Direito Comparado

Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

9 de abril de 2014, 8h01

Spacca
Em 30 de novembro de 1813, na praia de Scheveningen, na Haia, uma multidão assistiu ao desembarque do príncipe Guilherme, que se encontrava exilado na Inglaterra desde a invasão francesa a sua pátria, a extinta República das Províncias Unidas dos Países Baixos. O Grande Exército (Grande Armée) de Napoleão fora derrotado pelos russos na trágica campanha do inverno de 1812, cuja melhor expressão simbólica é a Overture 1812, de Piotr Ilich Tchaikovsky, que põe em contraste o som da Marselhesa com o estrondo dos canhões russos, tendo ao fundo a Antífona da Santa Cruz (clique aqui para ouvir ).

Após o fracasso da invasão à Rússia, os franceses são perseguidos por toda a Europa. Com a derrota na Batalha de Leipzig, as forças napoleônicas abandonam os Países Baixos. Um governo provisório ofereceu então a coroa ao jovem príncipe, que retornou a seu país para assumir o trono.

Esse é o marco do nascimento dos Países Baixos e de sua ordem constitucional contemporânea. Os súditos da monarquia holandesa estão a celebrar no triênio 2013-2015 esse importante acontecimento histórico, que se divide em três grandes ocasiões: (a) a refundação da monarquia, com o retorno de Guilherme I; (b) as constituições de 1814 e (c) de 1815, até hoje em vigor. Esses eventos marcam o bicentenário da constitucionalização do estado holandês.

Importa oferecer ao leitor um breve comentário sobre os acontecimentos históricos que levaram à constituição dos Países Baixos em sua conformação contemporânea. A região atualmente compreensiva dos Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, parte do Norte da França e do Oeste da Alemanha abrangeu as “Províncias Unidas”, que se submeteram ao imperador do Sacro Império Romano Germânico em “união pessoal”, a clássica forma de Estado tratada no Direito Constitucional, no ano de 1549. Diversos problemas decorreram dessa união pessoal, especialmente com os efeitos da Reforma Protestante, que teve enorme sucesso nesses territórios, à exceção de algumas províncias do sul (correspondentes à atual Bélgica), que se conservaram católicas. Como o imperador Carlos V era um Habsburgo e a Áustria manteve-se como um bastião do catolicismo nos conflagrados territórios de língua alemã, desde o início as “Províncias Unidas” evidenciaram seu descontentamento com esse arranjo político.

Filipe II, filho de Carlos V e rei de Espanha, assumiu o controle das “Províncias Unidas”, transformando-as em território espanhol, como um prolongamento da Casa d’Áustria. Em 1579, as Províncias Unidas proclamaram sua independência dos reis católicos da Espanha austríaca. Esse ato passou à História como a União de Utrecht, que congregou, entre 1579 e 1581, as províncias rebeldes da Holanda, Zelândia, Utrecht, Güeldres, Groningen, Frísia, Drenthe, Overijssel, Brabante e Flandres. Em 1581, declarou-se abjuração da soberania espanhola. O líder desse movimento foi Guilherme de Orange-Nassau (1533-1584), que governava as províncias da Holanda, Zelândia, Utrecht e Borgonha em nome dos austríacos.

Ele não só traiu o imperador do Sacro Império, como trocou de religião e converteu-se em líder dos protestantes nos Países Baixos. A família Orange-Nassau até hoje é a dinastia reinante dos Países Baixos e um de seus membros mais célebres no Brasil é o conde (depois príncipe) João Maurício de Nassau-Siegen, que governou o Brasil Holandês entre 1637 e 1640.

Oitenta anos de guerra entre a Espanha austríaca e as Províncias Unidas, organizadas sob a forma pouco usual de uma república confederada, arruinaram os espanhóis e deram aos Países Baixos uma vocação de conquistadores navais, que conduziu à formação de um império colonial que duraria até a segunda metade do século XX. Na famosa Paz de Vestfália, de 1648, considerada o marco de nascimento do moderno Direito Internacional, os Países Baixos tiveram reconhecida sua independência sob a forma da “República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos”, que abrangia a Frísia, Groningen, Güeldres, Holanda, Overijssel, Utrecht e Zelândia. A maior parte das províncias do sul não integrava esse novo Estado, em larga medida por serem católicas e terem mantido sua lealdade aos soberanos dessa religião. Parte da província de Flandres viria a se unir ao território francófono da Valônia e constituir o atual Reino da Bélgica, que congrega povos de línguas tão diferentes como o flamengo e o francês.

