Consultor Tributário

Multas tributárias devem observar a constituição

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

9 de abril de 2014, 11h29

Spacca
Não é novidade que as multas tributárias assumiram estágio de preocupação em toda a extensão do nosso ordenamento tributário, tanto no excesso dos valores cobrados, quanto na forma aleatória e pouco rigorosa com que são manejadas. Ora, todo o aparato sancionador tributário deve integral obediência aos princípios constitucionais de proteção do cidadão aplicáveis ao direito penal e processual em geral. Por esse motivo, urge reforma em torno do aparato sancionatório, que deve ser dotado de máxima efetividade, mas dentro de um modelo coerente com o Estado Democrático de Direito, na suportabilidade derivada da proibição de excesso (com aplicação decorrente da proibição de confisco), assim como da aplicação dos princípios de ordem penal, pela unidade do ilícito e da consequente proteção dos apenados em geral.

Basta pensar que a tipificação de “fraude” pode justificar denúncia criminal. Ora, não parece razoável admitir que justamente no processo administrativo tributário, no qual as obrigações assumidas independem da manifestação de vontade, ao acusado não se teria a aplicação dos mesmos princípios e critérios do processo penal, aos fins de defesa das sanções tributárias.

A administração tributária não tem qualquer privilégio ou liberdade para aplicar multas e imputar ilícitos aos particulares sem observância dos limites constitucionais, dadas as responsabilidades que vinculam qualquer agente de fiscalização ou julgador ao devido processo legal, como a presunção de inocência, o dever de provar o que alega, a publicidade e a motivação dos atos, bem como o respeito à ampla defesa.

No que concerne às sanções, o artigo 97, V do Código Tributário Nacional prescreve que somente lei pode estabelecer “a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas”. A legalidade tributária é, portanto, requisito para a tipificação dos ilícitos e das respectivas sanções nos atos de aplicação de sanções, como atividade plenamente vinculada que deve obedecer as leis e os atos normativos infra legais vigentes. Os princípios penais nullum crimen sine legis e nulla poena sine lege também orientam o direito tributário repressivo, observados os paradigmas do necessário exame de culpabilidade.

A aplicação de sanções tributárias não tem qualquer fundamento inquisitório ou de cunho destrutivo ou confiscatório, ao tempo que está sujeita a limitações de natureza qualitativa e quantitativa, como leciona Sacha Calmon Navarro Coêlho. Deveras, não se pode afastar o exame da culpabilidade, que deve ser conhecida e apreciada porquanto intimamente relacionada à exigência constitucional de individualização das penas (artigo 5º, XLVI da Constituição Federal), a qual exige a verificação das características individuais do infrator quando da gradação da sanção. Mas não só.

Ao tempo em que o “auto de infração e imposição de multa” (lançamento com aplicação de sanções) traz consigo a pretensão punitiva estatal mediante aplicação de multas, algumas sobremodo severas, como são as multas agravadas, no caso de simulação ou na imputação de fraude, nestes casos, assume notável relevo o emprego dos princípios do processo sancionador, seja este administrativo ou judicial, principalmente aqueles do contraditório e ampla defesa, no exercício dos direitos inerentes ao devido processo legal (artigo 5º, LV, LIV, LVII, XLV, XLVI, da Constituição).

A razão não poderia ser outra senão aquela do papel que o processo administrativo envolve, como parte significativa da atividade sancionadora do Estado, preparatória do título executivo extrajudicial que poderá ensejar posterior execução fiscal ou sanções penais. Diante de tantas e significativas possíveis afetações ao direito de propriedade e liberdades dos indivíduos, a Constituição de 1988, ao instaurar um Estado Democrático de Direito, não poderia afastar do processo, inclusive o administrativo, a presunção de inocência e o dever de contraditório em todas as suas etapas.

O direito à defesa é a resposta da democracia contra os arbítrios do Estado, o que reclama efetividade plena, como norma constitucional a ser concretizada em todos os casos. Não basta “abrir prazo” ou dar direito de manifestação ao acusado para que se admita por satisfeito o direito à ampla defesa. Todas as suas provas devem ser consideradas e qualquer glosa ou exigência devem ser amplamente motivados, ao amparo da presunção de inocência, da prevalência do ônus da prova de quem acusa, mas especialmente com respeito ao princípio penal que protege o benefício da dúvida, o que não pode ser motivo para desqualificação dos atos praticados, para impor regimes mais gravosos, como arbitramentos e outros.

As garantias das provas e do dever de ônus da prova da Fazenda Pública (quem acusa) também são exigidas na conformidade necessária com a Constituição. A Administração Pública somente pode impor ao particular penalidades e cobranças de tributos com provas inequívocas dos fatos geradores (ao apurar a capacidade contributiva, no caso dos impostos) e dos ilícitos (ao provar a culpabilidade). Este é o mínimo de segurança jurídica do nosso ordenamento jurídico.

Quanto ao ônus da prova, impõe-se afastar prática assaz comum que afronta o princípio de moralidade administrativa, que é aquela de alegar provas genéricas ou insuficientes no auto de infração, a pretexto de satisfazer o ônus da prova da autoridade fazendária, mas que, ao fim e ao cabo, serve para “forçar” o contribuinte à produção de provas, numa espécie de inversão do “ônus da prova” ou de prova negativa.

