Senso Incomum

Abaixo a “ditadura brasileira”! “Podres Poderes”!

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3 de abril de 2014, 8h00

Spacca
É proibido proibir?

De pronto, peço que vejam as aspas no título, para evitar mal entendidos.

E sigo, para dizer que tomei conhecimento do episódio da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em que estudantes (e parece que até professores) entraram em choque com a polícia, resultando, entre outras coisas, na destruição (não sei se total) de dois carros da polícia.

Muita gente que estuda em universidade pública é filha da classe média-média alta. Enfim, com certeza mais gente das camadas médio-superiores da sociedade frequentam a universidade pública (sei que muita coisa mudou nos últimos anos, e isso é alvissareiro!). Por enquanto, ainda a maioria dos filhos dos pobres rala e estuda em faculdade privada, ao mesmo tempo em que parcela majoritária das elites brasileiras estuda nas universidades públicas. Ou estou equivocado?

O André Karam já fez uma excelente análise do imbróglio ocorrido no dia 25 de março último (ler aqui). Para relembrar: Na tarde daquele dia, houve o confronto entre 300 estudantes e policiais federais e militares no interior do campus da UFSC, em Florianópolis, que se transformou num verdadeiro cenário de guerra, com o uso de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha.

O tumulto começou após policiais à paisana promoverem investigação contra o tráfico de drogas no interior da universidade. Na ocasião, alguns estudantes do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) tiveram suas mochilas revistadas. Veja-se: no resto do país, a população é revistada todos os dias e não vi manifestações em campus universitário contra esse “modelo de investigação policial” feito cotidianamente, (não estou a afirmar que este seja o melhor modo de agir, ou que em determinadas situações não seja abusivo, meu argumento limita-se no reconhecimento de ser uma prática que possui certa aceitabilidade social e que por vezes é necessária). Cinco deles portavam substâncias entorpecentes — no caso, alguns cigarros de maconha — e, por isso, receberam voz de prisão, sendo encaminhados pelos agentes federais até a viatura discreta para condução à Superintendência da Polícia Federal.

Disso resultou uma confusão. Como disse André, houve erros de todos os lados. Uma comédia de erros já bem destacados. Mas o que me interessa discutir é a ocupação do prédio da Reitoria pelos estudantes pertencentes ao movimento “Levante do Bosque”. Fiquei impressionado com a pauta de reivindicações: (a) elaboração de plano de iluminação; (b) comprometimento da reitoria da não entrada de PMs no campus; (c) revogação imediata do acordo entre reitoria e polícia e punição dos responsáveis pela operação; (d) legalização das festas no campus; (e) ampliação da moradia; (f) proposta clara da reitoria de defesa da autonomia e democracia universitária; (g) defesa da ocupação dos espaços ociosos do campus por moradores de rua durante a noite; (h) reajuste da bolsa permanência para um salário mínimo.

Lendo-as, pensei que estivéssemos em uma ditadura. Pensei logo em pedir Diretas Já. E fazer um “levante” contra o Estado opressor, se me entendem o uso da ambiguidade da expressão entre comillas. Pensei que já deveríamos mandar uma tropa de choque da Defensoria Pública para defender os pobres estudantes oprimidos pela violência do Leviatã. Mas vamos falar das reivindicações. Eis a minha análise:

a) Elaboração de plano de iluminação. Sem problemas, pois não? A universidade deve ter uma iluminação condizente. De todo modo, talvez devêssemos ver quem mais precisa de iluminação: o campus universitário ou as ruas da periferia? Sei, sei: os dois lugares.. Façamos, pois, uma isonomia. Afinal, todos são iguais perante a lei. Não penso que o Estado-pai (e mãe) deva transferir recursos do restante da malta para iluminar mais o campus do que já está. Além disso, até liberais como Rawls e Dworkin, brilhantemente estudados nos cursos da UFSC, já resolveriam esse problema de distribuição de recursos. Sem falar nos autores não liberais (também brilhantemente estudados nesta que é uma das mais importantes universidades do país), que acham que as políticas públicas devem privilegiar as camadas oprimidas da sociedade (com o que este escriba concorda já há décadas, bastando ler os textos nos quais tais ideias são defendidas, desde os tempos da ditatura militar).

b) Comprometimento da reitoria da não entrada de PMs no campus. Deixa ver se eu entendi: Universidade é embaixada de algum país estrangeiro? Precisa passaporte para entrar? Em alguns lugares precisa pistolão, é verdade, mas…impedir a entrada do próprio Estado em prédios do próprio Estado (sim, sei que é uma autarquia, e daí?) parece-me uma contradição insolúvel. Ou a universidade não é Estado? Eis ai material para uma tese de doutorado nos cursos de Humanas: “Estado versus Estado: a luta final no campus universitário – um olhar prospectivo”.