Essa nova república assombraria os espanhóis e portugueses, disputando com eles espaços na América, em África e na Ásia. O Brasil, colônia espanhola após a união dos reinos de Espanha e Portugal, com a morte do rei D. Sebastião, foi invadido pelos Países Baixos no evento conhecido como Invasões Holandesas (1624-1654). Na verdade, as Províncias Unidas e muitos de seus burgueses e aristocratas eram acionistas da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, a famosa WIC, a primeira sociedade anônima da História, a verdadeira responsável pela ocupação e administração do Brasil Holandês.

O leitor deve ter notado que não uso a palavra Holanda como sinônimo de Países Baixos. Tecnicamente falando, Holanda é uma das províncias dos Países Baixos. Hoje, a Holanda (rectius, Holanda do Norte e Holanda do Sul) é uma das partes do Reino dos Países Baixos, que compreende também os territórios de Aruba, Saint Maarten e Curaçao, além dos municípios de Bonaire, Saba e Santo Eustáquio, que, até 2010, formavam as Antilhas Holandesas. Doravante, vai-se referir a “holandês” como qualificativo das instituições e dos súditos dos Países Baixos, mas com a advertência sobre o caráter equívoco do termo.

Muito bem, a República das Províncias Unidas manter-se-á até 1795, quando se deu a invasão pelas tropas revolucionárias francesas, que instituíram uma nova realidade político-jurídica para aqueles territórios, denominada de República Batava. Esse estado republicano teve enorme apoio popular dos holandeses e importou a expulsão e o exílio de Guilherme V de Orange, pai do príncipe Guilherme, que retonaria ao país em 1813, como dito no início da coluna.

No período de 1795 a 1813, os holandeses foram um estado vassalo da França revolucionária. Muitas das instituições jurídicas francesas foram adotadas pela República Batava, como o Código Civil francês e a reorganização administrativa do Estado. Em 1806, como um ato de força de Napoleão Bonaparte, os franceses criaram o Reino da Holanda, governado por Luís Bonaparte, irmão do imperador francês. A existência dessa monarquia foi efêmera. Em 1810, o Império francês anexou o Reino da Holanda.

Durante a Revolução Francesa e o governo napoleônico, o império colonial holandês foi ocupado pelos britânicos, como punição por sua aliança com a França, e por terem fornecido soldados ao Exército francês nas guerras contra os britânicos, prussianos, austríacos e russos. A despeito disso, a aliança britânico-holandesa foi reconstituída com o tempo. Os habitantes dos Países Baixos logo perceberam que seu país não passava de um protetorado francês e um fornecedor de tropas para as guerras continentais. É também notável a profunda crise econômica a que o país foi arrastado e que duraria até a metade do século XIX.

Na recepção do príncipe Guilherme em 1813, na praia de Scheveningen, estavam muitos dos líderes que acolheram os franceses como libertadores e apóstolos de um tempo de liberdade, igualdade e fraternidade em 1795.

É muito curioso como a História é repleta dessas manifestações de apoio a líderes militares que derrubam governos ou invadem países, porque imbuídos de propósitos de regeneração nacional, e que, anos depois, são esquecidas e transformadas em demonstrações retroativas de coragem e rebeldia contra os antigos aliados. É o que poderíamos chamar de “coragem assincrônica”. Infelizmente, essas pessoas tornam-se, uma vez passada a tormenta, heróis pelo que nunca foram.

O nascimento do contemporâneo Reino dos Países Baixos deu-se em grande medida pela ação de um jurista formado na Universidade de Leiden, o monárquico da facção organgista [defensor da entronização de um membro da Casa de Orange-Nassau] Gijsbert Karel graaf [conde] van Hogendorp (1762-1834).

Van Hohendorp era versado em leis, mas, como muitos de sua geração, também sabia usar o sabre e o mosquete. Por intercessão da princesa Guilhermina da Prússia, ele foi aceito na academia militar de Berlim e lutou na Guerra de Sucessão da Baviera. Em 1786, ele doutorou-se em Direito na Universidade de Leiden e, em seguida, assumiu o cargo de consultor jurídico da cidade de Roterdã.

