Senso Incomum

Benzo caneta e vade mecum para OAB e concursos

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10 de abril de 2014, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Streck [Spacca]Esclarecimentos propedêuticos
Calma. Há uma ligação umbilical entre Valesca Popozuda e o futuro dos concursos, dependendo de como olha(re)mos a “coisa”. O sucesso de “Pai Tício” que benze jurusprudência também dependerá dessa intrincada operação. Por isso é que estou propondo, nesta coluna, a criação de uma Agência de Autorregulação dos Cursinhos. Se funcionará, não sei. Mas, penso que aqui se aplica o “fator tiririca”: pior do que está não fica!

O “Alcance” dos ensinamentos do professor
Tenho sido um crítico contumaz e ácido do ensino estandardizado que assola o país. Faculdades e cursinhos… Há uma disputa pela mediocridade. Dos bancos acríticos da faculdade, cujo imaginário manualesco é inescondível, passa-se para o tratamento a que são submetidos os candidatos em concursos públicos para as carreiras jurídicas: o saber bancário, acrítico, como se o candidato fosse um receptáculo de onde os professores-amestradores-treinadores põem os conhecimentos (acríticos e também repetidos como mantras) de pontos escolhidos dos programas de concurso. O direito deixa de ser um sistema, um ordenamento, e passa a ser uma fragmentação, tiras de pretenso saber. Deixa de ser episteme. Vira doxa. Discutir o direito a partir da normatividade? Nada disso. Não se busca a reflexão. É pura flexão. O amestramento (é behaveorismo – estímulo/reforço) é feito dentro dos padrões de objetificação e hierarquização. Antes de refletir, reproduzir. Pensar? Não. Decorar. Sofrível. Mais grave ainda quando ocorrem situações como a abaixo relatada.

O que vou relatar aqui me foi mostrado por alguns alunos. Trata-se de uma aula vendida on line para todo o Brasil. Vi o vídeo da aula de Direito Constitucional ministrada por um professor de um curso chamado Alcance. Dou o nome aos bois em face do que representa simbolicamente o poder de um professor no imaginário jurídico de terrae brasilis. Deixo de declinar, por enquanto, apenas o nome do professor, mas, dependendo, farei na sequência. Um docente é uma pessoa privilegiada, pois tem a sua disposição centenas de alunos. Isso quer dizer que deve saber algo mais profundo da matéria. Isto é, deve saber mais do que os alunos. Sua comunicação não deve ser aquilo que Galimberti chama de “tautológica” (que será objeto de coluna específica). Vejam: todos somos capazes de equívocos em sala de aula ou em textos e livros. Entretanto, alguns erros, em face da plêiade de livros e artigos à disposição em tempos de pós-modernidade, são indesculpáveis. Esse é o busílis. Ao que consta, o que vou relatar vem se repetindo, repetindo…

Assistindo ao vídeo, deu vontade de pedir desculpas ao professor que se vestiu de mulher e falou sobre Rawls e que critiquei aqui no ConJur. Aquela aula era “padrão Harvard” perto do modelo Tabajara apresentado pelo professor do curso Alcance. Apenas uma parte da aula on line do professor é suficiente para qualquer professor minimamente afeito à ciência jurídica ficar espantado.

Depois de passar com um Carterpillar sobre Friedrich “Müeller” (ele escreveu assim na lousa) e acabar com Savigny e o próprio Müller, nosso doutor passou a atacar de Hesse e “Gadamér” (sim, com acento no e). Diz, então, à boca cheia, que o método hermenêutico-concretizador é de Hesse e “Gadamér” (sic). Bom, de Hesse até é (embora sem esse nome no original). E também não assim como o doutor explicou. Segundo o professor do Alcance, primeiro o intérprete faz uma pré-compreensão da norma em abstrato. Depois vai ao fato. Incrível o que se faz com dois autores. O epistemicídio maior é cometido com Hans-Georg Gadamer. O que ele teria a ver com o “método” concretizador, se escreveu Verdade (contra) o Método? Ora, Gadamer disse que a interpretação é applicatio, negando, portanto, as três subtilitas (intelligendi, explicando e applicandi), justamente para afastar isso que o doutor disse sobre “primeiro o intérprete faz uma pré-compreensão…” (sugiro, para quem não tiver a pachorra de ler Verdade e Método, do Gadamer, leia os meus Hermenêutica Jurídica em Crise e Verdade e Consenso). Aliás, o intérprete faz ou possui pré-compreensão? Duvido que o professor tenha lido a orelha de Verdade e Método. Jogo minhas lekas albanesas depositadas no Banco Central de Tirana nisso. A pré-compreensão (Vorverständnis) de Gadamer, na qual Hesse (e Müller) se inspiraram, é um elemento estruturante… Não é subjetividade. Não é opinião. Não é visão de mundo. Também não é apofântica. Não aguento mais ter de corrigir esse tipo de hermeneuticídio feito por não iniciados em Pindorama. E, diga-se, não é só gente de cursinho que comete esse equívoco; há gente importante por aí que confunde pré-compreensão com subjetividade…

