.

O tribunal da concorrência brasileiro, Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) não tem jurisdição sobre o setor financeiro e o Banco Central tende a ser leniente e pouco transparente nas suas ações. É possível que haja uma contradição na missão do Banco Central, pois é muito difícil a qualquer instituição fomentar e ao mesmo tempo controlar dado setor de atividade. Talvez fosse o caso de retirar do Bacen e atribuir a uma nova agência a função de fiscalizar o setor financeiro.

Mas também é preciso desjudicializar as relações financeiras. Deveriam subir ao Judiciário apenas os casos de violação da confiança que já estão tipificadas no Código Penal e no Código de Defesa do Consumidor.


[1] A última versão da MPV recebeu número 2.170-36 e encontra-se ainda em vigor mercê da Emenda Constituição 32 de 2001, cujo artigo 2º estendeu indefinidamente a vigência das MPVs em ser à época da promulgação.

[2] A capitalização de juros com periodicidade anual já estava abrigada na legislação. Além disso, legislação específica há havia removido a restrição de capitalização em períodos menores para certos títulos de crédito rural, industrial, bancário, comercial e de serviços.

Autores

  • Brave

    é especialista em política tributária, é doutor em Economia pela University of Rochester e pesquisador sênior do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Escola de Direito de São Paulo (Direito GV).

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