Deslize empresarial

Empresas devem tomar cuidado com traduções simplistas

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12 de abril de 2014, 9h50

É comum no ambiente de multinacionais com presença no Brasil que se adotem normas, programas e códigos das matrizes no exterior independente de uma adaptação cuidadosamente planejada e implementada, sob o argumento de que programas globais precisam ser “consistentes”.

Também é comum que se aproveite, no contexto nacional, normas, programas e códigos meramente traduzidos de outras línguas, sobretudo do inglês.

Ocorre que não é pela mera tradução que se consegue consistência, mesmo porque nem tudo pode ou deve ser meramente traduzido.

Numa adaptação de normas, programas e códigos das matrizes no exterior, eventualmente pontos que não podem ser razoavelmente traduzidos deveriam ser omitidos para evitar confusão e a própria inefetividade da aplicação da norma interna, seguindo a linha de raciocínio de que normas efetivas devem ser criadas para refletir os costumes de seus destinatários, inclusive com a participação deles.

Exemplo corriqueiro de caso em que uma mera tradução não cai bem é a tradução do conceito de legislação norte-americana de “pagamentos de facilitação”. O conceito, se não explicado ou se mal compreendido, pode induzir a uma interpretação de que há conivência por parte da empresa com propinas, dentro de padrões subjetivos e de difícil explicação. Novamente, o risco é a inefetividade da aplicação da norma, algo talvez muito mais grave do que inconsistência de um programa global, e não cair bem significa exatamente inefetividade, muito além de qualquer conotação meramente semântica ou de estilo.

Outro exemplo que não deve ser seguido, importado diretamente de países de tradição anglo-saxão, é a previsão de que uma empresa só faz lobby legal. Numa atividade – lobby – que não é regulamentada no Brasil, a mera referência à expressão que tem conotação extremamente negativa pode causar uma má impressão de que a empresa opera por meios escusos.

Quando se trata de compliance é um erro grave presumir que se possa usar rótulos em língua estrangeira num país onde não se fala aquela língua. Recorrer a programas de tradução automática, para reduzir custos, é outro erro grave. Tais programas não têm o vocabulário especializado e customizado necessários sob o ponto de vista legal e regulatório. Qualquer pequeno erro pode, a par de desacreditar toda a iniciativa, atrair uma responsabilidade indesejada para a empresa e até para seus administradores, a depender de situações específicas.

E não é demais reforçar: verter é algo apropriado, ao passo que a mera tradução, sobretudo aquela literal, não é.

A questão é séria. Em situações limites pode haver motivo para que erros provoquem gargalhadas iniciais nos destinatários das normas internas de uma empresa que, por descuido ou desconhecimento, aplique algo que deixa a desejar em termos de compatibilidade com os costumes e cultura local, que varia até regionalmente. E não se trata apenas de uma necessária seriedade com relação às normas escritas em si. Eventual percepção de falta de seriedade pode tolher qualquer possibilidade de efetividade, minando a inicialmente desejada “consistência”, se se estiver a falar de programas globais, e bastando por si só para exigir um cuidado extremo, no caso de programa nacional somente.

É comum que parte significativa dos chamados programas de compliance adotados por multinacionais com sede no exterior (e agora por aquelas com sede no Brasil) prevejam treinamento de diversas ou até mesmo todas as categorias de colaboradores internos e também, por vezes, externos. Tais treinamentos podem ser presenciais, com instrutor experiente, ou não. A capacidade de boa comunicação é essencial para isto e os treinamentos podem ser ministrados online, por DVD ou, por outra mídia ou forma, não presenciais. É aí que pode estar um grande risco à seriedade necessária para o assunto.

Há algo de estranho, por exemplo, em treinamento de compliance com figuras esteriotipadas estrangeiras. Também não há como evitar uma enorme distração e possibilidade de incompreensão no caso de treinamento em língua estrangeira ou mesmo em português que não o do Brasil. E será improvável que mesmo em português do Brasil a distração seja evitada por um sotaque de quem ministra o treinamento, sobretudo em caso de peculiaridades das operações de cada empresa, algumas delas em regiões distantes do das capitais do Sudeste. É possível, por exemplo, que o sotaque errado para o público errado induza a uma percepção equivocada, algo que se pode minimizar com treinamento presencial, customizado.

O que se quer dizer com isso, especificamente, é que o treinamento deve ser sempre adaptado à linguagem local, bem como deve ser modelado para que seja facilmente assimilado pela cultura e questões específicas de cada país, inclusive sensibilidade com relação a pontos relativos à corrupção e fraude, sob a perspectiva da empresa e seus vários níveis de colaboradores, internos e/ou externos.

Falar em redução de custos chama a atenção de qualquer empresa, inclusive multinacionais. Para reduzir custos algumas delas costumam contratar um provedor global de serviços, que pode oferecer os tais “mecanismos e procedimentos internos (…) de incentivo à denúncia de irregularidades”, inclusive hotlines ou helplines. Alguns provedores globais de serviços, por incrível que pareça ainda hoje, desconhecem onde fica o Brasil e que língua falamos. É muito mais do que o clichê de que a capital do Brasil é Buenos Aires e que falamos espanhol. Novamente, a questão é séria e assim deve ser tratada. Não adianta delegar a criação de uma linha direta para denúncia de irregularidades (de ou sem boa fé) para um provedor que use um call center em Cabo Verde, por exemplo, pois grande chance há de que a operadora naquele país fale a língua local, que pouco tem a ver com a nossa que não vai ser facilmente compreendida até por usuários adaptados a interação com estrangeiros. Talvez as empresas ainda que multinacionais mas com sede no Brasil não estejam sujeitas a este tipo de situação, que representa um risco à seriedade de um efetivo programa de compliance, mas devem elas também estar atentas para que copiem modelos falhos.

Em suma, é necessário que qualquer política, código de conduta, programa ou procedimento esteja disponível na(s) língua(s) falada(s) em cada país onde a empresa mantém operações e funcionários. A expressão língua(s), aqui usada, tem um duplo sentido, literal e não literal.

Além disso, deve-se estar atento ao seguinte: políticas globais normalmente estabelecem os princípios orientadores e as regras que a empresa adota para garantir que ela opere em conformidade com as leis em cada país onde atua.

Em virtude dos anos à frente do Brasil em termos de existência de leis relativas ao assunto, os EUA, que adotaram ainda na década de 1970 o FCPA, e mais recentemente o Reino Unido, que adotou lei ampla em 2010, tem uma tradição maior no desenvolvimento de procedimentos internos relativos à matéria. Algumas empresas podem estar sujeitas aos ordenamentos dos dois países acima citados e, agora, também, ao terceiro, brasileiro. Não é tarefa simples compatilizar regras que estejam de conformidade com o ordenamento dos EUA, do Reino Unido e agora do Brasil. E qualquer deslize numa versão brasileira pode expor a empresa a responsabilidades e sanções sob um ou mesmo os 3 ordenamentos, inclusive e sobretudo no quesito de efetividade ou adequação de política, código de conduta, programa ou procedimento.

Vale, portanto, um alerta a todas as empresas sujeitas à Lei 12.846/2013 – e são muitas – a respeito da seriedade com que comunicação e efetividade de programas de compliance devem ser tratadas. 

 

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