Atos de corrupção

Panorama da Lei 12.846/2013 em improbidade empresarial

Autor

  • Valter Foleto Santin

    é promotor de Justiça do MP-SP mestre e doutor em Direito pela USP professor do programa de Mestrado em Direito da UENP e professor convidado da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisas (GT) Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).

4 de agosto de 2014, 9h51

O combate à corrupção é busca incessante das instituições públicas, para fiscalização e persecução de crimes e infrações administrativas e civis, que dependem de apoio normativo para o desempenho da tarefa. A Lei 12.846/2013, vigente desde janeiro de 2014, é um reforço importante para desestimular condutas ilícitas de pessoas jurídicas em desfavor de entidades públicas, seguindo algumas anotações.

Improbidade empresarial. Não se trata da única “Lei Anticorrupção”, pois faz parte de um conjunto de diplomas legais contra corrupção e ilicitudes que vitimizam a Administração Pública. Para combater atos de corrupção, há tipificações penais (corrupção passiva e ativa, arts. 317 e 333, do Código Penal), por improbidade administrativa (Lei 8.429/1992), administrativas, civis e criminais por ilicitudes em licitações (Lei 8.666/1993), dentre mais.

Assim, a melhor denominação para a nova lei seria “Lei de Improbidade Empresarial”, por conter condutas administrativas e civis de preservação da probidade de empresa ou pessoa jurídica de qualquer formato jurídico (art. 1º, parágrafo único) em seu relacionamento com a Administração Pública, semelhante ao sistema para servidor público (Lei 8.429/1992).

Concurso em improbidade administrativa. A empresa já podia responder por improbidade administrativa (enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e violação aos princípios da Administração), quando recebesse benefício ou em concurso de pessoas com servidor público (art. 3º, da Lei 8.429/1992), este agente necessário (art. 1º, da mesma lei). Agora, mesmo sem atuação ilícita de agente público, a empresa ou pessoa jurídica pode ser sancionada pela sua própria conduta individual, sem prejuízo da normal aplicação das Leis 8.429/1992 e 8.666/1993, em harmonia.

Atos lesivos de pessoa jurídica. A Lei 12.846/2013 enfoca a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas, por atos lesivos de interesse ou benefício societário, contra Administração Pública nacional e estrangeira, consistentes em atentados contra o patrimônio público, os princípios da administração pública e os compromissos internacionais (art. 5º).

Os atos lesivos ao patrimônio público dizem respeito à atuação ilícita direta ou indireta de pessoa jurídica e seus dirigentes ou colaboradores, como corrupção ativa, financiamento e subvenção de forma ilícita, uso de interposta pessoa (chamada de “laranja”), ajuste, fraude ou frustração em licitação e contrato e suas alterações, inclusive por criação fraudulenta de empresa, e dificultação de investigação e fiscalização pelos órgãos públicos. Os princípios da Administração Pública constam do art. 37, da Constituição Federal (legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência e publicidade), além de outros princípios. Os compromissos internacionais são as convenções, tratados e acordos, destacando as Convenções de Paris (Decreto 3.678/2000) e de Mérida (Decreto 5.687/2006), que cuidam de combate à corrupção de servidor público, estímulos para a novel lei.

Inovações e peculiaridades. O novo diploma legal previu algumas inovações e peculiaridades jurídicas para prevenção e repressão de condutas ilícitas envolvendo pessoas jurídicas. Podem ser citadas: responsabilidade objetiva, cumulação de responsabilidade, sanções administrativas e civis e acordo de leniência.

Responsabilidade objetiva. A responsabilidade objetiva da pessoa jurídica é prevista no art. 1º e consiste na possibilidade de reprovação e aplicação de sanção pela ocorrência de ato lesivo e dano à entidade pública, independentemente de prova de culpa ou dolo. Tal modalidade de responsabilidade (objetiva) não é novidade e já constava de infrações por serviço de transporte (presunção de culpa, art. 1º, da Lei das Estradas de Ferro, Decreto 2.681, de 1912), revigorado pelo ordenamento civil (art. 734, do Código Civil de 2002); permanece em caso de lesão às relações de consumo (responsabilidade pelo fato do produto e serviço, arts. 12 a 14, do CDC), danos ambientais e nucleares.

Porém, em relação à responsabilidade do dirigente ou administrador da sociedade empresarial, que é cumulativa e não excludente de coautores ou partícipes (art. 3º, caput), a sanção depende da sua “culpabilidade” (art. 3º, § 2º), de alguma avaliação subjetiva da conduta e da proporção da atuação pessoal para a dosimetria.

