Dívida com erário

Devedor da Fazenda Pública não pode fazer doação para campanha eleitoral

Autores

  • Allan Titonelli Nunes

    é procurador da Fazenda Nacional e desembargador Eleitoral Substituto do TRE-RJ mestre em Administração Pública pela FGV especialista em Direito Tributário ex-presidente do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).

  • Vladimir Belmino de Almeida

    é advogado assessor legislativo no Senado Federal membro da Comissão Especial de Estudo da Reforma Política do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e membro fundador da Abradep.

2 de agosto de 2014, 7h22

A campanha eleitoral de 2014 começou com intensos debates sobre a influência do poder econômico na política nacional. As críticas aos excessivos gastos de campanha e a influência ilegítima dos doadores na formatação das políticas públicas dos eleitos apresentam-se como vertentes modernas da prática nefasta do “toma lá dá cá”.

Nesse sentido, há diversos estudos demonstrando de maneira clara essa relação de causa e efeito entre a doação e o favor obtido. Podemos citar o livro Em nome das bases: política, favor e dependência pessoal, de Marcos Otávio Bezerra[1], como um dos pioneiros a identificar os meandros do orçamento público e suas formas de contemplar favores àqueles que contribuíram para campanhas eleitorais, cujo exemplo clássico foi o escândalo dos anões do orçamento. Porém, não podemos ignorar que muitas das doações estão revestidas do caráter democrático e republicano, por isso, fundamental separarmos o joio do trigo.

A necessidade de diminuir a interferência do poderio econômico nas eleições talvez seja o grande desafio de uma verdadeira reforma política. Essa, aliás, tem sido a tônica das últimas mudanças na legislação eleitoral, eliminando-se os brindes, showmícios, entre outras medidas, que tiveram como objetivo a diminuição dos gastos de campanha. Não obstante a boa finalidade, as alterações não surtiram os efeitos desejados, posto que a intervenção do dinheiro ainda provoca desequilíbrio no pleito.

Pode-se asseverar que o poder econômico nas eleições é tão grande que a idoneidade do candidato está ligada a um gasto maior do que aquele tido como necessário, o qual já deveria ser considerado um absurdo. Ou seja, se os candidatos fazem gastos tidos como “normais”, se enquadram dentro do padrão da disputa, ao revés, se as despesas eleitorais exorbitam a média, são taxados como “compradores de voto”. O problema é que as despesas naturais para a efetiva disputa já estão exorbitando a realidade, resultando em dispêndio de verdadeiras fortunas para se ganhar uma eleição, o que compromete o pleito na medida em que corrompe a manifestação de vontade do cidadão. Enquanto isso a coerência, a ideologia, as propostas estão cada vez mais escassas, razão pela qual o exercício da política como arte do convencimento está sendo eliminada pelo império econômico.

Tendo como base parte dessa problemática o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.650) questionando a constitucionalidade das normas que permitem/estabelecem: doações por parte de pessoas jurídicas privadas para as campanhas eleitorais; o percentual de 10% dos rendimentos brutos auferidos pelo doador no ano anterior, como limite à doação efetuada por pessoas físicas e ao candidato empregar recursos próprios sem limite específico, submetendo-se apenas ao valor máximo de gastos definido pelo respectivo partido. A ação tem como fundamento, de forma sucinta, uma vez que não é o objeto central da nossa análise, a violação dos princípios constitucionais democráticos e republicanos, bem como afronta a igualdade e proporcionalidade do processo eleitoral, sendo incompatíveis com as respectivas normas Constitucionais.

O Supremo Tribunal Federal já manifestou, por maioria de seus ministros, favoravelmente à tese, (julgaram procedente a ação — alguns acolhendo somente parcialmente os fundamentos — os ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski), cujo pedido de vista do ministro Gilmar Mendes suspende o julgamento até o presente momento.

Contudo, independentemente da inconstitucionalidade a ser declarada das normas atacadas existem outras formas de enfrentar essa influência do poder econômico partindo da realidade fática e ordem jurídica atual. Reportamos, especificamente, à possibilidade de vedação da doação por parte dos devedores do erário (aquelas pessoas jurídicas ou físicas que estão em débito com o Poder Público).

Afinal, qual seria a motivação para um devedor da Fazenda Pública doar para uma campanha eleitoral? Convicção ideológica? Influir nas diretrizes políticas para extinção de seus débitos? Aproveitar-se de modalidades de parcelamentos excepcionais para protrair no tempo, com descontos vultosos, o pagamento de seus débitos com o Fisco? De outro giro, qual será o grau de comprometimento e consciência do candidato eleito em relação às políticas públicas que beneficiem o respectivo devedor/doador?

