Imposto de Renda

STF nega mudar tabela com base na separação dos Poderes

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16 de abril de 2014, 13h37

Acaba de ser ajuizada pela OAB, com o objetivo de atualizar a tabela do Imposto de Renda, a ADI 5096, cuja liminar foi rejeitada pelo Relator, ministro Barroso. Na verdade, atualização já é feita, porém em valores inferiores aos índices oficiais de inflação, o que revela defasagem de 61,42% desde 1996[1].

O tema desperta justificável interesse, pois o atual gigantismo do Estado demanda cada vez mais recursos para sua manutenção, o que afeta o bolso de milhões de pagadores de tributos. Esse dinheiro é obtido a partir de três fontes: (a) tributária, (b) endividamento e (c) inflação. Essa última não se analisa devidamente porque ficaria claro ser o Governo o causador e principal beneficiário da inflação, pela criação de moeda não vinculada a ativos reais[2]. Correção da tabela do Imposto de Renda relaciona-se com a primeira. Na verdade, sem atualização, o Estado aumenta ilegalmente (em sentido lato) sua arrecadação. Logo, não se interessa por fazê-lo.

A abstenção do Estado em corrigir verdadeiramente a tabela do Imposto de Renda, e a omissão do Legislativo em tomar a iniciativa de fazê-lo, levou o cidadão a buscar o Judiciário. Esse artigo propõe-se a examinar as razões pelas quais o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 388.312, negou ao jurisdicionado correção daquela tabela. 

O bem jurídico a proteger
Renda e proventos são partes constitutivas do patrimônio do indivíduo. Na verdade, critica-se considerarem-se proventos, salário e remuneração componentes do patrimônio mobiliário, pois para a maioria do cidadão brasileiro esses itens constituem a paga por seu trabalho, e para muitos desses os 30 dias do mês são mais longos que o valor recebido.  Não obstante, a Constituição dá poder à União para instituir impostos sobre a renda e proventos de qualquer natureza (art.153, III), cujo não pagamento ela criminalizou.

Patrimônios mobiliário e imobiliário são projeções da pessoa física ou jurídica, a que se denomina propriedade e à qual o direito confere proteção. As Constituições brasileiras, desde a do Império, sem exceção, garantem o direito à propriedade. Na atual Constituição essa garantia consta do art. 5º, caput, e do inciso XXII.

Recentemente, no dia 14 de março, o STF julgou a ADI 4.425 e considerou inconstitucional a TR como índice de correção monetária do pagamento de precatórios. Dois argumentos fundaram essa decisão: (i) a TR não é índice de correção, mas de remuneração de títulos de aplicação financeira, e (ii) a ausência de correção monetária ou correção incompleta da prestação devida afronta o direito constitucional de propriedade.

Garantia constitucional esquecida
Em 1º de agosto de 2011, foi julgado o RE 388.312 pelo Pleno do STF, o que lhe confere credencial de matéria amplamente discutida. Os votos mencionam diversos outros de mesmo entendimento. Foi nesse julgamento, síntese de julgamentos anteriores, que o STF enfaticamente negou ao obrigado tributário o direito de ter atualizada a tabela do Imposto de Renda, vencido o ministro Marco Aurélio, que admitiu a correção pelo mesmo índice de atualização da dívida ativa da Fazenda.

Para entendimento e crítica doutrinária do que decidiu o STF nesse RE, é necessário enunciarem-se, ainda que sinteticamente, os argumentos fundantes da decisão majoritária. E mais ainda: tais argumentos devem ser apreendidos levando-se em conta não apenas a prescrição constitucional de defesa do direito de propriedade, presente, repita-se, em todas as Constituições brasileiras, mas também o entendimento do STF sobre conceitos estranhos à Ciência do Direito, utilizados como argumentos situacionais da decisão, tais como inflação, memória inflacionária etc.

Ainda que somente em 14 de março de 2013 tenha o STF “ressuscitado” a proteção do direito de propriedade para declarar a inconstitucionalidade conceitual da TR como índice de atualização monetária, essa proteção já constava da Constituição de 1988 quando foi julgado esse RE 388.312. Logo, prescrito para ser obedecido; por isso, constituindo um dos direitos e garantias fundamentais, deveria haver sido levado em conta também no julgamento desse RE.

Ver-se-á a seguir que, mesmo sem mencionar essa garantia constitucional, o STF valeu-se da separação dos poderes para eximir-se de corrigir a tabela do Imposto de Renda. Ora, a invocação desse princípio somente pode justificar-se, e mesmo impor-se, se decorrer de ação legiferante simples e direta, e mesmo assim, por atuação constante e coerente do STF em não fazer-se agir como legislador, o que não parece ser o caso[3]

Negação da correção no RE 388.312
Destacam-se os votos das ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie, visto haverem estabelecido proposições sobre inflação e correção monetária que fatalmente levariam ao indeferimento da correção, além de “compartimentalizar” o exame da matéria. Registre-se, para informação, que o relator vencido valeu-se dos princípios da legalidade, da capacidade contributiva e do não-confisco para entender devida a atualização, além de isonomia normativa com a dívida ativa da União. 

