Constituição e Poder

Princípio da concordância não contraria ponderação de bens

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14 de abril de 2014, 13h58

Spacca
Tem sido divulgada entre nós, como fundamento de uma incontida, mal explicada e mal compreendida oposição à técnica da ponderação de bens, a falsa hipótese de que Konrad Hesse teria oposto o princípio da concordância prática (Das Prinzip der praktischen Konkordanz), que, consoante sabemos todos, de fato encontrou no grande constitucionalista um sensível e honesto defensor, à ideia de ponderação de bens, que, segundo os críticos, receberia dele fervorosa oposição.

O presente artigo tem por escopo investigar essas duas hipóteses: (a) a primeira, de ordem mais histórica do que teórica, saber se, de fato, Konrad Hesse opunha-se de forma absoluta à ponderação de bens; (b) a segunda, de ordem teórica e que vincula a primeira, saber se procede — lógica e teoricamente — a tese de que o princípio (como é vulgarmente conhecido) da concordância prática de fato se opõe á técnica da ponderação de bens.

Tendo escrito uma tese precisamente sobre ponderação e colisão de direitos fundamentais, sou daqueles que entendem existir atualmente no Brasil, é preciso reconhecer, um desconfortável abuso na técnica da ponderação de bens. Contudo, não vou ao ponto, considerado o abuso de um instrumento, de negar-lhe ou desmerecer todas as suas propriedades, especialmente, quando se cuida, no caso da ponderação de bens, de solucionar casos difíceis de colisão de bens e “valores” constitucionais.

Concordância prática
Ninguém terá dificuldade em aceitar a ideia básica que sustenta o postulado da concordância prática, isto é, a ideia de que, havendo colisão de bens protegidos constitucionalmente, como tem sido acentuado por boa parte da jurisdição constitucional mundo afora, deve-se favorecer decisões através das quais ambos os direitos (ou bens constitucionais), em conformidade com a possibilidade de seu equilíbrio e proporcionalidade, sejam garantidos, em autêntica concordância prática[1].

De fato, o princípio da concordância prática afirma que a aplicação de uma norma constitucional deve realizar-se em conexão com a totalidade das normas constitucionais. Por conseguinte, a concordância prática afirma que as normas constitucionais devem ser interpretadas em uma unidade[2]. Em tal contexto, obviamente, há de se interpretar as normas constitucionais de modo a evitar contradições entre elas.

Konrad Hesse, por sua vez, ao definir o princípio da concordância prática, afirma expressamente que, na solução de problemas jurídicos, os bens constitucionalmente protegidos devem ser coordenados uns com os outros, de tal forma que todos ganhem realidade[3]. Na sequência, completa seu pensamento com a seguinte afirmação: “Onde surjam colisões, não se pode, mediante uma “precipitada ponderação de bens (vorschneller Güterabwägung) ou muito menos uma “abstrata ponderação de valores (abstrakter Wertabwägung), realizar um (bem jurídico constitucionalmente protegido) a custa do outro”[4]. (Grifos não existentes no original).

Segundo K. Hesse, além disso, o princípio da concordância prática impõe uma determinação de limites a esses bens jurídicos em colisão de tal forma que, em consonância com o princípio da proporcionalidade, ambos ganhem uma realização ótima. A proporcionalidade nestes casos representa, segundo o autor, uma relação entre grandezas variáveis e apenas se justifica aquela que melhor realiza a tarefa de otimização[5].

Contudo, como corretamente afirma Laura Clérico, bem observado, o princípio da concordância prática não diz o que seria proporcional em concreto. Em conclusão, diante disso, sobretudo diante das objeções levantadas por Konrad Hesse contra as “precipitadas ponderações de bens” e “as abstratas ponderações de valores”, é que se legitima a questão aqui sob consideração: seria mesmo o princípio da concordância prática incompatível e até contraditório com a ideia de ponderação de bens?

Sejam essas ideias um pouco mais estendidas e aprofundadas.

Concordância prática como ponderação
Ingo von Münch, ao anotar que no Tribunal Constitucional alemão se formou acentuada tendência de resolver as colisões de direitos fundamentais pela ponderação de bens no caso concreto, demonstra que, entretanto, não há incompatibilidade entre concordância prática e ponderação.