As garantias de Direito Penal e de Processo que se encontram estabelecidas na Constituição são objetivas e dotadas de auto-executoriedade, logo, independem de lei que as regulamentem ou que lhes possa atribuir algum sentido material adicional. Portanto, aplicam-se incontinenti e sem restrições ao Direito Tributário, malgrado resistências normativas dirigidas a impedir a aplicação de normas constitucionais no processo administrativo fiscal.

Sabe-se, o artigo 26-A do Decreto 70.235/72, incluído pela Lei 11.941, de 2009, prescreve que “no âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.” Mas tudo bem entendido. Aplicar a Constituição, in casu, garantias constitucionais do direito processual ou penal, nada tem que ver com afastar a aplicação ou deixar de observar lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade. Lei nenhuma pode deixar de aplicar regra constitucional objetiva de garantia penal.[1] E, por conseguinte, não se trata de declarar “inconstitucionalidade” ou deixar de aplicar lei, quando na hipótese regra objetiva da Constituição deve ser aplicada, sem oportunidade para qualquer regulação por lei ou ato administrativo.

E, para os mais formalistas, a “lei” expressa não deixa dúvidas. O artigo 9º do Decreto 70.235, de 6 de março de 1972, sempre prescreveu que “a exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade isolada (…) deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito.” Nesse particular, quer-se significar que o ônus da prova é exclusiva da Administração. Portanto, a Administração submete-se ao dever de presumir como verdadeiros os fatos contábeis registrados pelos particulares; e, para afastar essa presunção, é dever do Fisco provar, cabalmente, quais os lançamentos contábeis presentes nos Livros Fiscais que não mereceriam fé.

A garantia constitucional de que o acusado de qualquer ilícito tributário tenha direito à presunção da sua inocência[2] enquanto não se prove sua culpabilidade, com os meios necessários à defesa, envolve o dever da Administração de apurar, com isenção e cautelas, todas as provas apresentadas, sem qualquer inversão do ônus das provas, ao se manter o dever de provar o que pretende alegar. Ao converter o processo de apuração de provas em mera formalidade, o meio (lançamento) assume o papel de vil condenação, sem qualquer respeito à Constituição.

Cumpre à Administração, pois, carrear esforços para produzir provas necessárias e suficientes à demonstração da efetiva ocorrência do fato jurídico tributário, e, agindo assim, identificar, i) respeitados os direitos individuais e ii) nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte (artigo 145, parágrafo 1º da Constituição Federal). Decerto que a Administração não se limita pelas provas apresentadas pelo contribuinte, cabendo-lhe o uso do poder investigativo do artigo 195 do CTN, de diligências probatórias previstas na lei. Por isso, na construção dos seus argumentos, as provas devem ser irrefutáveis e suficientes para afastar quaisquer outras produzidas pelo contribuinte (o ônus da prova será sempre da Administração, e não do contribuinte).

E sempre que o contribuinte possua provas hábeis a justificar suas condutas, ao Fisco caberá ainda o ônus da prova para motivar o afastamento das provas do contribuinte. Nesse contexto, diante da insuficiência de provas para imputar o ilícito, ou quando o contribuinte logra antecipar documentos aptos ao afastamento do suposto ilícito, o agente da fiscalização deve assegurar ao particular a presunção de inocência, pois a dúvida ou a insuficiência não podem ter como consequência a “condenação”, pela lavratura de auto de infração com multas, adicionais de multas agravadas e imputação de ilícitos de fraude.

Em vista disso, o lançamento tributário deve descrever com clareza o motivo fático e legal, congruente com o conjunto probatório colhido pela fiscalização, de modo que não haja dúvidas entre a relação implicacional entre os instrumentos probatórios, que servem de elementos de convicção, e a construção do fato jurídico tributário. Este até pode ser um conjunto de indícios, mas desde que sejam graves, precisos e convergentes[3] para confirmar a ocorrência do fato jurídico tributário. Quando as alegações do contribuinte são tempestivamente prestadas, com adequação e transparência, e estas não são consideradas na motivação da autoridade fazendária na expedição da sua decisão, caem por terra, uma a uma, as garantias constitucionais do processo. Cedem ante o arbítrio do Estado. E, assim, o auto de infração, ato administrativo tipicamente acusatório, converte o lançamento tributário em instrumento inquisitivo e odioso.

Destarte, os princípios do direito de defesa, da presunção de inocência, do ônus da prova, vê-se, terão sempre cabimento nos processos administrativos relativos a autos de infração em matéria tributária. Contraria o Estado Democrático de Direito fundado pela Constituição de 1988 admitir uma aplicação do Código Tributário Nacional ou das leis processuais anteriores sem o filtro dos seus princípios. Logo, descumpre a lei tributária quem não observa a presunção de inocência e as garantias democráticas do contraditório e do dever de ônus da prova a quem acusa.

[1] NEDER, Marcos Vinicius. LOPEZ, Maria Tereza Martinez. Processo administrativo fiscal federal comentado. 3a Ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 417. “Súmula CARF nº 2: O CARF não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária.”

[2] Cf. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.

[3] LIMA, Marcus Vinícius Neder de. A jurisprudência do conselho de contribuintes do ministério da fazenda sobre planejamento tributário. Revista Internacional de Direito Tributário. n. 8, p. 129-138.

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