Justiça Tributária

Promessas constitucionais não existem para serem cumpridas

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

14 de abril de 2014, 8h04

Spacca
Caricatura: Raul Haidar - Colunista [Spacca]Quem neste país pretender cumprir as leis e obter justiça tributária vai descobrir que o nosso ordenamento jurídico nada mais é que uma grande quantidade de promessas feitas para não serem cumpridas.

Vamos de início nos reportar à primeira dessas promessas, que é a contida no preâmbulo da Constituição, onde se afirma que nossos constituintes se reuniram em 1988 “para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias” 

Na mesma carta de direitos encontramos, no artigo 5º, inciso LXXVIII, a garantia de que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, enquanto o artigo 37 diz que a administração pública “obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Não são necessárias muitas pesquisas para descobrirmos que esses dois princípios básicos da carta magna são apenas promessas feitas para não serem cumpridas. Nosso Estado de Direito não garante os tais valores superiores, enquanto os processos administrativos ou judiciais não se processam com celeridade, mas, administrados por verdadeiros celerados, se arrastam lentamente, como lesmas lentas que se perdem em labirintos escuros.

Se descermos um degrau apenas na hierarquia de nosso ordenamento jurídico, deparamos com o exame das leis complementares, onde vamos encontrar inúmeros exemplos de que elas não atendem a suas finalidades, mas apenas geram outras promessas que nada mais são do que isso mesmo: simples promessas.

Tal é o caso, por exemplo, do nosso CTN, onde o artigo 198 proíbe a divulgação por parte da Fazenda Pública ou seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo. No entanto, há nas repartições fazendárias casos de terceirização de serviços, onde pessoas que não são servidores públicos têm acesso aos processos e mesmo às senhas de computadores, com o que podem divulgar ou repassar informações a qualquer interessado.

Outrossim, a LC 95 de 26 de fevereiro de 1998 é muito clara em seu artigo 7°, ao ordenar que cada lei tratará de um único objeto e a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão.

Mas essas aberrações jurídicas chamadas "medidas provisórias" quase sempre se transformam em saladas de frutas, pois o Congresso lhes dá legitimidade.

Outra forma de desprezo à lei é que, no texto da LC 95, consta, nos artigos 13 a 16, obrigação de que a legislação federal seja anualmente consolidada, o que não se faz até hoje, 16 anos depois da sua aprovação.

Descendo ainda mais na hierarquia das leis denominadas ordinárias, muitas das quais são ordinárias no sentido pejorativo da palavra, encontramos a Lei 13.315, de 17 de janeiro de 2014, do estado de São Paulo, onde se prevê cassação da inscrição de contribuintes do ICMS que implicará, à pessoa dos sócios, impedimento de exercer atividade, bem como a proibição de pedir inscrição de nova empresa. E o pior: tais restrições prevalecem por prazo de cinco anos, divulgando-se a relação dos estabelecimentos comerciais penalizados. 

Tal norma nega vigência ao artigo 6º da CF, cláusula pétrea que assegura ser o trabalho um dos nossos direitos sociais. Ora, ainda que seja cassada a inscrição, tal penalidade não pode ser duradoura, cabendo ao Estado cobrar o que lhe for devido pelos meios próprios, nos termos do que prevê a Súmula 547 do STF, que diz não ser lícito que a autoridade proíba ao contribuinte em débito exercer suas atividades profissionais.

Outro exemplo de promessa não cumprida é aquela feita durante a criação do CNPJ, que substituiu o antigo CGC, quando as autoridades fazendárias federais garantiram que, feito o novo cadastro, estariam dispensadas as inscrições das pessoas jurídicas em qualquer outra repartição. A enorme burocracia que temos na abertura de novas empresas ainda continua, com a exigência de inscrições estaduais e municipais e, conforme o ramo de atividade, também em outros órgãos. Com isso, a abertura e legalização de qualquer empresa demora meses e meses por aqui, enquanto que em outros países isso se resolve em poucos dias e a custos bem menores.

Além disso, as empresas são obrigadas a se submeter a exigências muitas vezes absurdas, como as que lhes são feitas por inúmeros órgãos ou agências criados apenas para dar empregos a desocupados, como as entidades que fiscalizam pesos e medidas, instalações de estabelecimentos, tratamento de efluentes industriais, saneamento, uso de água ou combustível, qualidade de produtos vendidos, normas relacionadas com direitos do consumidor, enfim uma enorme e infindável quantidade de regras criadas para aborrecer e impedir que empresas, ainda que pequenas, se preocupem com seus interesses e direitos, ocupando-se em trabalhar, produzir e dar lucro para sustentar essas máquinas burocráticas infernais.

Para quem acredita em mula sem cabeça, saci e papai noel, resta a esperança de que um dia as promessas feitas pelos poderes constituídos e nossos governantes sejam cumpridas. Provavelmente esse tempo nunca chegará, pois enquanto nossos políticos pensam apenas na próxima eleição ou em atos ilícitos que praticam ou deixam que se pratique, a maioria dos servidores públicos só quer saber de suas benesses, sejam altos salários, férias ou as gordas aposentadorias pagas com o dinheiro de quem ainda insiste em trabalhar.

Não podemos nos esquecer das palavras ditas pelo ministro Edson Vidigal, então presidente do STJ, em 13 de abril de 2004:

"Quem serve ao Estado serve ao público em geral. Ninguém dentre nós, no serviço público, é inimigo de ninguém. Bastam os inimigos do Povo, só por isso, também, nossos inimigos. Contra eles é que devemos estar fortes em nossa união. O Padre Antonio Vieira dizia que os sacerdotes são empregados de Deus. Assim, da mesma forma, o dinheiro que paga o salário do Presidente da República e dos seus Ministros, dos Deputados e dos Senadores, dos Ministros dos Tribunais é o mesmo que paga o salário de todos os outros servidores, do porteiro ao assessor mais graduado, do cabo ao general. Esse dinheiro vem de um único patrão para o qual trabalhamos, do qual somos empregados. Esse patrão é o contribuinte que paga impostos. Somos empregados do Povo brasileiro." 

Enquanto os ocupantes de cargos públicos, enfim, os empregados do povo brasileiro não se comportarem como tal, continuaremos como os santos, vivendo apenas de promessas.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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