Acesso à justiça

Veto à advocacia voluntária aumenta a desigualdade

Autor

  • Rebecca Groterhorst

    Mestranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo graduada em Direito pela PUC-SP no ano de 2008 coordenadora de projetos do Instituto Pro Bono. Atuou como pesquisadora na Escola de Direito GV e no Instituto Sou da Paz nas áreas cível e criminal.

9 de abril de 2014, 7h42

Muitos relacionam o “acesso à Justiça” unicamente ao direito de acesso ao Poder Judiciário, a contratar um advogado ou ser ouvido por um juiz. Não é assim. Acesso à justiça é promover interesses em juízo quando estritamente necessário e buscar, quando possível, soluções não judiciais, como orientação jurídica, educação em direitos, mediação e conciliação, situações essas que compõem apenas um rol exemplificativo, não se excluindo outros mecanismos para a efetivação de tal direito. [1]

Como se sabe, o acesso à justiça no Brasil está longe de ser igualitário, já que segmentos excluídos da população, além de desconhecerem seus próprios direitos, dificilmente recorrem ou têm acesso ao Judiciário para protegê-los. Eles estão à mercê da própria sorte. Uma garantia que era para ser voltada a todos acaba por ser elitizada àqueles que têm condições financeiras para pagar um advogado particular ou, então, limitada àqueles que estão abrangidos pelos critérios de atendimento da Defensoria Pública,[2] instituição prevista na Constituição Federal brasileira[3] para ser responsável pela orientação jurídica e defesa dos necessitados. Enquanto isso, aqueles que não se enquadram em nenhum desses dois perfis, permanecem excluídos de qualquer tipo de garantia de direitos.

Somado ao quadro acima, o Mapa da Defensoria Pública no Brasil[4] aponta que a maior parte das comarcas dos Estados não é atendida pela Defensoria Pública.[5] Ainda, tem-se que tal instituição não consegue absorver toda demanda que recebe. Para exemplificar, de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Pro Bono no ano de 2013, junto à Defensoria Pública de São Paulo, na área criminal e do júri, tal instituição absorve 56% da demanda; nas áreas cível e de família, 40%; na infância cível, 49%; e, por fim, na infância criminal, 95%. Como se pode observar, na maioria das áreas em que a Defensoria de São Paulo está presente, exceto a infância criminal, ela consegue atuar em apenas metade das demandas que recebe. Tal situação é ainda mais preocupante quando se leva em conta que o critério de atendimento da Defensoria Pública Estadual paulista já é restritivo[6] e, mesmo assim, parte da demanda tem que ser assumida por convênios firmados pela instituição com outras entidades.

E as dificuldades não terminam por aí, pois diante desses dados um tanto quanto assustadores, tem-se ainda que o trabalho voluntário na área jurídica, no sentido de dar assessoria jurídica e defender os necessitados, era proibido até recentemente, sob os argumentos de que a prática constituía captação de clientela, marketing pessoal, dentre outros. Para aqueles que não sabem, até meados de 2013, havia uma Resolução Pro Bono no Estado de São Paulo[7] e outra semelhante em Alagoas, e ambas permitiam aos advogados dar assessoria jurídica gratuita e voluntária somente a entidades sem fins lucrativos que fossem comprovadamente carentes, excluindo a pessoa física de qualquer tipo de atendimento. Dessa forma, o atendimento da população carente que não conseguia ser atendida pela Defensoria Pública, acabava por ser monopolizado pela OAB.[8] O restante dos Estados não tinham sequer alguma normativa ou orientação para desempenho desse serviço voluntário. Ressalta-se que no ano de 2013, o Ministério Público Federal, através de uma Audiência Pública, decidiu debater a questão com a sociedade civil, o que provocou uma movimentação intensa por uma resolução mais ampla e cidadã. E em junho daquele ano, uma liminar da OAB suspendeu todas as resoluções pro bono existentes no país, porém, até o presente momento, tal situação não encontra uma resposta definitiva.

Nesse contexto brasileiro, percebe-se que a proibição da prática da advocacia voluntária e gratuita para pessoas físicas contribui ainda mais para agravar a situação existente e aumentar a desigualdade social. O contrassenso é que os carecedores de meios para ter acesso à justiça, que compõem a grande maioria da população brasileira, jamais se mobilizaram para o exercício e fruição desse direito de forma plena, já que a exclusão socioeconômica os impossibilita de fazer esse tipo de reivindicação.[9] Mais uma vez, o ciclo se repete e essa parcela da população continua marginalizada da própria luta pelo direito a ter direitos. E a judicialização das causas por aqueles que, além de terem conhecimento de seus direitos, possuem — em tese — condições financeiras para demandar em juízo, especialmente no que concerne aos direitos básicos sociais, constitui um paradoxo ainda maior. Isso porque os recursos públicos – que já são escassos – acabam por ser eventualmente destinados para a pequena parcela privilegiada da população na satisfação de suas demandas jurídicas, concentrando-se ainda mais a riqueza.

