Dever de ler

Juiz que exige do advogado nova petição atua como censor

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20 de abril de 2014, 10h53

Com preocupação, deparei-me com decisão prolatada pelo magistrado lotado na Vara Única da Comarca de Patu, no Rio Grande do Norte, publicada na revista eletrônica Consultor Jurídico, em 6 de abril, intitulada Juiz do RN manda petição do ‘tamanho de livro’ ser refeita, em que, de forma, com a devida vênia, inusitada, determinou que o advogado refizesse a preambular, “reduzindo-a a uma versão objetiva com a extensão estritamente necessária, sob pena de indeferimento da inicial”, pois “segundo a Unesco um texto de 49 páginas ou mais é um livro”, sendo a “petição inicial (…) um livro. O notório excesso de trabalho desta Vara não permite ler livros inteiros durante o expediente”.

Impossível conceber, após décadas de luta, buscando e alcançando o Estado democrático de Direito, com o livre exercício da advocacia assegurado, decisão cujo conteúdo ultrapassa as limitações, determinadas pela lei, da discricionariedade do magistrado, interferindo, diretamente, na atuação profissional daquele que, segundo o magistrado americano, George Sharswood, então integrante da Suprema Corte da Pensilvânia, “não é somente o mandatário da parte, senão também um funcionário do tribunal. À parte assiste o direito de ver a sua causa decidida segundo o direito e a prova, bem como de que ao espírito dos juízes se exponham todos os aspectos do assunto, capazes de atuar na questão. Tal o ministério, que desempenhava o advogado” (An Essay on Professional Ethics, pp. 83-6).

O juiz não é censor da Advocacia, não tem e – nunca terá – o controle da pena do advogado, do excesso (ou não) de tinta utilizado por esse profissional liberal, no exercício digno do seu sacerdócio. O papel do magistrado é corporificar a efetiva prestação jurisdicional do Estado, proferindo sua decisão, com a leitura integral das peças apresentadas pelas partes, não as tolhendo, não exigindo, ao seu talante, a redução de uma petição inicial, independentemente de quem seja a parte e o patrono que a subscreveu.

Com efeito, ínsito ao seu ofício o dever de desenvolver, do início ao fim, a leitura – atenta – de uma peça escrita pelo constituído de qualquer das partes. Se, talvez, entender, ao final, que o conteúdo do petitório não o convenceu, que, simplesmente, indefira o pleito. Mas, jamais, exigir a formulação de nova petição, a seu bel prazer, extrapolando as suas funções e invadindo o terreno adstrito e sagrado do advogado.

Em paralelo ao princípio constitucional da ampla defesa, é garantia-direito do advogado peticionar perante os órgãos públicos (“a”, XXXIV, art. 5º, da CF), do modo que achar conveniente, em benefício de seu constituinte, cabendo, exclusivamente, a ele definir, sem restrições, a melhor estratégia, a tese mais apropriada e a extensão de seus textos.

Em palestra proferida há mais de 20 anos, intitulada “Garantias Constitucionais e Advocacia Criminal”, Antonio Evaristo de Moraes Filho acentuou que, para a prevalência de um julgamento imparcial, deve “o julgador, com cabeça e alma arejadas, ouvir atento acusação e defesa sem espírito preconcebido. Assegurar o direito de defesa não é apenas conceder um prazo formal ao acusado para manifestar-se, mas é contemplar, realmente, a substância de seus argumentos, para somente então formar a convicção e sentenciar” (in “Antonio Evaristo de Moraes Filho – 80 Anos – Saudade”, Topbooks, 2013, p. 144).

Logo, para aplicação límpida da Justiça, incumbe ao juiz formar sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, mas não exigir que uma das partes renuncie ou refaça os seus argumentos, sob a ameaça de indeferimento liminar.

A disparidade de tal situação nos conduz a reflexões. Não raro, nós, advogados criminais, de um lado, presenciamos sentenças extremamente longas, fadigosas, invocando doutrina e jurisprudência, deixando, todavia, de analisar as provas produzidas, com desdobrado empenho, na instrução criminal e teses suscitadas pelas defesas. Por outro lado – e isso é fato corriqueiro –, vê-se a atuação do órgão ministerial público, como parte e fiscal da lei, apresentando suas alegações finais, com duas ou três laudas, desprezando as provas existentes nos autos.

Na primeira situação, nossa legislação processual penal possibilita os embargos de declaração contra a decisão omissa, contraditória, obscura ou ambígua, não obstante extensa. Na segunda, cumpre à defesa, em seu arrazoado derradeiro, desmerecer, com argumentos, a manifestação acusatória, patenteando suas tibiezas e lacunas. Todavia, jamais haverá, em qualquer ordenamento jurídico, previsão legal conferindo ao magistrado poderes para tolher o sagrado direito de defesa, obrigando o advogado a refazer sua petição inicial.

Preciosas, a propósito, as palavras de Francesco Carnelutti (“As Misérias do Processo Penal, Bookseller, 7ª Edição, 2006, pgs. 52 e 53), que, mutatis mutandis, em seu espírito, se aplica à notícia publicada na ConJur: “Aquilo que a lei quer é precisamente que o juiz refaça inteiramente toda a história do acusado. O que supõe, primeiro de tudo, que o juiz tenha o tempo e a paciência suficientes de se fazer relatá-la para ele; depois deverá verificar o relato e deve habituar-se a assim fazer (…) Em realidade o juiz não tem paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo; e se escutasse por resumo não teria ainda escutado a história verdadeira, porque a história verdadeira é feita também pelas pequenas coisas as quais importam, para a consciência de um homem, muito mais que as coisas grandes; e já adverti de resto que a diferença entre o grande e o pequeno não é mais que um efeito da limitação dos sentidos do intelecto do homem”. 

E, nessa esteira, Santo Agostinho: “Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência”.

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