Esse célebre autor alemão, falando do país onde mais se verificou a discussão crítica sobre a ponderação de bens e a concordância prática, afirma que a chave para a compreensão do método adotado pelo tribunal alemão não está sempre no deslocamento ou completo afastamento de um dos direitos fundamentais envolvidos na colisão, situando-se, mais exatamente, na busca pelo tribunal de um confronto ou comparação entre os direitos fundamentais colidentes, de tal forma que, em caso de colisão, devem ser considerados ambos os princípios constitucionais na tentativa de se buscar um ponto de possível equilíbrio e ajuste entre os bens constitucionalmente protegidos. Contudo, não sendo isso possível de ser alcançado, e nem sempre será, deve-se decidir, então, levando-se em consideração a conformação típica do caso concreto bem como suas circunstâncias especiais, qual dos interesses há de retroceder (procedendo-se à ponderação)[6].

Informa ainda Ingo von Münch que, na tentativa de confrontação de princípios, deve-se guardar obediência à orientação de que a comparação feita deve ser a mais cuidadosa e moderada possível. Tudo isso porque o princípio da unidade da constituição impõe a tarefa de uma otimização, com o que ambos os princípios possam, cedendo mutuamente, chegar a uma efetivação ótima[7].

Na sequência de sua análise, como se dizia, entretanto, Ingo von Münch revela a compreensão de que Konrad Hesse, ao advertir contra uma eventual “precipitada ponderação de bens” (vorschneller Güterabwägung)[8] em casos de colisão de interesses constitucionais, está objetando apenas o adjetivo “precipitado”, sendo certo, pois, que Konrad Hesse não se põe, pelo menos em absoluto, contrário à ponderação mesma de bens[9].

Na mesma direção, Laura Clérico afirma que, bem compreendidos os termos das advertências de Konrad Hesse, há ali um desenvolvimento da tese da congruência, segundo a qual a produção da concordância prática, em verdade, corresponde à ponderação de bens[10].

Robert Alexy também demonstra não existir qualquer contradição entre o princípio da concordância prática e os juízos de ponderação. Ao referir-se a Konrad Hesse, Alexy não discorda de sua advertência quanto à inadequação de uma ponderação precipitada ou abstrata, já que o seu modelo de ponderação, como se sabe, centra-se num procedimento que além de não precipitado, já que se impõe a análise de todas as circunstâncias pertinentes ao caso, mostra-se também não abstrato, uma vez que se desenvolve a partir da análise do caso concreto.

Fazendo expressa remissão às preocupações de Konrad Hesse, afirma Robert Alexy[11]: O modelo de fundamentação aqui apresentado evita uma série de dificuldades, que frequentemente são vinculadas ao conceito de ponderação. Ele torna evidente que a ponderação não é um procedimento no qual um bem “precipitadamente” (vorschnell) é realizado à custa de outro. Segundo ele a ponderação é tudo bem diverso de um procedimento abstrato (abstraktes) ou geral. (…) Já do conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma questão de tudo-ou-nada (Alles-oder-Nichts-Frage), porém de uma tarefa de optimização. Neste ponto, o modelo de ponderação aqui defendido corresponde ao assim chamado princípio da concordância prática.

Além disso, que a concordância prática corresponde também em alguma medida à ponderação de bens demonstra-se pelas seguintes razões: (1) em primeiro lugar, à semelhança da ponderação de bens, o princípio da concordância prática exige também a consideração obrigatória dos princípios constitucionalmente relevantes que estejam envolvidos na colisão; (2) em segundo lugar, a concordância prática também recorre, como a ponderação, a todas as circunstâncias de fato para a avaliação da colisão; (3) também na concordância prática, repetindo ideia essencial à ponderação de bens, a colisão de princípio deve-se diferenciar do conflito de regras, uma vez que entre princípios, como se sabe, a realização de um não pode significar, como nos conflitos de regras, a invalidade do princípio que foi afastado; (4) mais uma vez, à semelhança do que ocorre na ponderação de bens, também a concordância prática não oferece nenhum critério material geral para solução das colisões de bens jurídicos constitucionais em colisão; (5) aqui como lá, em cada caso se desloca o problema para a aplicação do princípio da proporcionalidade[12].

Esses aspectos comuns à concordância prática e ao modelo de ponderação, como compreendido a partir das lições de Robert Alexy, afastam a possibilidade de uma ponderação de bens precipitada ou superficial como solução para o problema das colisões de princípios ou direitos fundamentais. Porém, deixe-se claro mais uma vez: não é recusada a ponderação de bens em si, mas tão somente o tipo superficial ou precipitado de ponderação.