Com o vácuo de poder nos territórios holandeses, com a fuga das tropas napoleônicas ante a invasão das forças russas, Gijsbert Karel graaf [conde] van Hogendorp uniu-se ao tenente-geral Leopold graaf [conde] van Limburg Stirum (1758-1840), membro de uma antiga e aristocrática família holandesa, e a Frans Adam Jules Armand baron [barão] van der Duyn (1771-1848), camareiro do príncipe de Orange, para formar uma junta governativa provisória. Esses três homens, um ambicioso burguês e dois membros da nobreza, passaram à História como os integrantes do “Triunvirato de 1813”, que lançou uma proclamação geral aos Países Baixos criando um conselho “em nome do príncipe de Orange” e liberando os holandeses do juramento de fidelidade ao imperador dos franceses. Naquele tempo, esses juramentos ainda eram levados a sério e se fazia necessário dissolver formalmente esses laços com o antigo soberano.

Atendendo ao chamado do triunvirato de 1813, em cuja homenagem há um monumento no centro da Haia (Clique aqui para ver), o príncipe de Orange voltou ao país a bordo de uma fragata inglesa. Em 30 de novembro de 2013, com a presença do novo rei holandês, Guilherme Alexandre, participou de uma cerimônia que reproduziu a chegada de seu antepassado à praia de Scheveningen.

É conveniente voltar a Gijsbert Karel graaf [conde] van Hogendorp, cuja tataraneta foi a famosa atriz Audrey Hepburn e ao processo de transição dos anos 1813-1815.

Desde antes da queda dos franceses, van Hogendorp dedicou-se a elaboração de um anteprojeto de constituição para seu país. Após a entronização de Guilherme de Orange, formou-se uma comissão para redigir o novo texto constitucional. Esse foi um de seus primeiros atos no poder no período de dezembro de 1813 a março de 1815, no qual Guilherme governou o país na qualidade de príncipe soberano e não de rei.

Em 1815, Napoleão Bonaparte fugiu do exílio na ilha de Elba e reassumiu o trono francês. Iniciava-se o famoso “governo dos 100 dias”, de 20 de março a 8 de julho de 1815. Imediatamente, formou-se uma nova aliança internacional das monarquias europeias contra o imperador dos franceses. Guilherme de Orange proclamou-se rei dos Países Baixos em 16 de março de 1815, já sabedor da volta de Napoleão e temeroso de perder seu recém-conquistado trono com a volta de seu antigo adversário, que rapidamente engajou seu país em uma guerra nos territórios holandeses.

A derrocada de Napoleão ocorreria em 18 de junho de 1815, na Batalha de Waterloo, quando foi derrotado pelas forças britânicas, prussianas e holandesas, estas últimas lideradas pelo filho do rei holandês, o príncipe Guilherme Frederico.

O fim da era napoleônica permitiu que o novo estado holandês pudesse ser reorganizado. Em junho de 1815, os antigos Países Baixos Austríacos (correspondentes à região de maioria católica e que hoje integra o território da Bélgica) foram incorporados ao reino de Guilherme de Orange, o que demandou a elaboração de um novo texto constitucional, adaptado à nova realidade territorial e também humana daquele Estado e que expressasse também a vontade dos novos súditos.

O projeto de 1815 foi submetido a um grupo de representantes do Norte e do Sul para aprovação em nome de suas gentes. Os protestantes do Norte aprovaram o texto, ao passo em que ele foi amplamente rejeitado pelos católicos do Sul. A despeito da divisão interna do país quanto ao texto da nova constituição, o rei Guilherme sancionou-a. Sua decisão revelar-se-ia equivocada: em 1839, essa artificial união das antigas províncias católicas e protestantes dos Países Baixos seria desfeita com o tratado de separação que criaria o Reino da Bélgica, composto da Valônia e de Flandres. Antes disso, já em 1830, os belgas proclamaram-se independentes e receberam o apoio das nações europeias.

A Constituição de 1815 manteve-se em vigor e, com sucessivas reformas nos séculos XIX e XX, conserva-se como a base da organização jurídico-política do Reino dos Países Baixos. Na próxima coluna, far-se-á a análise de seu conteúdo.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!