Ditadura militar

Lei da Anistia deve ser revista, mas prescrição impede

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7 de abril de 2014, 17h26

A Lei de Anistia deve ser revista. Entretanto, as leis atuais não permitem que isso seja feito. Esse foi o sentimento externado pelo criminalista José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e atualmente membro da Comissão Nacional da Verdade, durante debate que reuniu três ex-ministros da Justiça sobre os 50 anos do golpe militar. “A Lei da Anistia tem que ser revista. É a bandeira que eu seguro. Mas encontro grandes resistências jurídicas que me levam a reconhecer dificuldades para que se possa afastar a prescrição”, afirmou, ao responder questionamento do professor da Escola de Direito da FGV de São Paulo, Oscar Vilhena Vieira.

O advogado Miguel Reale Junior seguiu o mesmo pensamento do companheiro José Carlos Dias. Porém, observou que mais importante que a revisão da lei é manter viva a memória do que ocorreu no período da ditadura militar. “Mais importante do que a Lei da Anistia é o resultado da Comissão Nacional da Verdade, pois o importante da ditadura é manter a memória viva, saber quem foram os culpados, as vítimas, e fazer reflexões sobre isso, para que a população, principalmente os jovens, continuem a busca pela democracia. Revogar a Lei da Anistia seria apenas uma forma de mutilar mais pessoas. E do ponto de vista jurídico, seria anticonstitucional, pois há a lei da prescrição”, complementou.

Os dois participaram, junto com o ex-secretário especial de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo José Gregori, debate na Fundação Getulio Vargas sobre os 50 anos do golpe. O encontro aconteceu na quarta-feira (2/4). Diante de uma plateia formada basicamente por alunos da Direito GV, os três ex-ministros da Justiça contaram um pouco do que viveram durante o regime militar e a dificuldade de atuar como advogado no período. Os depoimentos emocionaram o público e principalmente Antonio Angarita, fundador da Direito GV, que chorou ao ouvir os colegas.

Regime da força
José Gregori foi o primeiro a dar seu depoimento. Em cerca de dez minutos, lembrou que o regime que depôs João Goulart violou a Constituição Federal da época, que não permitia sua deposição. Segundo ele, por não seguirem a Constituição, os golpistas criaram um Direito pela força das armas, editando atos institucionais. O primeiro, que segundo Gregori não chegou a ser numerado, foi criado nove dias depois do golpe. Nele, os militares fizeram uma espécie de introdução antes entrar na regulamentação e nela deixaram claro que o que passava a vigorar no Brasil era a lei do mais forte, a lei da truculência.

Gregori, contou que nessa introdução do ato, os militares deixaram claro que o Brasil passava para um regime não constitucional ao afirmarem que não é o Congresso Nacional que legitima o movimento. E sim, o movimento que legitima o Congresso. Com base na lei da força, depuseram o presidente, cassaram mandatos, e a partir daí o Brasil viveu dias de violência à lei, afirmou o ex-secretário. 

“A Constituição Federal era apenas um pedaço de papel. Isso foi acarretando aos poucos violência contra as pessoas, a partir do momento que essas começaram a questionar por que a força era a lei. Tudo era considerado um ato contra o regime”, afirmou. Segundo Gregori, de degrau em degrau, o autoritarismo virou ditadura e chegou-se à tortura. “Usaram a tortura como método de fazer política. Hoje, essa tortura não é um exagero de literatura, foi um fato. Houve tortura. E muita. Contra inocentes, crianças, mulheres, religiosos, intelectuais, operários”, contou. Segundo Gregori, os militares criaram um mito do perigo comunista para tentar legitimar o regime da força.

Ao concluir, Gregori lembrou que o restabelecimento da democracia só foi possível devido à resitência que existiu. “Houve muita gente que resistiu, a despeito de todas as dificuldades, criaram comissões de direitos humanos, houve uma indignação que esteve sempre presente e o povo não capitulou. E assim foi possível, aos poucos, sem violência, restabelecer a democracia no Brasil”.

“A vida demonstrou com fatos e não com palavras, não com livros, não com testemunhos, mas me mostrou com fatos que não há comparação entre a democracia e o autoritarismo”, completou. 

Episódio doloroso
Em seguida, foi a vez de José Carlos Dias contar o que viveu no período. Ao iniciar, observou que o público presente era formado basicamente por alunos de Direito e afirmou que nas faculdades, infelizmente, não se estuda a Justiça militar. Segundo seus cálculos, o advogado defendeu mais de 500 perseguidos políticos. Entre eles comunistas, cristãos, pessoas que entraram para a luta armada. “Eu defendi a todos com uma perocupação muito grande. Procurando sempre exercitar minha defesa com rigor técnico, sem abrigar o pensamento político dos clientes, mas sempre respeitando. Eles sempre dizendo o que quisessem e eu sempre defendendo nos limites que pudessem”, ensinou.

