Acordo amigável

Convenção de Arbitragem favorece integração da União Europeia

Autor

  • Thyago Pereira Trairi

    é advogado aluno especial na Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP certificado em Strategic Leadership Intercultural Management Business Negotiations and Conflict Resolution pelo Centro Universitario Di Organizzazione Aziendale – Fondazione CUOA Itália.

21 de abril de 2014, 8h42

Segundo alguns especialistas, cerca de 70% das transações comerciais internacionais são feitas por empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico. Uma vez que o preço das mercadorias e serviços relativos a essas operações é determinado normalmente para satisfazer a um único interesse, o da própria multinacional, pode haver uma significativa discrepância quando comparado aos preços de mercado praticados entre empresas não vinculadas.

De modo geral, aos valores atribuídos a essas operações entre empresas vinculadas dá-se o nome de preços de transferência. No mesmo sentido, porém, agora com maior precisão, reproduzimos a definição de Jonathan Vita: “Sintetizando, os preços de transferência são, portanto, os valores declarados de transação entre empresas do mesmo grupo relativos à contraprestação por bens, serviços ou equity, corrigidos/(re)construídos através da aplicação de norma antielisiva tributária específica do imposto sobre a renda que generaliza a operação (re)produzindo-a em condições de mercado utilizando mecanismos econômicos de parametrização, comparabilidade e equalização”[i].

Ocorre que, se os países envolvidos na operação aceitassem todo e qualquer método de precificação, o Estado dispensaria tratamento tributário assaz desigual entre transações comerciais praticadas por empresas de um mesmo grupo e aquelas realizadas entre partes independentes. Além disso, haveria considerável perda arrecadatória no país envolvido com maior carga tributária.

Daí a necessidade de o legislador debruçar-se sobre o fenômeno dos preços de transferência para estabelecer normas específicas que regulem a sua prática.

Um problema recorrente nesse campo, todavia, é a ocorrência da bitributação, pois sempre que dois ou mais países aplicarem regras diferentes a uma mesma transação, inevitavelmente, teremos dupla tributação sobre um mesmo lucro. Isso acontece porque, na hipótese de uma autoridade fiscal realizar ajustes no preço de transferência, deveriam ser implementados, também, os correspondentes ajustes nos preços praticados no outro país envolvido na operação, a fim de evitar que as duas autoridades fiscais tributem o mesmo lucro atribuído à empresa.

Apesar do esforço de cooperação entre as autoridades fiscais, ainda existem grandes diferenças entre os métodos adotados para o cálculo do preço de transferência, o que potencializa a ocorrência de inúmeros conflitos envolvendo multinacionais.

Diante desse cenário, estudos que visem o aperfeiçoamento de mecanismos internacionais para a resolução desses possíveis conflitos são extremamente necessários. Daí por que julgamos pertinente tratar de uma interessante solução encontrada pela União Europeia: a utilização da arbitragem.

Segundo o professor Yitzhak Hadari[ii], “one of the most advanced mechanisms for resolving bi-national or multinational tax disputes, and avoiding double taxation, is compulsory arbitration that would eliminate such double taxation”. Passaremos a analisar a seguir, portanto, o exemplo da Convenção sobre Arbitragem da União Europeia.

Conforme bem relatado por Patrick Plansky[iii], o objetivo da Convenção sobre Arbitragem[iv] da União Europeia (Convenção para eliminação de dupla tributação nos casos de ajuste de lucros de partes relacionadas) é estabelecer um mecanismo para eliminação da dupla tributação que resulta do ajuste fiscal realizado em um dos estados envolvidos na operação sem o correspondente ajuste nos demais estados.

A Convenção sobre Arbitragem foi concluída em 1990, mas entrou em vigor somente em 1995. A razão política que motivou os membros da União Europeia a preferirem regular o assunto por meio de uma convenção, e não de uma diretiva, foi o receio de abdicarem de parte significativa de sua soberania fiscal. Afinal, ao passo que a diretiva impõe a todos os membros da UE a obrigação de sua implementação no direito interno, a convenção somente vincula os estados membros signatários.

Com o fim de viabilizar a sua implementação prática, foi criado, em 2001, o EU Joint Transfer Pricing Forum (JTPF). Em 2004, foi elaborado um Código de Conduta para auxiliar na interpretação dos dispositivos da convenção, ainda que na forma de soft law. Em 2009 foi editada uma nova versão do Código de Conduta com significativos avanços. A última inovação relevante da JTPF foi a edição do Guidelines for Advance Pricing Agreements (APA), contribuindo para promover a prevenção de conflitos sobre preços de transferência.

