Passado a Limpo

O caso da ocupação brasileira no Acre - 1906

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

10 de abril de 2014, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy - 21/11/2013 [Spacca]Conhece-se por Revolução Acreana os episódios ocorridos por volta de 1902 quando o gaúcho Plácido de Castro comandou um grupo militar que ocupou a região do Acre, então dominada pela Bolívia. Na região, um sindicato norte-americano explorava a borracha.

Seguiu um tratado, assinado em Petrópolis, em 21 de março de 1903, discutido e confeccionado por forte influência do Barão do Rio Branco. Nos termos daquele pacto assinado entre Brasil e Bolívia regularizou-se a presença brasileira no Acre. Em troca, pagamos uma indenização (2 milhões de libras esterlinas), bem como nos responsabilizamos pela construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Plácido de Castro, no entanto, na qualidade de chefe militar da região, logo após a ocupação, outorgou títulos de propriedade de terra na região, beneficiando alguns brasileiros. Ocorre que se tratava de áreas regularmente ocupadas, em relação às quais havia legítimos títulos de propriedade.

Chegou à Consultoria-Geral da República consulta relativa à prestabilidade das outorgas de terra feitas por Plácido de Castro, especialmente se cotejadas com direitos de propriedade, de titularidade dos prejudicados. Cuidava-se de se fixar qual a validade de títulos de propriedade assinados por Plácido de Castro, referentes a terras no atual Estado do Acre, e que já contavam com legítimos proprietários, como se demonstrou.

O Consultor-Geral insistiu na tese de que a troca de soberania significava também o respeito a direitos adquiridos. Isto é, não se podia fazer um botim de guerra, trivializando-se títulos de propriedade, prestigiando-se forças militares que tomaram a região. Bem entendido, ainda que essas forças fossem brasileiras, e que tivessem ampliado a extensão do território nacional.

Direitos reais garantidos pela soberania boliviana persistiam perfeitos e acabados com a transferência de soberania para o Brasil, especialmente nos termos do pactuado no Tratado de Petrópolis. Não se admitiria o esbulho militar; o direito dos povos civilizados exigia que se respeitassem situações consolidadas, que antecediam a presença militar brasileira na região.

O Consultor-Geral da República desconsiderou parecer do Consultor do Itamaraty, para quem teria havido, em favor do reconhecimento da legitimidade dos títulos emitidos por Plácido de Castro, uma occupacio belica, isto é, uma mera ocupação de guerra. Na prática internacional, esta última poderia, em princípio, sufragar a validade dos títulos emitidos por Plácido de Castro.

Nos termo do parecer de Araripe Júnior o Tratado de Petrópolis garantia aos titulares de terras na região do Acre o reconhecimento da validade dos títulos de propriedade negados indiretamente pelos documentos emitidos por Plácido de Castro. Trata-se de importante parecer jurídico que bem esclarece a doutrina dos direitos adquiridos em âmbito de ocupação internacional. Segue o parecer:

Gabinete do Consultor Geral da República. — Rio de Janeiro, 4 de março de 1906.

Exmo. Sr. Dr. J. J. Seabra, Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores. — Restituo os papéis que acompanharam a carta de V. Ex., de 20 do corrente, com as considerações que me ocorrem relativamente ao assunto neles exposto.

Trata-se de saber qual a validade dos títulos de propriedade assinados e expedidos pelo governo revolucionário acreano do coronel Plácido de Castro e referentes ao território situado ao sul do paralelo de 10º 20′.

O tratado firmado em Petrópolis aos 17 de novembro de 1903, aprovado pela lei n. 1.179, de 18 de fevereiro de 1904, e em execução, desde o decreto n. 5.161, de 10 de março do mesmo ano, não fazendo senão consagrar o princípio universalmente aceito em direito internacional, dispôs em seu art. 2° que a “transferência de territórios resultante da delimitação descrita no artigo precedente compreenderia todos os direitos que lhes são inerentes e a responsabilidade derivada da obrigação de manter e respeitar os direitos reais adquiridos por nacionais e estrangeiros, segundo os princípios de direito civil”.

Efetivamente, em casos semelhantes, o Estado não cede a outro território, renuncia apenas o imperium sobre os seus habitantes. “Ainda mesmo nos Estados patrimoniais, poderá, o Estado ceder o seu direito de propriedade, se todo o território lhe pertencia a esse título, mas o objeto principal do ato jurídico era em princípio a renúncia da autoridade pública. O que existe simplesmente é a substituição de uma soberania por outra sobre os habitantes de uma região delimitada por acordo das partes.” (…)

Já Portalis, dizia, na exposição de motivos relativa ao título da propriedade e ao soberano o Império, e que esta última expressão compreendia somente o poder de governo, ideia admitida não só naquele código, mas também no da Itália e no da Bélgica. Na Alemanha e na Áustria o proprietário tem um direito exclusivo, e o Estado deve desapropriá-lo nos casos de necessidade e interesse público, mediante indenização, usando de uma faculdade derivada do imperium, que todas as nações civilizadas têm adotado.

No sentido do direito internacional, adquirir território não é adquirir direito de propriedade sobre a parte cedida, mas sujeita-la a soberania da nação adquirente. (…)

“A propriedade, observa Lafayette (Direito Internacional, I, § 88), do território adquirido continua a subsistir no patrimônio dos particulares, por entre os quais se acha dividida, e só vem para o domínio nacional às porções de terra que já faziam parte das coisas públicas.”

É obvio, portanto, que, tendo a Bolívia cedido ao Brasil, por aquele tratado, o território ao sul do paralelo de 10° 20’, onde sempre exerceu incontestada soberania, não foram nem podiam ser modificados os direitos reais adquiridos preexistentes ao mesmo tratado.