Sanções. As sanções previstas são administrativas (multa civil de 0,1% a 20% ou de 6 mil a 60 milhões de reais e publicação de extrato da decisão) e civis (perdimento de bens, suspensão e interdição de atividades, dissolução compulsória e proibição de receber incentivos e benesses, de 1 a 5 anos, art. 19). A maioria das sanções era prevista na Lei 8.429 (arts. 12); a dissolução da pessoa jurídica, por atividade ilícita ou imoral, já constava dos art. 670 do Código de Processo Civil, art. 115 (a contrario sensu), da Lei 6.015/1973, Lei dos Registros Públicos, e arts. 50, 51, 1034, II, e 2034 do CC de 2002 (antes no art. 21, III, do CC de 1916). A dissolução compulsória exige comprovação de uso habitual para atos ilícitos e sua constituição para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos (art. 19, § 1º, I e II).

Dosimetria. Para a dosimetria da sanção devem ser verificadas as peculiaridades, gravidade e natureza das infrações, com destaque para a vantagem do infrator, consumação, grau de lesão, efeito negativo, situação econômica, cooperação na apuração, existência de mecanismos internos de integridade da empresa (compliance) e valor dos contratos. Os mecanismos internos para cumprimento de normas legais serão regulamentados pelo Executivo, por delegação instrumental (art. 7º, parágrafo único), podem ser fatores essenciais para evitar a própria prática ilícita, além de considerados para minimização da pena. Várias empresas já possuem código de ética empresarial, de compliance, e a nova lei deve estimular a criação e aumento de estrutura de integridade interna.

Desconsideração da pessoa jurídica. A atuação ilícita pode determinar a necessidade de desconsideração da pessoa jurídica, por abuso do direito ou confusão patrimonial (art. 14), originária da teoria disregard of legal entity, já possível ao fornecedor na relação de consumo (art. 28, Lei 8.078/1990, CDC) e à pessoa jurídica em geral (art. 50, do CC de 2002).

Leniência. O acordo de leniência pode ocorrer com pessoas jurídicas que colaborem efetivamente com a investigação e o processo, na identificação de envolvidos e obtenção célere de informações, desde que seja a primeira interessada, cesse completamente envolvimento na infração, admita a conduta, e coopere plena e permanentemente na apuração dos fatos (arts. 16 e 17). A avença pode prever dispensa de publicação de condenação, exclusão de proibição de recebimento de incentivo e benefício da Administração e isenção ou redução de multa. A possibilidade deste acordo já é prevista na atuação do CADE, por infração à ordem econômica, competência mantida (art. 29, da Lei 12.846/2013). Também já consta da Lei 12.850/2013 a possibilidade de colaboração premiada (art. 4º) para agente que auxiliar na investigação e no processo criminal para combate de organização criminosa.

Compatibilidade e independência. A responsabilização judicial é compatível e independente da administrativa, sem exclusão (art. 18), por diferença de atuação de esfera estatal. Chama atenção a possibilidade de o Ministério Público pedir em Juízo sanção administrativa em conjunto com as sanções civis, em caso de omissão da Administração na persecução administrativa (art. 20), esta fora da sua atuação tradicional.

Legitimidade ativa. A legitimidade ativa específica é apenas dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e do Ministério Público, de forma semelhante aos legitimados para a ação de improbidade administrativa (art. 17 da Lei 8.429/1992). As associações não estão autorizadas a atuar, diferentemente da defesa de direitos coletivos e difusos tradicionais (art. 1º, da Lei 7.347/1985 e art. 82, CDC).

Rito. O rito processual para a ação por “responsabilização judicial” é o mesmo da ação civil pública (Lei 7.347/1985), mais uma espécie de ação coletiva, de prescrição quinquenal. Ele traz uma grande vantagem para a celeridade e eficiência processual, ao evitar a demorada e pouco eficiente defesa preliminar ou manifestação escrita (art. 17, § 7º, da Lei 8.429/1992). Se não houver razão fática ou jurídica, o juiz pode indeferir a inicial (art. 295, do CPC) ou extinguir o processo sem julgamento de mérito (art. 386, CPC).

Reparação de danos. A falta de previsão específica da reparação de dano como sanção não impede a indenização, pois é implícita e harmônica com o próprio espírito da lei de reprovação de atos lesivos de pessoa jurídica, por obrigação tradicional do causador de reparar o dano por ato ilícito, além de ações com tais objetivos (art. 3º da LACP e art. 5º da LIA). A própria Lei 12.846 prevê a certeza da obrigação de reparar integralmente o dano pela condenação (art. 21, parágrafo único), um dos requisitos para a exequibilidade do débito (certeza, liquidez e exigibilidade). A indenização deve beneficiar o órgão público prejudicado.

A novel lei provocou expectativas de grandes alterações, mas ela é apenas mais um instrumento para a melhoria do combate à corrupção, da preservação do patrimônio público e do atendimento aos princípios da Administração Pública, em conjunto com o Código Penal e as leis de ação civil pública, improbidade administrativa e de licitação, tudo para prevenção e repressão de atos de corrupção e outras ilicitudes praticados por pessoa jurídica em desfavor de entes públicos, esperança da sociedade.

Autores

  • Brave

    é professor do programa de Mestrado em Direito da UENP (Jacarezinho/PR), doutor em Processo (USP), Promotor de Justiça em São Paulo e líder do GP Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).

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