(a) Voto-vista da ministra Cármen Lúcia
A ministra informa o entendimento consolidado do STF de não poder o Judiciário determinar a atualização da tabela do Imposto de Renda, sob pena de violação do princípio da separação de poderes e da reserva legal. Justifica essa vedação pelo “uso regular do poder estatal na organização da vida econômica e financeira do país”. Diz, também, que uma das realizações do Plano Real “foi exatamente a quebra da cultura inflacionária desenvolvida com sistemática indexação” e que esse plano buscou “combater um dos maiores problemas econômico-financeiros do Brasil… a inflação crônica”. E ainda: “permitir que o Poder Judiciário aplique correção monetária em tributo que a lei não o fez importa, em última análise, negar a possibilidade de implementação de políticas econômicas ativas…”.

Para a ministra, “poucos temas têm repercussão tão drástica na ordem econômico-financeira quanto o da correção monetária, motivo pelo qual a sua efetivação não prescinde de previsão legal”. Transcreve trecho de voto do ministro Sepúlveda Pertence no RE 201.465, segundo o qual “não há um Direito Constitucional à indexação real, nem nas relações privadas, nem nas relações de Direito Público, sejam elas tributárias ou de outra natureza…”.

Em contraponto a esses argumentos, veja-se que a ministra pretende dar caráter estritamente universal à proposição, “uso regular do poder estatal na organização da vida econômica e financeira do país, no espaço próprio das competências dos Poderes Executivo e Legislativo”. Com isso, o conteúdo da expressão passa a possuir âmbito de referibilidade a qualquer espaço-tempo, com pretensão de afirmação verdadeira[4]. Assim, ela já prepara a via argumentativa para opor ao pleito o princípio da separação dos poderes.

Entretanto, o art. 170 da Constituição, prescreve que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, em harmonia com o disposto no art. 1º, IV, de que a República tem como fundamentos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o que não parece convalidar esta apologia ao “poder estatal”. A Constituição não erige um Estado dirigista e interventivo, mas um em que “a exploração direta da atividade econômica… só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (art. 173). O art. 174 restringe a obrigatoriedade do planejamento estatal ao setor público. Logo, a enunciação pela ministra de um poder estatal de organização da vida econômica e financeira do país somente se explica para o objetivo de negar ao Judiciário a iniciativa da correção da tabela do Imposto de Renda; trata-se, pois, de claro argumento “ad hoc” para justificar a incidência da separação de poderes.

Não é verdadeira a afirmação de que a cultura inflacionária é “desenvolvida com sistemática indexação”, pois esta é efeito da inflação, que decorre da expansão monetária.  Ademais, não é a correção monetária tema de “repercussão tão drástica na ordem econômico-financeira”, mas sim a inflação, que aquela busca amenizar. Se se admite que esta não é fenômeno jurídico (e realmente não é), tem-se de admitir, por igual, que a correção também não o seja, pois é simples aplicação de índice mensurador da “corrosão” causada pela inflação.

(b) Voto-vista da ministra Ellen Gracie
Ao início do voto, a ministra estatui que em nosso ordenamento “sempre tivemos a convivência do princípio do nominalismo monetário com o do valorismo”. Em seguida, traz à discussão o art. 317 do Código Civil (CC), que prevê a possibilidade de correção da prestação de uma obrigação quando houver manifesta desproporção entre seu valor no tempo do pacto e no do pagamento.

Note-se que a ministra, havendo trazido à baila o art. 317 do CC e tendo em mãos o pedido expresso no RE 388.312, assume os argumentos do ministro Sepúlveda Pertence (RE 201.465) de que “não há um Direito Constitucional à indexação real”. Ora, se a própria ministra (a) reconhece tratar-se da necessidade de recomposição do equilíbrio das relações, (b) e menciona o art. 317 do CC, que torna jurídica a correção, não há relevância de não ser constitucional esse direito para impedir o Judiciário de conceder a correção.

A dicotomia entre nominalismo monetário e valorismo monetário[5] decorre do desconhecimento de que moeda é valor de referência para troca de bens. Descasamento entre moeda-inscrição-numérica e moeda-valor só ocorre na primeira (papel-moeda), emitida pelo Estado, por causa da inflação a que ele mesmo dá causa.

Desconhece-se o mencionado “direito monetário” como “ramo” dotado de princípios específicos que possa ser estudado com autonomia. Na concepção atual da moeda – criação estatal de curso forçado – esse direito é, antes de tudo, um anti-direito, pois sugere a vassalagem do indivíduo perante os que podem produzir moeda do nada e forçar sua aceitação em troca de algo advindo do trabalho. A aceitação de sua existência leva ao passo seguinte, de entender-se a obrigação tributária como marco de uma “justiça” distributiva, como disse a ministra. Em oposição a esse entendimento, veja-se que o art. 317 do CC não distingue obrigação cível da tributária; tampouco a proteção do direito de propriedade se relaciona com essa afirmação, peculiar, de que o Direito Tributário é inspirado pela “justiça distributiva”.

