Embargos Culturais

Roscoe Pound e a diferença do Direito dos livros e da vida real

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

27 de abril de 2014, 8h00

Spacca
O jurista norte-americano Roscoe Pound nasceu em 27 de outubro de 1870 e morreu em 1º de julho de 1964. Estudou botânica na Universidade de Nebraska, seu estado natal. Devido à insistência do pai, que era advogado, Pound estudou Direito em Harvard e depois estagiou no escritório do pai. Reputava a prática do Direito como fonte de muito tédio, porém apreciava a filosofia jurídica. Defendeu tese de doutorado em botânica, obtendo o PhD em 1897. Porém, simultaneamente, começou a lecionar Direito Romano na Universidade de Nebraska, sua alma mater. Posteriormente ensinou Direito na Nortwestern Law School, foi contratado pela Universidade de Chicago, em seguida foi lecionar em Harvard, cuja faculdade de direito dirigiu de 1916 a 1936. Pound lecionou em Harvard até 1964, ano de sua morte.

Pound capitaneou um conjunto de reflexões que levam o epíteto de jurisprudência sociológica. É de Pound a apreensão da diferença entre o direito que há nos livros e o Direito que se desdobra na vida real (“the law in books and the law in action”), explicitada em texto seminal de 1910. Pound chamava a atenção para as discrepâncias que há entre as regras que abstratamente normatizam as relações e as normas que efetivamente governam os homens. Pound ilustrava a assertiva comentando princípio que indica presunção de constitucionalidade de todas as normas jurídicas, o que a Suprema Corte norte-americana, no início do século, parecia não levar em conta como dogma absoluto. Para Pound, simplesmente, as cortes declaram inconstitucionais as leis que não aprovam.

A cultura norte-americana se jactava de matizar um país governado por leis, e não por homens. A presunção indica suposta objetividade do Direito, racional e prospectivo, à luz de uma imagem tirada de categorias weberianas de dominação. Adiantando-se naquilo que hoje apenas ingênuos e mal intencionados não reconhecem, ou cismam em não reconhecer, Pound escreveu que “o rosto da lei pode ser salvo por um ritual elaborado, porém são os homens, e não as regras, que administram a justiça”. Trata-se de fixar e de adaptar os casos ao modelo, juízo de subsunção que na verdade se opera de modo invertido, na medida em que os modelos são efetivamente adaptados aos casos. É o sentido pessoal de justiça que marca a subjetividade característica do julgamento, que é o reflexo do julgador. E para Pound o problema não suscitava nada de novo.

Pound criticava os hábitos dos juristas norte-americanos de seu tempo; preocupava-se também com o direito legislado, que reputava de atrasado. Desconfiava de uma Filosofia do Direito que era histórica e analítica, e que sempre iniciava e terminava quaisquer discussões com repertório de casos dos direitos inglês e norte-americano. Enquanto a filosofia, a política, a economia e a sociologia já haviam deixado de lado as premissas naturalistas do pensamento oitocentista, queixava-se Pound, os advogados norte-americanos ainda persistiam nos mesmos paradigmas. Pound apontava problemas gravíssimos na administração da justiça dos Estados Unidos, a exemplo de uma hiperdimensão individualista. Para Pound, o direito norte-americano apenas concebia doutrinas e regras de proteção ao individualismo. Pound também indicava uma exagerada confiança na administração da justiça.

O direito dos livros se distanciava do Direito da vida real, segundo Pound, na medida em que aquele primeiro não havia conseguido se libertar das premissas supostamente equivocadas do Direito pensado no século XVIII. Com firmeza, Pound sugeria que se estudasse economia e sociologia e que se parasse de se achar que o direito é autossuficiente. Em ensaio de 1931 Roscoe Pound propunha chamada geral para uma filosofia jurídica realista.