Aliás, sob a perspectiva dos parcelamentos, temos visto, recorrentemente através da imprensa, que diversos setores da economia nacional ou grupos organizados pressionam frequentemente o governo para que sejam editados parcelamentos objetivando regularizar sua situação fiscal, com descontos de toda a espécie. No âmbito federal foram mais de dez parcelamentos excepcionais (Refis 1, PAES, PAEX, Simples Nacional, Funrural, Timemania, Refis da Crise, entre outros) nos últimos 20 anos, e mesmo assim, em regra geral, os devedores não conseguiram se organizar para regularizar a situação fiscal perante a União. Sem falar que em grande parte desses parcelamentos pagam-se quantias módicas (no Refis da crise pagou-se entre R$ 50 e R$ 100) por um período significativo de tempo até que os débitos fiscais sejam consolidados (quando há a apuração dos débitos totais e o número de parcelas restantes, gerando os valores reais a serem pagos), momento em que os aderentes deixam de efetuar seus pagamentos, sendo, assim, excluídos do parcelamento mais de 50% daqueles, confirmando-se o intento estritamente protelatório da adesão.

Esses parcelamentos cíclicos, quase que concomitantes às eleições, provocam, ainda, o aumento da sonegação, na medida em que projetam “planejamentos tributários” em que os sonegadores podem, de tempos em tempos, regularizar sua situação fiscal, protraindo o pagamento dos débitos. Nesse contexto, pode-se tomar como referência um dos últimos parcelamentos excepcionais editados pelo Governo Federal, o Refis da Crise. Assim, se um devedor tivesse adotado a prática deliberada de sonegar, aplicando o valor do tributo não pago em renda fixa ou outro investimento similar, e tivesse optado pelo referido parcelamento adotando o pagamento à vista, com desconto de multa, juros e encargos, teria tido lucro com tal operação.[2]

Todavia, inobstante essas dúvidas não podemos deixar de perquirir que um devedor não pode doar para campanhas eleitorais, dispondo de seu patrimônio, em detrimento do pagamento de seus compromissos. Os bens do devedor constituem garantia ao recebimento do crédito, nos termos do artigo 591 do CPC, o qual dispõe que “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, …”. Logo, não pode dispor de seu patrimônio livremente (no caso em debate doar) sem ferir os direitos fundamentais do credor (na hipótese a Fazenda Pública). Dessa forma, aquele que de qualquer forma, esvazia o seu patrimônio sabendo inadimplente com suas obrigações fiscais comete fraude, podendo, inclusive, configurar fraude contra credores (artigos 158 a 165 do CC) ou fraude à execução (artigo 593 do CPC), o que poderá determinar, como consequência, a anulação do negócio jurídico realizado (doação).

Objetivamente, o ordenamento jurídico brasileiro tem entre suas finalidades justamente evitar a disponibilidade econômica, onerosa ou não, do patrimônio do devedor em prejuízo aos seus credores. No caso em análise apresentar-se-ia uma hipótese ainda mais gravosa para o credor/Fazenda Pública, uma vez que haveria uma disponibilidade não onerosa do patrimônio do devedor (doação), na primeira modalidade persecutória, que é o dinheiro, em detrimento do pagamento de seus débitos fiscais. Enfim, se quem deve doa dinheiro é porque tem obrigação de ter mais para saldar suas dívidas, sob pena de constituir verdadeira lesão aos cofres públicos, tendo o Estado dever de zelar por seu patrimônio, já que de toda sociedade.

Isso porque, para a concretização dos interesses da sociedade o Estado necessita captar, gerir e executar os recursos públicos. Os objetivos e atividades a serem exercidas pelo Estado carecem da arrecadação de recursos, a qual não se esgota em si mesma, sendo um instrumento para a concretização daqueles. Para a construção de um país mais igualitário, diminuindo a desigualdade social existente, é primordial que todos contribuam, na medida de suas possibilidades. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir com suas obrigações. Por essas razões, o Constituinte incumbiu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a arrecadação dos tributos e demais receitas, não pagas e inscritas em dívida ativa da União. Assim, o Procurador da Fazenda Nacional é o agente capaz de garantir a isonomia entre o devedor e o cidadão que paga seus tributos, através da cobrança dos créditos da União.