A proposição de que “a redução ou aumento da carga tributária real como simples efeito econômico do processo inflacionário não implica violação do art. 150, I, da Constituição” significa aceitar um efeito jurídico – pagar mais tributo – sem origem em causa jurídica ou de qualificação jurídica – a inflação. Entretanto, a Constituição estabelece que somente a lei pode criar ou aumentar tributos, e não também que seja permitida a criação indireta e sub-reptícia pela inflação, portanto o aumento do imposto pela não correção da tabela viola claramente esse art. 150, I.

Divisão de Poderes não veda correção
Ambos os votos-vista apontam a divisão de poderes como óbice à atuação medianeira do STF. Não há, porém, enunciação de argumento plenamente convincente de que a correção da tabela realizada pelo Judiciário implique substituição do Legislativo. Ora, a inflação afeta o direito de propriedade do indivíduo ao diminuir o poder de compra de seu patrimônio mobiliário. Logo, atuação judicial fundada no direito infraconstitucional (art. 317 do CC), ou no direito constitucional de propriedade tem por fundamento o direito à proteção judicial de lesão ou ameaça a direito. Se há regra constitucional que proteja a propriedade e lei ordinária que resguarde o valor das prestações, o reconhecimento disso não investe contra a separação de poderes.

Os índices que mensuram a inflação são obtidos por pesquisas de mercado: a medida da inflação é a medida da correção monetária. Nesse RE foi reconhecido que a inflação não é noção jurídica; tampouco deve ser a correção monetária, simples operação aritmética de aplicação do índice inflacionário a certo montante mobiliário.

Nenhum dos votos proferidos no julgamento do RE 388.312 levou em conta a proteção do direito de propriedade como razão constitucional da correção monetária. Mesmo sem a existência específica de um direito constitucional à correção, a proteção da propriedade fá-la devida: não é o direito constitucional à correção o que importa, mas a proteção da propriedade que se obtém por aquele meio, a atualização. E no plano do direito infraconstitucional, o art. 317 do CC dá suporte à correção.

Portanto, nesse julgamento o STF teve de sepultar (a) a proteção constitucional da propriedade e (b) a previsão legal de correção do art. 317 do CC, para escusar-se de prestar jurisdição sobre alegar o princípio da divisão de poderes. O julgamento do RE 388.312 foi realmente a “crônica de um indeferimento anunciado”.


[1] Confira em <http://economia.ig.com.br/financas/impostoderenda/>

[2] Sugere-se acesso ao endereço do Instituto Ludwig von Mises Brasil, onde se obterão conhecimentos básicos sobre a visão da Escola Austríaca sobre economia, moeda, intervenção do Estado e outros temas que se relacionam:  http://www.mises.org.br

[3] Sugere-se leitura dos seguintes artigos do Prof. Lenio Streck, onde se apontam atuações do STF pela seara do Legislativo: http://www.conjur.com.br/2014-jan-02/senso-incomum-realismo-ou-quando-tudo-inconstitucional ; http://www.conjur.com.br/2013-nov-14/senso-incomum-tanto-descumpre-lei-ninguem-faz-nada; http://www.conjur.com.br/2013-out-31/senso-incomum-emenda-precatorios-stf-legislar-nao2; http://www.conjur.com.br/2013-set-05/senso-incomum-supremo-nao-guardiao-moral-nacao . Ver também, do autor deste trabalho, “MODULAÇÃO DE EFEITOS” DA DECLARAÇÃO DE IN-CONSTITUCIONALIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 27 DA LEI Nº 9.868/99, em http://www.coad.com.br/busca/detalhe_42/3732/Doutrina. Defende-se aqui que o próprio STF poderia abster-se de utilizar esse dispositivo legal e apontar sua inconstitucionalidade, mas não o fez.

[4] “O enunciado estritamente universal tem uma aspiração à verdade, em certo sentido, limitada. Pretende ser verdadeiro em qualquer espaço-tempo.”, in José Souto Maior Borges, “Obrigação Tributária”, Ed. Saraiva, 1984, pág. 44, e sua nota de página nº 1.

[5] “O nominalismo foi difundido por um economista, G.F.KNAPP, no início do século XX, como uma reação ao metalismo que então ainda predominava. Depois de KNAPP, o jurista ARTHUR NUSSBAUM popularizou o uso da palavra nominalismo, para opô-la a valorismo, sob cuja designação ele identificava as doutrinas sobre o valor da moeda que tinham base não só na cotação dos metais como no poder aquisitivo.”, in Letácio Jansen, em http://www.letacio.com/blog/2011/08/10/nominalismo-e-principio-do-valor-nominal

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