Insegurança jurídica

Criminalidade econômica traz desafios para dogmática penal

Autor

  • Heloisa Estellita

    é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa na mesma instituição.

30 de abril de 2014, 14h52

Spacca
Em 2012, Silva Sánchez publicou na Revista Brasileira de Ciências Criminais um texto sobre teoria do delito e Direito Penal Econômico[1], no qual identifica os problemas dogmáticos que a criminalidade de empresa coloca para os paradigmas clássicos da teoria geral do delito, e aponta que essas dificuldades já estão sendo superadas na práxis judicial sem um correlato suporte consistente por parte dos estudiosos. No Brasil, a situação não é diferente, talvez seja ainda mais grave, especialmente tendo em vista as dimensões continentais de nosso país e o elevado número de litígios penais, tudo a produzir um emaranhado de decisões contraditórias. Quem tiver a curiosidade de acompanhar o dia a dia dos tribunais superiores nos temas a seguir mencionados logo se dará conta do quanto são volúveis as soluções, algo que, além de gerar desigualdade e insegurança aos jurisdicionados, em vários casos implica algo mais nefasto: a violação do princípio da legalidade. E é aos estudiosos que cumpre, antes dos demais, apresentar soluções sistematicamente coerentes aos problemas jurídico-penais concretos[2], debruçando-se sobre os problemas para lhes apontar as possibilidades de abordagem dentro do sistema jurídico positivo.

O texto de Silva Sánchez apresenta um confronto entre o paradigma clássico e as situações características da criminalidade econômica, para evidenciar as dificuldades de responsabilização penal.

Se, no paradigma clássico, predomina a figura do autor individual, no âmbito da criminalidade econômica ocorre justamente o oposto. A divisão de competências e funções no âmbito da administração de gerência de sociedades empresárias é o ambiente natural no qual se dá a prática de crimes econômicos. Isto implica em fragmentação não só da realização objetiva do tipo penal, mas igualmente da fragmentação da informação dentre as camadas operacionais e gerenciais da empresa, com todas as dificuldades que isso traz para tanto para a imputação do tipo objetivo, como para o do tipo subjetivo[3]. Vários são os atores que aportam sua parcela para que o crime seja cometido e, assim, não só a prática criminosa é fragmentada sob o ponto de vista de sua execução, mas também a informação (o conhecimento) necessário à configuração do dolo se encontra dividido entre as camadas da empresa. Algumas das respostas que têm sido dadas a essas dificuldades vão aos extremos, como a aplicação no âmbito empresarial da autoria mediata por aparatos organizados de poder[4], do lado objetivo, à aplicação da teoria da cegueira deliberada[5], do lado subjetivo.

Enquanto o dolo direto de primeiro grau pode ser tido como o paradigma clássico da realização subjetiva do tipo, no âmbito da criminalidade econômica, a ideia de risco e de levar a sério esse risco, dentre outras, tem conduzido ao acolhimento das propostas de abandono do aspecto volitivo, o qual, indemonstrável com segurança senão pela confissão[6], pouco parece poder agregar ao desvalor da conduta[7]. Em um “mundo” no qual o dolo prescinde de seu elemento volitivo, o peso do conhecimento como centro do desvalor da conduta aumenta, sendo fundamental que se desenvolvam critérios seguros sobre a amplitude e profundidade de conhecimento exigido pelo tipo subjetivo. Aqui também a fragmentação do conhecimento no âmbito da atividade empresarial joga um papel fundamental, especialmente sob o ponto de vista do tratamento do erro sobre os elementos do tipo e sobre a proibição[8].

Enquanto no paradigma clássico predomina a repressão a condutas desvaloradas por si mesmas (mala in se), no âmbito do Direito Penal Econômico predominam proibições de condutas cujo conteúdo sequer pode ser compreendido sem o conhecimento das normas do ramo primário de proibição (mala quia prohibita). Um dos reflexos dessa vinculação entre o tipo de injusto e a regulação no ramo jurídico primário é a afamada afirmação da “independência entre as instâncias”, tão solene e inutilmente proclamada por nossos tribunais, que não hesitam em negá-la quando a instância tecnicamente competente para avaliar a regularidade ou não de uma conduta considera-a regular[9]. Há vários precedentes nos quais a decisão da esfera administrativa acerca da regularidade da operação conduziu ao trancamento da ação penal. Se assim é, o que dizer da insistente negativa de efeitos processuais penais à pendência desses processos administrativos? Há incongruência nesse tratamento e cumpre à doutrina oferecer critérios que busquem solucionar a questão.