De todo modo, sei que tem gente importante e respeitável na Academia que defende essa autonomia sem limites, como se fosse mesmo um “território livre”. Insisto que é um exagero, porque não tem respaldo constitucional. Porque nem as casas das pessoas são imunes a invasões, mormente as casas dos pobres… Em Angola algumas empresas possuem uma espécie de território em que o Estado não entra. Por aqui, não creio que autonomia universitária queira dizer isso. Autonomia não é soberania, pois não?

c) Revogação imediata do acordo entre reitoria e polícia e punição dos responsáveis pela operação. Não sei bem qual é o acordo que a reitoria fez com a polícia, mas, se for um acordo no sentido de que a polícia poderia cumprir seu dever no campus, é óbvio que a reitoria não pode revogar, sob pena de prevaricar ou cometer improbidade administrativa. Punição dos responsáveis? Perfeito. Penso que a reitoria deve imediatamente abrir sindicância contra os estudantes que praticaram crime de dano contra o patrimônio público. Do mesmo modo que a polícia deve punir os seus excessos e abrir os devidos processos administrativos contra os policiais (PAD neles!). Logo. Imediatamente. Ou o Brasil não é uma democracia? Bem, se não vivemos em um Estado Democrático de Direito, aí sim os estudantes devem escapar ilesos, porque, afinal, lutar contra um Estado de Exceção é desobediência civil. O que os leitores acham?

d) Legalização das festas no campus. Pronto! Eis aí uma grande pauta. Universidade é o lugar de fazer festas. Bingo! Enquanto a malta paga impostos para proporcionar universidade “gratuita” para as classes médio-superiores, vamos legalizar as festas no campus. Penso que devemos colocar no estatuto da universidade o direito fundamental a fazer festas no campus. Abaixo as aulas. Viva as festas. Esse reitor opressor ainda não legalizou as festas? Fora com ele. Impeachment nele. Onde se viu isso, não é?

PS: claro que há confraternizações nas dependências das universidades; até mesmo festas são desejáveis. Entretanto, sabe-se bem o alvo da reivindicação do movimento. E isso é que torna o pedido um tanto quanto bizarro, mormente se olharmos para fora do campus e para quem paga a conta (ou seja, de quem se transfere recursos para proporcionar felicidade a poucos).

e) Ampliação da moradia — eis aí uma reivindicação justa e que merece apoio. Estamos juntos!

f) Proposta clara da reitoria de defesa da autonomia e democracia universitária. E isso não existe? O que seria essa autonomia? Não deixar a polícia entrar para investigar crimes (por exemplo, uso e/ou tráfico de entorpecentes?) estaria nessa pauta? Haveria um direito fundamental a livremente consumir entorpecentes? Se sim, ótimo. Vamos estender isso para fora do campus. Ou o campus é território independente, uma espécie de Estado Soberano que não se submete às leis da polis? Uma coisa parece clara: enquanto a droga não for legalizada para todos os nativos (e não nativos) de terrae brasilis, a polícia é obrigada a fazer o seu trabalho. É difícil entender isso?

Mais: Democracia seria poder virar os carros da polícia? Não há clareza hoje sobre o que é democracia universitária? Mas, magnífico reitor: explique logo o que é a autonomia e a democracia para os jovens alunos. Penso que a assessoria jurídica da universidade pode ajudar nisso, mandando cópia da Constituição e da legislação brasileira sobre a matéria. E nesse propósito até mesmo alguns livros simplificados e facilitados de direito poderiam ser úteis (essa ironia é mais bem entendida pela comunidade jurídica).