Na sequência, nosso maestro disse que o “método concretizador de Gadamér-Hesse” mistura (a palavra é dele, do maestro) “fato e norma até chegar ao sentido”. Esqueceu que, se falara em Müller, norma já não é o mesmo que “texto” (eis a fórmula de Müller para construir o seu pós-positivismo). Norma já é o sentido, que só exsurge na situação concreta (que Gadamer chama de applicatio) — deveria cobrar por essa aula, pois não? De todo modo, o que disse o doutor está mais para um liquidificador epistemo-procedural. E, sobranceiro, arremata: norma para fato, vai e volta, vai e volta e não para… Ora, isso mais parece um axé jurídico ou sertanejo universitário (vai e vem, vai e volta, lepo, lepo ou algo assim).

Logo depois, desenha um círculo na lousa. Então diz que é de Hesse o círculo hermenêutico concretizador. E que isso conforma “o giro hermenêutico”. Qual é o Hesse que ele leu? Ou não leu? Hesse e o giro hermenêutico? E o exemplo para ilustrar o tal círculo? Simples: “a lei seca”. A norma (sic) mudou o fato, diz o maestro. A norma influencia o fato. Quando a norma volta para o fato (sic), há essa influência (sic). Hum, hum (de novo). Mas, pergunto: se citara Gadamér (sic) e Müeller (sic), de que modo se pode cindir fato e norma? Não teria sido exatamente graças ao giro hermenêutico que já não se praticam dualismos como fato e norma, sujeito e objeto, palavras e coisas, etc? É demais, pois não? E a galera que escuta vibra. E passa no concurso. Para onde vai o Brasil?

Tem mais. Nosso doutor diz que vai fechar com “chave de ouro” o ponto da interpretação constitucional: se em face do circulo hermenêutico aplicar a interpretação evolutiva “para frente”, o circulo, ao invés de ficar parado (sic), “vai para a frente”. E conclui, magistralmente: essa é a espiral hermenêutico-concretizadora (textualmente, ele assevera: "como aquele que você tem no seu caderno"). Em duas palavras, acabou com Hesse e Gadamer. Algo como “do couro saem as correias”, digo eu!

Pensam que terminou? O maestro diz que, em curso para os candidatos ao Ministério Público do Rio Grande do Sul (pobre ex-república farroupilha), ele fez várias perguntas “treinando” os candidatos (foi ele quem disse no vídeo). Tinha um que sabia tudo o que ele, professor do Alcance, havia ensinado. Mas faltava algo. E o nosso doutor então “pegou” o cara, ao perguntar, verbis: “Quais são as implicações da interpretação evolutiva constitucional no círculo hermenêutico concretizador”? Genial, não? Vamos todos a Estocolmo. O doutor vai ganhar o Nobel Jurídico. Meu candidato é ele! Vou pedir que o curso Alcance me alcance as passagens aéreas para Estocolmo prestigiar o evento da entrega do Nobel.

Disse, também, coisas como: “Ronald Dworkin começou trabalhando com princípios e depois a sua teoria foi aperfeiçoada por Alexy”. Bem assim! Mais: "Princípios são valores, mandados de otimização, conflitos resolvem-se com proporcionalidade etc." Quando fala do silogismo e da "escola racional do direito", o professor diz que "o silogismo é "parecido" com a dialética hegeliana (?): premissa maior, premissa menor, conclusão <> tese, antítese, síntese”. Que tal?

Parei de assistir ao vídeo no momento em que ele começou a explicar Rudolf Smend. “Há uma aura ao redor da norma”, perfazendo o método cientifico-espiritual, disse. E Smend virou pó. E o exemplo para explicar Smend? A união homoafetiva. Bingo! Não podia ter exemplo melhor. Encaixa como uma luva. Bem assim era o método científico-espiritual… Bem assim…! Vou estocar alimentos. E livros do Gadamér (sic), do Hesse, do Smend. E a coleção completa do Conselheiro Acácio.

Fora o que o doutor falou sobre Peter Häberle. Pronto. Desliguei.

Por uma autorregulamentação dos cursinhos
Pergunto: o Brasil teria publicado uma interpretação plastificada-resumida do Deuteronômio da Bíblia e por isso estaria sendo castigado por Jeová? Ou estamos sendo castigados porque os cursos de Direito foram criados por Decreto para comemorar a vinda do rei Leopoldo da Bélgica, que tinha acabado de surrar escravos no Congo?

