Alfredo Tranjan

Lembremo-nos dos que usaram a razão, e nunca a força

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3 de abril de 2014, 7h42

À Amanda, prima querida.

Nós, advogados jovens, não entendemos bem desse assunto em pauta. Essa coisa de ditadura, ainda mais com o mar de opiniões débeis e tresloucadas de gente pedindo ordem e progresso como se ordem nascesse de porretes e progresso fosse algo do dia para noite, confunde ainda mais as coisas.

Nessa dicotomia política falsa e estéril surgida graças às lutas pelo domínio do Executivo nacional e estadual (principalmente em São Paulo) nossa geração — a dos que têm trinta e poucos anos — está um pouco perdida.

A história parece estar um pouco mambembe. Nos livros estava escrito: Ditadura militar. Hoje se fala em ditadura militar e civil.

Altas autoridades civis falavam em certa aberração, vitórias das armas sobre a razão, mas agora até um ministro do Supremo Tribunal — e dos mais legalistas — chama o período de 64/85 como “um mal necessário”.

A abominação da tortura e dos métodos de um poder estelionatário — pois que mentiu em sua proposta de tomada do poder — está ficando para segundo plano.

Os inimigos vermelhos mudaram de cor. Por nossa história de exclusão social parecem pretos — ou quase pretos.

A insegurança pública soviética transmutou-se para a insegurança pública interna. O inimigo somos nós mesmos, nós ou nossos conterrâneos. Moram mais longe do que moravam os de Moscou: na Vila Kiev, na Vila Palestina, na Vila Saigon.

Não temos algumas culturas essenciais. A da democracia, como bem disse o sociólogo e cientista político Fernando Henrique Cardoso. A dos direitos e garantias individuais como extrato histórico de suas violações. E por fim, a da história como elemento de comparação e direcionamento do futuro através de suas lições.

Como os ensinamentos do mundo estão diluídos e principalmente empobrecidos, nos restam, apenas, as histórias dos grandes homens. Para os advogados criminais a tradição oral, os bares, os contatos rareados com os antigos e alguns livros tornam-se fontes que, embora difíceis, podem abastecer os mais atentos.

Alguns têm sorte. Minha querida amiga Marina Dias, grande advogada criminal (embora diminuta em tamanho), tem a facilidade (que exerce com orgulho de arrepiar) de ser filha do gigantesco (e também diminuto) Jose Carlos Dias.

Outros queridos amigos, como Alberto Toron, Leonidas Scholz, Dora Cavalcanti, Augusto de Arruda Botelho e Fabio Tofic de serem filhos profissionais de Márcio Thomaz Bastos. Filhos não de sangue, mas que penetrados pelo suor e sangria da advocacia criminal.

Renata e Fábio Mariz de igual modo. São filhos do enorme Antonio Claudio Mariz de Oliveira e seguirão as exuberantes glórias do pai. Juntem-se Paola Zanellato e Sérgio Alvarenga, filhos daquele suor descrito acima, mas de outra sacristia cheia de dores e amores.

E por aí vai.

Somos a única profissão que o filho de um Pelé pode ser um grande centroavante e não um razoável goleiro.

Vide Renato de Moraes e Eduardo de Moraes e essa linha sanguínea lindamente estarrecedora. O avô, Evaristo de Moraes, é sem dúvida o maior advogado da história do país. Nosso Ferrri, nosso Darrow, nosso Giaferri.

Seu pai, por sua vez, foi considerado com bastante acerto o maior advogado criminal da segunda metade do século passado. E quem falou isso sobre Antônio Evaristo de Moraes foi Márcio Thomaz Bastos, que em público já confessou ser um homem vaidoso. Ambos, Renato e Eduardo, postam-se por merecimento (e certo anabolizante genético chamado brilhantismo) como cardeais da cúria carioca.

Sinto carinho enorme por todos que citei. E uma invejinha — das brancas.

Ter como ídolo alguém com quem se priva da intimidade e o dia a dia parece maravilhoso.

Coube-me, embora exercendo uma modesta advocacia, ser filho dos livros. A pouca sorte me fez ter o sangue de um dos deuses da defesa, mas conhecê-lo quando eu era jovem demais e pouco atento às coisas da vida brasileira. Perdi suas lições.

Irmão de minha avó (viva aos 96 anos – embora nos últimos quatro anos ela continue fazendo 92 anos todos os anos) o grande Alfredo Tranjan registrou-se na história por sua atuação diferente, corajosa e criativa, além de pelo mais delicioso dos livros sobre a advocacia criminal, o raro (e caro) “A BECA SURRADA”.

Presto-me a contar coisas não registradas nesse gigantesco livro de memórias.

Nascido em Santos, Alfredo mudou-se com os pais e irmãos para o Rio de Janeiro, pois que seu irmão Aniz entrara aos 14 anos de idade para a Faculdade Nacional de Medicina. Aniz, que faleceria precocemente entre 56 e 57, gerou três filhos – dentre eles Ercílio Tranjan, um dos nossos mais renomados e premiados homens de nossa propaganda.

Alfredo, que ousava lá pelos idos de 30 as Belas Artes (então profissão de “putas e vagabundos”) foi demovido da ideia por sua mãe, centro da família. Dona Garibe, mulher de letras e estudada graças à frequência em colégio interno inglês na Síria, tinha espírito prático e pulso firme. Além de gênio um tanto complexo.

Impôs ao filho que virasse um “doutor”, dentro daquele chavão batido dos árabes que quiseram que os filhos fossem mais do que simples comerciantes.