Com base no fundamento desenvolvido nos parágrafos anteriores, assim como na indisponibilidade do interesse público e no zelo pelo patrimônio público, o legislador vedou a contratação com o respectivo Ente Público no caso de, pessoas físicas ou jurídicas, em débito com o fisco, exigindo, como prova da idoneidade, a certidão negativa de débito ou certidão positiva com efeitos de negativa, sendo devedores todos aqueles que não ostentarem tais certidões. O artigo 195, parágrafo 3º, da CF/88 proíbe a contratação com o Poder Público, ou dele receber benefícios, incentivos fiscais ou creditícios, se estiver em débito com o sistema da seguridade social; o artigo 193 do CTN prevê que:

Salvo quando expressamente autorizado por lei, nenhum departamento da administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, ou dos Municípios, ou sua autarquia, celebrará contrato ou aceitará proposta em concorrência pública sem que o contratante ou proponente faça prova da quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública interessada, relativos à atividade em cujo exercício contrata ou concorre.

De igual modo o artigo 47, inciso I, alínea ‘a’, da Lei 8.212/91 e o artigo 27, IV, da Lei 8.666/93 exigem a prova da regularidade fiscal para contratar com a Administração Pública. Essas normas autorizam uma interpretação analógica para concluir que se o devedor não pode contratar com o Poder Público, quanto o mais participar ou interferir no processo eleitoral, inclusive, utilizando-se de parte dos fundamentos desenvolvidos na ADI 4.650. Ou seja, somente alcançarão a proibição os débitos tributários definitivamente constituídos e que não estejam sob efeito de nenhuma das causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, na forma do artigo 151, do CTN, não gerando quaisquer dúvidas sobre a pessoa física ou jurídica que é devedora da Fazenda.

Soma-se ao exposto, a violação ao princípio da moralidade, insculpido no art. 37, da CF/88, uma vez que que não seria probo, ou aceitável sob o ponto de vista ético, deixar de pagar suas obrigações com o Estado e dispor do patrimônio gratuitamente (doação) para interferir no processo democrático de financiamento das eleições.

Para concretização de tal mister seria possível algumas alternativas. A um, medida cautelar ajuizada pelo respectivo Ente juntando a listagem de todos os seus devedores e pedindo: 1) A indisponibilidade cautelar dos valores que forem doados aos candidatos pelos devedores em todas as instituições financeiras; 2) Notificação dos candidatos para que procedam à conferência de qualquer valor depositado por tais devedores, sob pena de bloqueio das doações correspondentes em suas contas de campanha; 3) pedido à Justiça Eleitoral, uma vez que é responsável pela regular prestação de contas dos partidos e candidatos, bem como tem o dever de eliminar práticas que afetem a pars conditio, proibindo a doação por parte desses devedores. A dois, requerimento no bojo do processo de execução fiscal com pedidos similares aos da cautelar, mas tendo como referência um débito específico. A três, ajuizamento de ação popular, com fulcro na lesão ao patrimônio público, tendo em vista a conduta de doar para campanhas eleitorais em detrimento do pagamento dos débitos fiscais, prejudicando toda a sociedade, utilizando, da mesma forma, os pedidos descritos para a cautelar.

A adoção dessas medidas determinarão, a um só tempo, um maior combate à sonegação  (que no ano de 2013 alcançou mais de R$ 502 bilhões, representando uma sonegação de 28,4% da arrecadação, que equivale a 10% do PIB, segundo estudo do Sinprofaz, Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação[3]), evitarão possibilidades de conluios e interferências econômicas dentro do processo eleitoral, em prejuízo à manifestação de vontade do eleitor, à democracia e ao patrimônio brasileiro, afastando, cada vez mais, práticas nefastas da política nacional.


[1] BEZERRA, Marcos Otávio. Em nome das bases: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999.

[2] PLUTARCO, Hugo Mendes. Tributação, assimetria de informações e comportamento estratégico do contribuinte: uma abordagem juseconômica. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2012, 125 f.

[3] Disponível em: <http://www.quantocustaobrasil.com.br/artigos/sonegacao-no-brasil-uma-estimativa-do-desvio-da-arrecadacao-do-exerc%C3%ADcio-de-2013> Acesso em: 29.07.14.

Autores

  • Brave

    é procurador da Fazenda Nacional, membro da Comissão Nacional da Advocacia Pública da OAB, ex-presidente do Fórvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.

  • Brave

    é advogado, conselheiro federal suplente pela OAB-AP, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-AP, secretário adjunto do Colégio de Presidentes de Comissões Eleitoral do CFOAB e ex-diretor presidente da Companhia de Trânsito e Transporte de Macapá.

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