Pound conhecia a sociologia jurídica defendida por Eugen Ehrlich, à qual a se reportava, ao comentar a influência dos detentores do capital na formação de regras jurídicas. Pound propunha sete passos a serem seguidos, com o objetivo de se redefinirem as práticas e concepções do realismo jurídico, que a seu ver tomava caminho que se distanciava do sentido inicial que o forjou. No ensaio de 1931 Pound sugeria: 1) uma atitude funcional, isto é, o estudo não só dos preceitos e das doutrinas do direito, porém, e principalmente, um estudo de como o direito efetivamente funciona; 2) o reconhecimento de elementos irracionais, ilógicos e subjetivos nas instâncias reais do direito, isto é, no modo como o direito efetivamente é aplicado; 3) o reconhecimento de circunstâncias únicas e individualizadas, em oposição ao universalismo conceitual do século XVIII; 4) o abandono da ideia de que há uma sequência necessária de acontecimentos, que parte de uma causa única e que caminha para um único resultado possível, no sentido de se admitir que exista apenas uma única solução soberana para um determinado caso levado à justiça; 5) a leitura do direito a partir da psicologia, sem que necessariamente se aderisse a alguma escola específica do pensamento psicológico; 6) a adoção de axiologia que levasse em conta o jogo de interesses a partir da psicologia e da filosofia, sem que, mais uma vez, se aderisse a qualquer dogma dominante nos campos psicológico e filosófico e, 7) o reconhecimento de que há muitas abordagens e possibilidades para se chegar a uma verdade jurídica, sendo que todas elas são significativas em relação aos vários problemas aos quais se referem.

Esses sete itens elencam um programa. Os passos de número 4 e 7 sugerem que há várias soluções jurídicas para um mesmo problema, tese que será retomada com vigor por Benjamin Cardozo, outro grande precursor do realismo jurídico norte-americano. Esse relativismo jurídico é o ponto central no realismo, dado que refuta o dogma da certeza que se desdobra do positivismo. Pound não era exclusivista nem excepcionalista, na medida em que admitia também o valor e a contribuição de todas as tendências da filosofia jurídica, inclusive aquelas que ele criticava.

Pound problematizava, ainda em 1919, quando em artigo referente à liberdade contratual denunciava a falácia da igualdade, tema que é tabu no entorno democrático norte-americano, especialmente no início do século XIX, quando a ingenuidade política era provavelmente mais acentuada. Pound citava famoso julgado que teria anunciado que a liberdade do empregado deixar o trabalho, quando quisesse, era, e deveria ser, igual à liberdade do empregador dispensar o empregado. Era essa a liberdade contratual que o Direito norte-americano consagrava, impregnado que estava de interesses de economia que se desenvolvia, nos moldes do regime de laissez-faire. Valendo-se de estudo de sociólogo, Pound percebia que essa igualdade não detinha nenhuma sinceridade. E perguntava: até quando as cortes persistiram acreditando nessa falácia?

Criticando uma decisão da Suprema Corte, de 1908, que considerou padrões e empregados partes iguais em assuntos de transporte ferroviário, Pound lembrou de presidente norte-americano que havia afirmado que juízes projetam seus valores individuais e suas idiossincrasias sociais e econômicas quando decidem. Pound lembrou que o modelo constitucional norte-americano fora concebido em período no qual a escola jurídica do direito natural estava em seu zênite, bem como o momento de maior desenvolvimento do direito nos Estados Unidos coincidia com o ápice do individualismo na ética e na economia. Escreveu que ainda se citava Blackstone, jurista inglês, para quem “o bem público não está essencialmente mais interessado em nada além do que a proteção de todos os direitos individuais.”

Pound compartilha de uma holmesmania, de uma veneração pelos julgados de Oliver Wendell Holmes Jr., em tradição jusfilosófica norte-americana que até hoje persiste. Pound criticava uma jurisprudência mecânica que não levava em conta os fatos para os quais se dirigia. Defendia a produção de uma legislação de forte conteúdo social, que contrariasse as tendências retrógradas que eram reveladas pelo judiciário norte-americano. Seu texto mais importante, An Introduction to the Philosophy of Law (Uma Introdução à Sociologia do Direito), dá os contornos do seu realismo jurídico. Prioritariamente, o Direito, segundo Pound, deve ser ajustado às condições sociais concretas e reais. Pound repudiava jusfilosófos, juízes e advogados que se perdiam em controvérsias abstratas a propósito de temas de direito.

A injustiça de uma lei seria aferida por sua incapacidade para promover os interesses sociais. Pound desconfiava da tirania de um direito estático, bem como do dogma da ficção da tripartição dos poderes e da soberania popular, enquanto conteúdos jurídicos indiscutíveis. Sardonicamente, Pound argumentava que um Direito distante da vida real lembra-nos o escritor a quem se encomendou que escrevesse sobre a metafísica chinesa, e que recolheu material para seu texto lendo na Enciclopédia Britânica os verbetes “China” e “metafísica”…

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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