A Faculdade Nacional de Direito era o centro das luzes jurídicas. Lecionavam nela Ary Franco, Nelson Hungria, Roberto Lyra e outros monstros sagrados.

Foi a figura de Ary Franco que se tornou central à vida do jovem Alfredo. Seria um mestre e amigo, direcionando-o para o Júri.

Mas por que o Júri?

Pois qualquer menos avisado sabe que a forja do criminalista são as dores humanas e o embate forense. Não há criminalista completo que não domine a tribuna forense. O mensalão foi prova disso. Há uma grande diferença entre um advogado de defesa e o dono de um grande escritório de advocacia criminal.

Alfredo Tranjan era seduzido pelo teatro ao mesmo tempo em que frequentava a Faculdade. Foi artista de muito talento e por isso recebeu propostas e mais propostas a fim de se profissionalizar. Nas tribunas acalmou o espírito, podendo escrever seus próprios roteiros e atuou para seduzir, atingir o âmago, virar aquela chavinha que todo ser humano – e especialmente os juízes – tem e que sempre está, naturalmente, virada no modo culpa e apenas diante de grandes defesas atinge o modo inocência.

É início da década de trinta. Getúlio Vargas, presidente controvertido, aponta para aliança com o Eixo.

Cria o Tribunal de Segurança Nacional, simulacro (nas palavras de Evandro) de Corte. Tortura seus opositores. Envia uma mãe com sua criança para um campo de extermino nazista. O Supremo Tribunal Federal, de cócoras ao ditador, avaliza o terrível envio. Pelas mãos de Sobral Pinto salva-se a criança, o pai e o amigo alemão. O ser humano, desrespeitado, é posto em situação animal primitiva. A lei de proteção aos animais é invocada.

Nesse clima o Gal. Figueiredo, pai de João Batista e Guilherme, é condenado a 15 anos de prisão.  Guilherme, o filho escritor, faz sua única defesa sob o olhar atento de metralhadoras, durante a madrugada. O pai é condenado. Tranjan acompanha o amigo, junto com monstro Sobral, ambos apoiando o filho em defesa do pai. Que coisa cruel é um filho ter responsabilidade pela liberdade do pai.

As ditaduras não apenas torturam. Elas deformam a Justiça, colocam-na como meretriz de ideais ilegítimos.

A vida seguiu. Tranjan se tornou um dos mais respeitados advogados do Brasil.

Defendeu Nelson Rodrigues, Jorge Amado e muitos outros intelectuais.

Minha tentação é colocá-lo na posição de um grande profissional de hoje, mas não poderia fazê-lo. Não em público.

Em seu livro, Tranjan conta a defesa no Caso Toneleiros. Defendeu o irmão de Getúlio, o odiado Benjamim Vargas. Ele, Evandro, Antônio Evaristo de Moraes Filho e Romeiro Neto atuaram nesse caso.

Ou seja, o cardinalato daquele tempo. Os melhores de um tempo em que os advogados eram melhores, que cultuavam as liberdades e o saber, não apenas o lucro. Lucro é bom, deixe-se claro.

Faria parte, pelos interesses da Polônia, na extradição de Franz Stangl, certamente um dos maiores debates forenses da história do país.

Relatoria de Victor Nunes, parecer de Hungria… Evaristinho, George Tavares e Tranjan discutindo a causa?

Boêmio, como dele disse Evandro, bem apessoado, aventurou-se na legislatura carioca.

Perseguido pelo Estado Novo foi novamente perseguido pela “Revolução” de 64.

O cassaram.

E aqui vale uma historieta.

Com a notícia de sua cassação, chamaram-no em Brasília.

O chefe do SNI queria conversar com o deputado de esquerda, que falava em erradicação da miséria e de educação para os pobres. O machado queria papear com o pescoço.

Lá chegando, era o general João Batista Figueiredo quem estava presente, era ele a personificação de Argus.

A conversa, amistosa, terminou com uma promessa: não se encostaria um dedo, nem se incomodaria a família Tranjan.

Era a honra dos militares.

O filho de um condenado injustamente, estendendo a mão para um cassado injustamente. Era o agradecimento pela amizade para com o pai militar, inimigo de outra e ilegal e ilegítima revolução.

Cassado, o escritório esvaziou-se. Guilherme Figueiredo bem perguntou: “Quem contrataria um advogado cassado pela ditadura?”.

Mas a Justiça venceu.

Já em Anistia, foi nomeado juiz de Alçada e lá se aposentou.

Assinou a posse com a caneta de um Figueiredo. Mas do Figueiredo escritor.

No final da vida dedicou-se aos netos, à carpintaria, à escrita e à saudade de Aurora, sua esposa.

Voltou a advogar, com brilho, mas menos assíduo.

Morreu e perpetuou-se como Penitenciária Estadual Dr. Alfredo Tranjan.

Como nos ensinou Waldir em sua bela expressão, mais uma vez apareceu a “madrastaria do destino”.

A infame Bangu II carrega o nome de um advogado das liberdades.

Alfredo Tranjan faria 100 anos no último dia 27 de março.

Que do Olimpo da Defesa, que descreveu tão bem ao retratar Evaristo em culminância, ele e seus colegas de cansaço iluminem os falsos profetas da falsa moralidade e dos porretes, que usurpam o legítimo e impõe o medo.

Em tempos estranhos, lembremo-nos dos homens certos, dos que usaram a razão e nunca a força.

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