O outro reflexo dessa mesma característica é, uma vez mais, um aumento da probabilidade de casos de erro nesse setor do Direito Penal. Não é tarefa nada fácil apreender, em alguns casos, o conteúdo total da proibição penal, incompreensível sem o conhecimento de um emaranhado de disposições legais e infralegais. Some-se a isto a natural divisão de funções e competências na empresa, onde nem todos sabem (e nem podem humanamente saber) tudo, e assim se chega a uma ideia da complexidade da matéria. Mais um ponto em que soluções radicais só tenderiam a amesquinhar a atividade econômica privada, tida como pilar de nossa ordem econômica.

Afirma-se ainda que o paradigma futuro do Direito Penal é o da conduta omissiva culposa. Parece ser esse mesmo o caminho que se tem trilhado na prática. Embora a maciça maioria das figuras penais econômicas seja comissiva (de ação) dolosa, a atribuição de deveres de prevenção de práticas criminosas à iniciativa privada pela via da demanda de instalação de programas de integridade e de deveres de comunicação de operações suspeitas de integrarem procedimentos criminosos têm resultado, na prática, em condenações por condutas que, de fato, foram praticadas na forma “omissiva culposa”, sem que, contudo, exista figura típica autorizando a punição nessa modalidade. Como a maioria dos crimes econômicos em nosso país não contempla figura culposa, isto implica dizer que a negativa do dolo no caso concreto conduz à impunidade da prática, razão pela qual não é incomum que condutas culposas sejam afirmadas como praticadas com dolo eventual para que se contorne a impunidade. Decisões em tema de lavagem de capitais pela omissão de sujeitos obrigados (compliance officers ou diretores de instituições financeiras responsáveis pelo setor de compliance) são um bom exemplo disso, e colocam em xeque o princípio da legalidade penal[10].

Essas características da criminalidade econômica apontam para a necessidade de elaboração de estudos especializados baseados nesses precisos problemas, e também para o fato de que certas necessidades dogmáticas e político-criminais não podem mais ser negligenciadas, como a de elaboração de melhores estratégias de imputação à cúpula da empresa, a contemplação de novas categorias no âmbito do dolo, a atribuição de maior relevância penal às modalidades de erro no âmbito da criminalidade de empresa.


[1] SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, n. 99, nov./dez. 2012, p. 327-356.

[2] Nesse sentido, a breve e precisa advertência de Luís Greco: GRECO, Luís. Duas formas de fazer dogmática. Boletim IBDPE, Curitiba, ano I, n. 1, nov./2009, p. 3-4; e, ainda, a de Silva Sánchez em prólogo ao livro: MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel. Gestión empresarial y atribución de responsabilidad penal: a propósito de la gestión medioambiental. Barcelona: Atelier, 2008, p. 20-21

[3] Cf. RAGUÉS I VALLÈS, Ramón. Atribución de responsabilidad penal en estructuras empresariales. Problemas de imputación subjetiva. Revista de Derecho Penal, n. 1, 2002, p. 201-232.

[4] Cf. GRECO, Luís, LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 933, p. 61 e ss., jul. 2013; LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros: sobre os conceitos de autor e partícipe na APn 470 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 106, p. 47-90, jan./fev. 2014.

[5] Cf. RAGUÉS I VALLES, Ramon. La ignorância deliberada em derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007. Neste revista eletrônica, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A cegueira deliberada no julgamento da Ação Penal 470. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jul-30/direito-defesa-cegueira-deliberada-julgamento-acao-penal-470

[6] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Consideraciones sobre la prueba del dolo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 69, p.129-155, nov./dez. 2007.

[7] Cf. GRECO, Luís. Dolo sem vontade. Em: Silva Dias u.a. (Hrsg.). Liber Amicorum de José de Sousa e Brito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 885-905.; SANTOS, Humberto Souza. Elementos fundamentais de um conceito de dolo político-criminalmente orientado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 97, p.87-118, jul./ago. 2012; BUSATO, Paulo César, MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos, DÍAZ PITA, Maria del. Modernas tendências sobre o dolo em Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

[8] Remeto o leitor ao trabalho de LEITE, Alaor. Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal: a atuação nos limites entre o permitido e o proibido. São Paulo: Atlas, 2013.

[9] Cf., a título exemplificativo, para crimes financeiros, STJ, HC 93.479; STF, HC 95.507. No âmbito do direito penal tributário a questão tomou tamanha proporção que mereceu edição da Súmula Vinculante STF n. 24.

[10] COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Compliance e o julgamento da APn 470. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 22, n. 106, p.215-230, jan./fev. 2014.

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