Princípios
A Convenção sobre Arbitragem acoberta em seu tecido normativo os impostos sobre a renda das pessoas físicas e jurídicas, aplicando-se “sempre que, para efeitos de tributação, os lucros incluídos nos lucros de uma empresa de um Estado Contratante sejam ou possam vir a ser incluídos igualmente nos lucros de uma empresa de outro Estado Contratante pelo fato de não serem respeitados os princípios enunciados no artigo 4º e aplicados quer diretamente quer em disposições correspondentes da legislação do Estado em causa”[v].

Já quanto ao aspecto pessoal ou subjetivo, para fins de delimitar o conteúdo do que venha a ser entendido por enterprise, o artigo 4º da Convenção estabelece o princípio que norteia a aplicação de suas normas, qual seja o princípio arm´s length, que deverá ser observado tanto em operações entre partes independentes de um mesmo grupo econômico (e.g. entre dois estabelecimentos permanentes) quanto entre empresas que possuam direta ou indiretamente participação na direção, controle ou capital de outra.

A Convenção sobre Arbitragem autoriza, portanto, que as autoridades fiscais realizem ajustes naqueles lucros que não tenham resultado de uma aplicação correta do princípio arm´s length. Qualquer outro ajuste que não tenha fundamento no princípio arm´s length não está acobertado pela presente convenção.

Caso a autoridade fiscal de um estado contratante pretenda ajustar o lucro de uma empresa por suposta violação ao princípio arm´s length, deve essa mesma autoridade notificar a empresa oportunamente da sua intenção, possibilitando assim que a empresa fiscalizada informe a outra empresa, de forma a permitir que esta, por sua vez, informe o outro estado contratante.

Acordo amigável
Na hipótese de não haver acordo entre os estados contratantes acerca do valor do ajuste, caso a empresa entenda que o princípio arm´s length não foi observado adequadamente pela autoridade fiscal, a empresa terá até três anos, contados a partir da primeira notificação, para submeter seu caso à apreciação da autoridade competente do estado contratante onde encontra-se situada ou do qual é residente.

Não sendo possível (ou não querendo) à autoridade competente solucionar o problema de forma unilateral satisfatoriamente, parecendo-lhe a reclamação justificada, determina o artigo 6(2) da convenção que o estado contratante deverá esforçar-se para resolver o caso por acordo amigável com a autoridade competente de qualquer outro estado contratante interessado, a fim de eliminar a dupla tributação.

Podemos observar que, ao passo que a fase da notificação fica restrita ao âmbito nacional, a abertura do procedimento de acordo amigável ou MAP dá-se na esfera internacional.

No prazo de dois anos a contar da primeira data em que o caso tiver sido submetido à apreciação de uma das autoridades competentes, caso os estados contratantes não tenham chegado a nenhum acordo capaz de eliminar a dupla tributação, deverá ser iniciado o procedimento arbitral.

Procedimento arbitral
Não sendo possível, portanto, eliminar a dupla tributação por meio de acordo amigável, no prazo de dois anos já mencionado, deverão os estados contratantes constituir uma Comissão Consultiva, que ficará encarregada de emitir um parecer sobre a forma de eliminar a dupla tributação.

A Comissão Consultiva é composta por um presidente, um ou dois representantes de cada uma das autoridades competentes, e um número par de pessoas independentes, designadas de comum acordo ou mediante sorteio.

Uma vez submetido o caso à apreciação da Comissão Consultiva, seus membros possuem o prazo de seis meses para encerrar as investigações e emitir um parecer.

A decisão será constituída por maioria simples dos seus membros. As despesas das empresas são de sua exclusiva responsabilidade. Já as despesas de processo da Comissão Consultiva serão repartidas equitativamente entre os estados contratantes.

Dispõe a convenção que o parecer emitido pela Comissão Consultiva deve ser fundamentado no artigo 4º, que reproduz fielmente o princípio arm´s length previsto no artigo 9(1) da Convenção Modelo da OCDE.

Por fim, dentro do prazo de seis meses a contar do recebimento do parecer da Comissão Consultiva, as autoridades competentes devem tomar uma decisão no sentido de eliminar a dupla tributação resultante do ajuste fiscal. Desde que o problema da dupla tributação seja resolvido, a decisão conjunta pode inclusive afastar-se da solução apontada pela Comissão Consultiva em seu parecer. Todavia, não havendo consenso entre as autoridades competentes, terão de aceitar o parecer emitido pela comissão.