Minha sugestão: que os cursinhos se reúnam e instituam uma Agencia (Auto) Reguladora. Sério. Assim como o Conar, deveria ser criado o CONARCUR (Conselho de Autorregulamentação dos Cursinhos). Fica minha sugestão. Sem qualquer ironia. Recomendo, inclusive, alguns artigos para o Estatuto do CONARCUR:

  • É vedado ao professor vestir-se de mulher ou de pinguim ou fazer paródias que dão-a-impressão-de-que-os-alunos-são-imbecis. Eles não são!
  • O livro que servirá de base para a aula deve ter sido lido, ao menos uma vez, pelo professor. Cada cursinho deve estabelecer uma direção acadêmica, para filtrar o que o docente vai ministrar.
  • Os professores devem ter cuidado ao exprimirem conceitos. Por exemplo, devem ser evitadas menções as menções ao jusnaturalismo como ordem de valores e ao positivismo jurídico como teoria legalista que afasta a moral do direito. Sério. Isso é um assunto muito sério.
  • Fica proibido dizer que Kelsen é um exegeta.
  • Fica proibido falar que a espiral hermenêutica é como a espiral do caderno.
  • Fica vedado o uso de exemplos bizarros e ridículos, como dizer que consunção é o peixão que engole o peixinho.
  • Sobre o que não se pode falar, deve-se calar. 

Isso é necessário para que não haja uma autofagia. Sei que há cursinhos sérios. Nem estou dizendo que o curso Alcance não o seja. O que ocorre é que, na espécie, tratando-se da aula que o professor ministrou on line, temos um sério problema conceitual. Se bobearem, falarei de outras aulas do Alcance. Meus alunos já estão preparando material. Portanto, fiquem espertos… Tem mais munição! Tem coisa de Direito Penal, (mais) Constitucional, Civil…

Há limites no que cada um pode dizer. Esse negócio de uma ideia na cabeça e um microfone na frente e lá vai-aula-de-cursinho tem de acabar. Temos de valorizar os cursinhos. Salvá-los deles mesmos.

Um professor de medicina não pode dizer que o dedo do pé está atrás da orelha. Um sociólogo não pode dizer que Weber foi marxista. E um professor de Direito não pode dizer isso tudo sobre Hesse, Gadamer etc. Fora o resto que disse sobre Müller, Savigny e companhia. Não pode mesmo!

Digo para os alunos que pagam para ouvir isso: isso está errado. Não acreditem. Confiem em mim. Leiam qualquer livro sobre Hesse, Gadamer (para falar só desses) e verão. Lamento ter de dizer isso.

Numa palavra
Não sou dono da verdade. Mas acredito em verdades (no sentido de que fala Gadamer, por exemplo). Portanto, acredito que não se pode dizer qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa. Não posso sair por aí trocando o nome das coisas. E nem nominando o que me der na “telha”. Não posso, por exemplo, chamar de espiral hermenêutica o que é apenas uma vulgata da vulgata daquilo que alguém que leu a orelha do livro poderia ter dito e que os incautos repetem para uma plateia acrítica.

Levemos o Direito a sério. Já chega ter de ouvir que sentença vem de sentire. E que Gadamer é um subjetivista. E que a decisão jurídica é um ato solitário. E que o princípio (sic e mais um sic) da ponderação propicia… blá, blá, blá. E que os argumentos metajuridicos nos levam a… blá, blá, blá. Que a vontade das partes são argumentos metajurídicos… E que princípios são valores. O professor do Alcance é apenas a ponta do iceberg. Ele só é a ponta desse enorme bloco de gelo que esconde a crise da graduação, dos concursos públicos e da própria pós-graduação. Sim, a pós-graduação — inclusive mestrado e doutorado — vem produzindo também “material” para esse tipo de genialidades. Enfim, para parafrasear o doutor do Alcance, trata-se de uma espiral sem fim!

Do jeito que vai, daqui a pouco teremos que conviver com coisas como propaganda de autoajuda e outros quetais pendurados em postes pelas ruas da cidade, onde o Pai Tício oferece seus trabalhos, como se pode ver na figura a seguir, que circula pelas redes sociais:

Pai Ticio

Pronto. Esse pode ser o futuro! Ainda chegaremos lá!

Ou conviver com perguntas sobre a pensadora contemporânea Valesca Popozuda, como na prova de filosofia do segundo grau em Brasília. Logo, logo, isso pode chegar na graduação e nos concursos jurídicos.

Walesca grande pensadora

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