O Brasil, deste modo, terá de reconhecer as posses anteriores à execução do tratado, como título legítimo da aquisição, ainda por ocupação primária.

Ora, tratando-se de fatos jurídicos que se completaram fora do império da lei brasileira, prevalece a opinião emitida no parecer junto pelo consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, isto é, que é inadmissível invocar contra a ocupação das terras devolutas a lei n. 601, de 18 de setembro de 1850 e o decreto n. 1.318, de 30 de janeiro de 1856, em apoio da “proibição de adquirir terras devolutas por outro título que não seja o de compra”.

Os princípios expostos, porém, não legitimam os títulos expedidos pelo coronel Plácido de Castro, nem o anterior esbulho militar.

Os seus atos dão mais a impressão de distribuição de terras em regiões abertas a conquista, ou em terras não sujeitas à soberania e jurisdição de terceiro, do que de um reconhecimento de posses não coetâneas da invasão e da violência.

Entretanto, para justificar estes atos, o citado consultor invoca o princípio da occupatio bellica.

“Em virtude do acordo de 21 de março de 1903, assinado em La Paz, diz ele, as tropas brasileiras ficaram ocupando o território em litígio (ao norte do paralelo de 10°-20′) e foi autorizado o governador militar brasileiro a mandar destacamento ao sul do paralelo 10°-10′, em território reconhecidamente boliviano, para o fim de evitar conflitos entre os acreanos e as tropas bolivianas, devendo continuar a exercer a sua autoridade ao sul do dito paralelo o governador aclamado pelos acreanos.”

E acrescenta:

“Foi assim reconhecida a occupatio bellica em virtude da qual o ocupante exerce de fato todos os direitos do adversário a quem sucede, quer quanto à soberania, quer quanto aos bens do seu patrimônio não podendo dispor da substância destes; sendo nulas as alienações, se por ocasião de se fazer a paz não forem ratificadas expressa ou virtualmente.”

No meu fraco conceito, nem houve occupatio bellica, no sentido do Direito Internacional, nem do acordo de 21 de março se pode deduzir o reconhecimento da soberania de fato no chefe um bando, cuja ação dois governos apenas buscou paralisar.

Na verdade, como era possível conciliar essa soberania de fato com a faculdade que o acordo concedia ao chefe matar brasileiro de mandar destacamentos ao sul do paralelo de 10º – 20’, para o fim de evitar conflitos entre acreanos e tropas bolivianas?

O que é evidente é que no acordo não se cogitou senão de tomar providências de polícia militar naquela região, e de manter a ordem, enquanto se resolvia entre as duas nações a gestão de limites, sendo certo que a continuação do exercício da autoridade do coronel Plácido de Castro ficou de fato subordinada à intervenção do chefe militar brasileiro incumbido de fazer cessar a luta entre os acreanos e as tropas bolivianas.

Vê-se, assim, que o acordo, longe de reconhecer a soberania de fato do grupo invasor, sub-rogou a autoridade a que alude na do interventor brasileiro.

É preciso um grande esforço de logica para atribuir a uma porção de indivíduos insurretos qualidades, que o Direito Internacional só reconhece a forças armadas regulares ou a beligerantes.

Que as forças armadas pelo coronel Plácido de Castro não podiam como tais ser consideradas, afirmam os internacionalistas.

(…)

Se por um lado ao séquito daquele coronel faleciam os caracteres de uma força armada regular, por outro se verifica que, ainda quando essa qualidade estivesse assegurada, a ocupação militar não chegara a realizar-se.

“A ocupação militar ensina Lafayette, reputa-se constituída, desde que o beligerante se apossa efetiva e realmente de uma parte, de um distrito, de uma região, província ou totalidade do território do inimigo, e aí estabelece de uma maneira absoluta e exclusiva o poder de suas armas (Direito Internacional, II, § 348)”.

(…)

As forças do coronel Plácido de Castro não conseguiram dominar a região invadida. É escusado, pois, atribuir-lhes o exercido de uma soberania de fato. A sua situação foi ali muito diversa.

Colocado aquele chefe entre o Brasil e a Bolívia em virtude da ação conjunta dos dois países litigantes, foi obrigado a desistir das hostilidades. Nem se diga que esse fato importava num armistício. As condições da luta não permitiam senão a submissão ao acordo celebrado entre os dois países, isto é, ao interventor brasileiro, acordo a cujas estipulações ficou completamente estranho o referido coronel.

Acresce ainda uma consideração de valor. O consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores diz que o Brasil, pelo tratado de Petrópolis, sucedeu a Bolívia, quanto ao estado de direito, e ao governo acreano quanto ao estado de fato, ficando desta maneira ratificados e confirmados os atos concernentes às terras devolutas ao sul do paralelo 10°- 20′.

Para ter como certa a segunda afirmação seria necessário inverter a ordem natural dos fatos. Quando foi que se fez a paz com Plácido de Castro? Qual o ato em que este interveio oficialmente, de modo a tornar imperativa a ratificação dos atos que praticou?

É bem de ver que há um lamentável equivoco em admitir, entre o Brasil e a Bolívia, um terceiro soberano de fato, que nem foi ouvido, nem tratou com o inimigo, e que por fim, se diluiu diante da ação policial conjunta dos dois países.

Nestas condições, penso que na execução do art. 20 do tratado de Petrópolis não se compreendem o reconhecimento da validade dos títulos de propriedade ou de concessões; de terras assinados e espedidos pelo coronel Plácido de Castro. — T. A. Araripe Júnior.

 

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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