A propósito, falando em democracia: sabem como fiquei sabendo do Golpe de 1964, quando eu tinha oito anos de idade? Por dois veículos carregados de soldados, que cercaram o meu pai e o levaram preso, algemado, como subversivo. Naquele momento eu poderia ter — em desobediência civil e em luta contra a ditadura que se instalava e porque a Constituição tinha sido violada — virado e/ou queimado os dois veículos daquele Estado opressor. Pena que eu só tivesse oito anos de idade. Mas, hoje, vivemos em uma democracia… É isso que quero que entendam.

g) Defesa da ocupação dos espaços ociosos do campus por moradores de rua durante a noite. Bingo! Eis porque vamos todos para Estocolmo. O Nobel definitivamente será nosso! Por que ninguém pensou nisso até hoje? Anísio Teixeira e Darci Ribeiro, entre tantos…. Por que esses arautos do ensino público nunca se deram conta disso? Como não se aperceberam disso? De pronto, indago: por que não durante o dia também? Por que só à noite?

Moradores de rua de todo o Brasil: rumem para a Universidade Federal de Santa Catarina. Lá poderão ficar durante a noite no campus. Na sequência, sabem como é… Basta pela manhã não saírem do campus e a polícia não poderá retirá-los. Afinal, ela não pode entrar no campus. Bingo de novo. E lá ficarão os moradores de rua. Claro, só os de Floripa. Os de outros lugares, não. Que tal? Fico pensando em uma espécie de “Coluna De Moradores de Rua” atravessando os estados rumo ao campus da UFSC. Serão recebidos pelos estudantes do Centro de Filosofia e Humanas? Serão aceitos? E serão convidados a irem ao restaurante universitário? Sim, porque dormir com fome é uma violação dos direitos fundamentais. Eis aí uma nova ideia. Cedo-a gratuitamente.

h) Reajuste da bolsa permanência para um salário mínimo. Esta é uma reivindicação que a reitoria não pode atender — embora justa — porque se trata de uma política pública do governo federal. Sugiro um levante contra o opressor governo federal. Aproveitemos também para reivindicar um aumento substancial do salário mínimo dos trabalhadores. Por que só para os que moram no campus ou nas residências universitárias?

Eis aí, portanto, os pontos que quero discutir com meus leitores. Reflitamos sobre os exageros. Enquanto milhões de nativos brasileiros sofrem e… desnecessário desfilar um rosário de argumentos, um grupo de estudantes pensa que a democracia é uma coisa para brincar. Se for isso que estão estudando, é melhor a população fazer uma ação popular (que é uma ação constitucional) para pedir o dinheiro de volta. Alguma coisa está fora de ordem, pois não?

Indubitável que certa esquerda de boutique teria, hoje, seu traseiro chutado por Marx & Cia. E Lenin mandaria ler o seu Esquerdismo – a doença infantil do comunismo, que, parafraseado, pode ser lido como: “A esquerda no Brasil chega ao poder e tem gente-que-se-diz-de-esquerda fazendo isso ai…! E nosso preclaro Vladimir Ilyich Ulyanov largaria uma onomatopeia do tipo tsk tsk tsk!

Post Scriptum: Não custa lembrar: o Estado criticado por Marx já não é o mesmo Estado do século XIX e o direito apresentado pelo Constitucionalismo Contemporâneo também não pode continuar sendo visto como um mero instrumento político. A legalidade atual não é mais a legalidade burguesa, do tempo da codificação, mas uma legalidade que se baseia na supremacia constitucional, oferecendo condições muito melhores para a institucionalização da democracia.

Portanto, sugiro para os que brincam ou que querem fazer rolezinho com a democracia que consultem a história com um olhar crítico autorreflexivo. E a entendam. Aliás, não teria sido Marx quem disse que a única ciência que existe é a história? E não foi Hegel quem disse que a ave de minerva só levanta voo ao entardecer? Para aqueles que não têm memória, sugiro que leiam, por exemplo, o que verdadeiramente significa lutar por direitos, por exemplo, o livro 1964: a verdade somente a verdade, em nome da lei, que trata da luta dos advogados na defesa dos perseguidos políticos (PUC-RJ, 2014). A propósito, naqueles tempos os advogados buscavam o cumprimento até mesmo da legalidade burguesa, manuseando o habeas corpus. Hoje, com tantos instrumentos democráticos à disposição, tem gente que acha que deve quebrar automóvel…

Questão em aberto, pois. Que os leitores opinem. E não se esqueçam de dizer quais dos pontos da tábua de reivindicações dos estudantes que devem ser atendidos… Está aberto o debate!

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