José Carlos Dias lembrou que todos os advogados sofriam com o temor da ditadura, mas superaram o medo com o trabalho cotidiano. Segundo ele, o mais duro foi conviver com a tortura e receber relatos de familiares de pessoas desaparecidas ou quando o próprio cliente contava o que sofreu. Com a voz embargada, José Carlos Dias contou um caso específico que viveu, para ele o mais doloroso da vida profissional: 

“Uma professora universitária foi morta depois de estuprada e torturada na casa de Petrópolis. Essa mulher, admirável pelo que acreditava, era Heleny Ferreira Telles Guariba. Para mim, o episódio mais doloroso da vida profissional.

Heleny estava presa junto com seu companheiro. E eu insistindo no relaxamento de prisão. Até que um dia foi deferido o pedido de Heleny. Ela passou a frequentar meu escritório, virou amiga de todos, até que um dia o procurador da segunda auditoria me disse: "Zé Carlos, por uma questão de lealdade, questão ética, te informo que acabei de pedir a prisão dela novamente porque Heleny voltou à subversão".

Eu agradeci, confesso que fiquei sensibilizado. Aquela informação não condizia com o caráter dele. Telefonei para ela dizendo que precisava conversar. Falei que precisava sair de casa às oito em ponto. Na hora marcada, em frente ao prédio, havia uma perua Veraneio com agentes do DOI-Codi. Três homens olhando. Meu pensamento foi: "Dancei, agora estou preso". Vi Heleny. Quando ela se aproximou, percebi que estava ruiva. O Durval tinha razão, ela pintou o cabelo, ela voltou. Quando chegou, eu a abracei. Ela levou um susto por receber um atraque do seu advogado, de repente. Eu sussurei em seu ouvido que estávamos sendo vigiados e disse: "Foi decretada sua prisão preventiva. Portanto, faça o que quiser". Ela disse: "Vou fugir". Eu disse: "Você quer dinheiro?" E ela: "Até nisso você pensa?" E começou a chorar. Virou as costas e correu.

Eu olhei para o lado e os três tiras estavam olhando para nós e não fizeram nada. Estranhei. De lá descobri que ela foi para o Rio de Janeiro e foi presa. Acabou sendo morta na casa da morte. Esse fato me arrebenta porque sou vocacionado com a liberdade. E de repente o MP fez de mim um instrumento para que essa mulher viesse a ser presa, torturada e morta. Eu, que quisera ser apenas e tão somente um instrumento de liberdade, fui um instrumento de violência desse Estado brasileiro”.

Ao concluir, José Carlos Dias afirmou que hoje, na Comissão Nacional da Verdade, revive seu comprisso com o país para que nunca mais ocorra uma nova ditadura militar. “Nosso compromisso é mostrar tudo o que vocês viveram. Trazer o passado para o presente para que o futuro seja de compromisso com a liberdade.”

Segurança Nacional
Encerrando os depoimentos, Miguel Reale Junior contou o episódio que viveu ao tentar organizar um ato público que reuniria lideranças civis para mostrar que havia um caminho democrático a ser seguido. “Nós devemos trazer aos jovens um depoimento do que vivemos para que nossa experência possa servir na construção da nossa democracia, que, na minha opinião, ainda é frágil”, explicou.

Segundo Miguel Reale, o ato aconteceu, mas fracassou porque Juscelino Kubstichek não compareceu. Além disso, afirmou que o ato estava predominantemente ocupado por pessoas da União Democrática Nacional (UDN). Segundo Miguel Reale, não só os militares, mas os civis também cooperaram e muito para o endurecimento do golpe de 1964. E esse movimento na sociedade civil foi liderado pela UDN. “A Marcha pela Família não era uma marcha da sociedade, mas uma marcha da elite paulistana”, disse.

De acordo com o advogado, os civis tinham a expectativa de que seriam candidatos em 1965. Mas a UDN, na sua posição golpista, trazia o viés autoritário. “Esse viés se firmou quando as lideranças civis não perceberam que os militares traziam em seu bolso a ideologia da segurança nacional. Essa ideologia, que inspirou os atos institucionais, gerou a ideia do inimigo, da censura, da visão de que vivíamos em uma sociedade incapaz de dirigir a si própria.”

Para ele, a ideologia de segurança nacional consumiu as lideranças civis e legitimou todos os atos que os militares entendiam necessários para a segurança de um país que era tratado como infantilizado. Para Miguel Reale, os militares infantilizaram o país ao impôr o que eles achavam que seria melhor para o país, como se o povo não fosse capaz de decidir.

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