O direito de igualdade, também previsto constitucionalmente, parece ser violado de diversas formas quando se discute esse assunto tão delicado. Para o efetivo acesso à justiça, não basta apenas garantir tal direito na lei, através de uma igualdade formal, mas, ao contrário, é preciso promover tal direito utilizando mecanismos que permitam uma igualdade material, que une fatores para dar a todos oportunidades idênticas no gozo de seus direitos. Ocorre que, no atual cenário, a democratização do acesso à justiça no Brasil parece estar longe de atingir um nível ideal. Ter direitos e não ter meios para garanti-los não faz sentido, além de não ter eficácia social. Inclusive, enfraquece a democracia de um país que é, de acordo com a Constituição brasileira, um Estado Democrático de Direito. Ora, democracia vai além daquilo que é previsto na Constituição, eleições livres, direito de votar e ser votado e alternância de poder. Democracia é a possibilidade de ter direitos básicos que permitam a cada cidadão formar livremente sua opinião política e debater na esfera pública.[10] Democracia é a participação na sociedade como um todo, é exercício de cidadania! E o acesso à justiça constitui importante ferramenta que permite o exercício de direitos para a construção de uma democracia efetiva, garantindo também uma igualdade social plena.

Fomentar a utilização da justiça e de suas instituições deve sim ser preocupação do Estado, que passou de uma posição passiva para uma posição ativa na prestação de assistência jurídica gratuita e integral à população carente de recursos financeiros.[11] A Defensoria Pública deve e precisa continuar a ser implementada e, ao lado dela, também deve haver outras ferramentas que permitam aos cidadãos ter informação de seus direitos e garantia da defesa deles. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, não promove a igualdade, muito menos o gozo dos direitos sociais básicos. É preciso um olhar mais atento à realidade desse sistema que diz ser justo, pois injustiças devem ser eliminadas de todas as formas. E mais, se existem profissionais da área jurídica dispostos a colaborar para minimizar a gravidade desse cenário de tanta desigualdade, a indagação que resta é: por que não permitir esse trabalho jurídico voluntário, gratuito e solidário na promoção de direitos da parcela marginalizada da população? Vale a pena a reflexão!


[1] Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, pp.67-68. Esses autores reconhecem que uma reforma na assistência jurídica não deveria só incluir a advocacia judicial e extrajudicial, mas deveria ir além, incluindo instituições, mecanismos e procedimentos voltados à prevenir as disputas. Nesse sentido, há uma ampliação das possibilidades de melhoria no acesso à justiça.

[2] Os critérios das Defensorias Públicas são diferentes em cada Estado brasileiro, variando entre 2 (dois) e 6 (seis) salários-mínimos, conforme dados do Ministério da Justiça.

[3] Cf. art. 5º, LXXIV, da CF/88.

[4]Vide:http://www.anadep.org.br/wtksite/mapa_da_defensoria_publica_no_brasil_impresso_.pdf. Consulta em 19 de março de 2014.

[5] A pesquisa contida nesse Mapa da Defensoria Pública demonstra que a Defensoria Pública só está presente em 754 das 2680 comarcas distribuídas pelo país.

[6] Atualmente a Defensoria Pública de São Paulo utiliza três critérios cumulativos para o atendimento. Assim, para ser atendido pela Defensoria paulista, a pessoa não pode ter: (i) Renda familiar superior a 3 salários mínimos; (2) Bens que somem mais de 5.000 UFESP (atualmente R$ 96.850,00); e (iii) Investimentos Superiores a 12 salários mínimos. Disponível em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=2485. Consulta em 02 de abril de 2014.

[7] Disponível em: http://www.oabsp.org.br/tribunal-de-etica-e-disciplina/legislacao/resolucao-pro-bono. Consulta em 02 de abril de 2014.

[8] Nesse trabalho, quando for feita referência à Ordem dos Advogados do Brasil, será utilizada a abreviação “OAB”. Vale lembrar que, até o ano de 2012, havia uma regra que obrigava a Defensoria Pública de São Paulo a firmar convênio com a OAB-SP para complementar o serviço de assistência jurídica gratuita. Tal regra foi discutida no STF, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, que decidiu por dar fim a esse monopólio.

[9] CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e Cidadania. Chapecó: Editora Universitária, 2003, pp. 110-111.

[10] Cf. SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 560

[11] Cf. CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, pp. 9-10.

Autores

  • Mestranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, graduada em Direito pela PUC-SP no ano de 2008, coordenadora de projetos do Instituto Pro Bono. Atuou como pesquisadora na Escola de Direito GV e no Instituto Sou da Paz nas áreas cível e criminal.

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