Convenção sobre Arbitragem
Não há dúvidas de que a Convenção sobre Arbitragem representa um passo importante rumo à integração da União Europeia na esfera tributária, especialmente no que diz respeito à regulamentação das regras sobre preços de transferência. A convenção baseou-se principalmente no procedimento de acordo amigável previsto na Convenção Modelo da OCDE. Embora muitos acordos bilaterais prevejam mecanismos de acordo amigável, a Convenção sobre Arbitragem é a única ferramenta a ser utilizada, caso não haja qualquer consenso na fase do MAP.

Para Voegele e Forster, “The EU Arbitration Convention is a positive development in favor of companies. It is clearly defined; its application is cost-effective and efficient"[vi]. No mesmo sentido, o professor Ilias Bantekas afirma que “No doubt, the EU Arbitration Convention is a cornerstone document in the context of the EU(…)”[vii].

Plansky destaca como ponto forte desse procedimento arbitral o fato de não se tratar mais de um mero “esforço” (endeavour) em busca da solução. Agora, uma vez ratificada a convenção, o Estado Contratante vê-se obrigado a eliminar a dupla tributação. Também merece destaque o fato de a Comissão Consultiva ser composta, majoritariamente, por especialistas no assunto, atribuindo peso importante ao voto das pessoas independentes. Todavia, o aspecto mais relevante da Convenção sobre Arbitragem, segundo Plansky, é a delimitação de prazos. Uma vez que todo o procedimento deve ser finalizado em até três anos, o contribuinte certamente goza de maior grau de segurança jurídica na aplicação de normas jurídicas sobre as suas operações.

Deve ser observado, também, que, uma vez que grande parte das transações comerciais internacionais entre partes relacionadas envolve mais do que dois países, a regulamentação de temas relativos a preços de transferência por meio de instrumentos jurídicos multilaterais parece mais adequada do que os usuais acordos bilaterais. Ainda nesse sentido, afirma o professor Antón que “(…) la existencia de um Convenio Multilateral para evitar la doble imposición internacional puede dar lugar a una mayor eficiencia en la resolución de conflictos interpretativos entre las autoridades fiscales o tribunales de distintos países”.

Embora no Brasil a utilização da arbitragem em direito tributário ainda possa parecer uma realidade distante, em virtude das alegadas violações a princípios de ordem pública, como e.g. ao princípio da indisponibilidade da receita pública, acreditamos que o debate, aqui, está apenas começando. Afinal, se o Estado pode o mais (i.e. isenção), por que não poderia o menos?

Enquanto isso, alguns contribuintes brasileiros buscam driblar a dupla tributação decorrente de ajustes fiscais fundados em preços de transferência utilizando estratégias ousadas com credit notes. Mas este é assunto para um próximo artigo.

[i] VITA, Jonathan Barros. Preços de Transferência. In: TORRES, Heleno. Doutrina Tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. pp. 22.

[ii]Artigo disponível em: http://www.martindale.co.il/Article.aspx?ArticleID=39&Text=Compulsory+Arbitration+in+International+Transfer+Pricing+and+Other+Double+Taxation+Disputes.

[iii] PLANSKY, Patrick. The EU Arbitration Convention. In: LANG, Michael; PISTONE, Pasquale; SCHUCH, Josef; STARINGER, Claus. Introduction to European Tax Law: Direct Taxation. Third edition. Viena: Spiramus, 2013.

[iv] Convention on the elimination of double taxation in connection with the adjustment of profits of associated enterprises (90/436/EEC), OJ L 225 of 20 august 1990, pp. 10-25.

[v] Conforme versão da Convenção em português de Portugal. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:1990:225:0010:0016:PT:PDF.

[vi] VOEGELE, Alexander; FORSTER, Florence. The Arbitration of Transfer Prices in Europe. The EU Arbitration Convention in Practice. Practical European Tax Strategies. Volume 8. Number 1. USA: World Trade Executive, 2006.

[vii] BANTEKAS, Ilias. The Mutual Agreement Procedure and Arbitration of Double Taxation Disputes. ACDI. Ano 1. Nº 1. Bogotá: 2008. pp. 203.

Autores

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    é advogado. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da USP, aluno especial na Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, pós-graduando em Gestão Tributária (MBA) pela FIPECAFI, e certificado em Strategic Leadership, Intercultural Management, Business Negotiations and Conflict Resolution pelo Centro Universitario Di Organizzazione Aziendale – Fondazione CUOA, Itália.

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