Princípio da proporcionalidade
Em conformidade com as ideias acima desenvolvidas, Laura Clérico pôde afirmar que a produção da concordância prática, na verdade, é um subcaso do exame de proporcionalidade[13]. De fato, seria de todo incoerente, como demonstra uma das mais respeitadas estudiosas do tema da proporcionalidade e da ponderação em todo o mundo, que aqueles que defendem a concordância prática recusem a ponderação de bens e ao mesmo tempo exijam que, em concreto, os limites dos bens jurídicos constitucionais em colisão fossem estabelecidos de maneira proporcional, uma vez que, consoante se sabe e bem demonstra a autora, a máxima da proporcionalidade inclui no seu terceiro nível a proporcionalidade em estrito sentido, ou seja, a ponderação de bens[14].

Além disso, é fácil notar que, em muitos casos, apenas o recurso ao princípio da concordância prática não permitirá resposta convincente aos problemas relacionados às colisões de direitos fundamentais. A ideia de concordância prática tem, por exemplo, evidentes limitações nos casos em que, queira-se ou não, a decisão tem que contemplar sacrifícios concretos de direitos fundamentais. Para uma melhor compreensão, intua-se o caso de abortos legal e constitucionalmente admitidos. Pergunta-se: em que medida se pode continuar a falar de concordância prática quando se cuida, em tais situações, de eliminar a vida do nascituro? Como falar, em consonância com a gramática da concordância prática, de realização ótima de ambos os bens envolvidos na colisão, quando um deles é concreta e ineludivelmente sacrificado? Como insistir que neste caso um direito não possa ser realizado com o sacrifício do outro? O que remanescerá da vida em gestação, que é sacrificada, para ainda falar-se de concordância ou equilíbrio entre direitos[15]?

Portanto, nesses casos limites a concordância prática apresenta evidente déficit de argumentação e, no entanto, mesmo essas situações extremas devem ser conduzidas por uma movimentação metódica que permita ao aplicador da norma, diante de casos difíceis e, contudo, inevitáveis, formar o melhor e mais racional juízo possível. É aqui, portanto, que a ponderação de bens se apresenta como suporte argumentativo mínimo para a fundamentação de uma decisão racional.

Aos estimados leitores que me dão a honra de sua qualificada leitura, informo que, a partir de hoje, retomando a periodicidade da coluna Constituição e Poder, terei o enorme prazer intelectual de dividi-la semanalmente com o Doutor Marco Marrafon, professor da UERJ e atual presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional, um dos mais qualificados juristas da nova geração, que transita com a qualidade de poucos tanto pelo território da Teoria Geral do Direito como da Teoria e do Direito Constitucional.


[1] Sobre o princípio da concordância prática, veja-se K. Hesse, Grundzüge des Verfassungsreschts der Bunderrepublik Deutschland, p. 28, 142, 148, 171, 174, 182 e 183. Cfr. também C. Schmitz, Grundrechtskollisionen zwischen politischen Partein und Bürgern, p. 22 e 23.

[2] Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 217.

[3] Konrad Hesse. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, (parágrafo 72), p. 28.

[4] Konrad Hesse. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, idem.

[5] Konrad Hesse. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, p. 28; Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 218.

[6] Ingo von Münch (orgs.). Grundgesetz-Kommentar, p. 48.

[7] Ingo von Münch (orgs.). Grundgesetz-Kommentar, p. 48.

[8] Conferir em Konrad Hesse. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundersrepublik Deutschland, p. 28.

[9] Ingo von Münch (orgs.). Grundgesetz-Kommentar, p. 48.

[10] Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 218.

[11] Robert Alexy. Theorie der Grundrechte, p. 151 e 152. No mesmo sentido, Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 218.

[12] Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 218.

[13] Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 219.

[14] Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 218.

[15] Como se sabe, exceção feita à solução dada ao aborto nos Estados Unidos, em Roe v. Wade (410 U.S. 113), na qual a Suprema Corte negou que houvesse ali uma verdadeira colisão de direitos fundamentais (não por negar a existência de vida antes do nascimento, mas com o artifício quase banal de não reconhecer o feto como pessoa capaz de titularizar direitos), em regra, não há como fugir à compreensão de que no aborto o direito à vida da criança por nascer é sacrificado em benefício de direitos da mãe como liberdade, autodesenvolvimento da personalidade, privacidade, etc. Sobre o ínicio da vida e a exata delimitação da colisão de direitos fundamentais existente em cada caso de aborto, ver BVerfGE 39, 1.

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