Cidadania fiscal

Psicologia pode contribuir para estudo de leis tributárias

Autor

  • Celia Brandão

    é psicóloga pela Universidade de São Paulo membro analista e docente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA/SP) e membro analista da International Association Analytical Psychology (IAAP).

3 de abril de 2014, 16h03

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Direito GV. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Assistimos no Brasil a uma crise do poder do Estado no seu papel de gerir e defender os direitos do cidadão. Quando a mensagem do Estado é de que nada o moverá de suas intenções, estamos diante de uma forma de tirania. E se as portas estão fechadas para o diálogo, ideia tão bem representada na parábola do porteiro de O Processo, de Franz Kafka, os confrontos deixam de ser entre as pessoas contra poder vigente ou autoridades, e se configuram como conflitos de pessoas contra pessoas, do povo contra o próprio povo, como assistimos na ação dos justiceiros de rua recentemente no Brasil.

A nova forma de tirania é a corrupção na aplicação da lei. A corrupção atua como uma autoridade intangível e arbitrária que afasta o cidadão comum do acesso à legalidade e do direito a expressar-se.

Assim como “Cronos”, símbolo do pai conservador e tirânico que temia ser destronado e, para tanto, devorava os próprios filhos, a própria criatividade e possibilidade de progresso; também a consciência coletiva contemporânea, com a queda da soberania das instituições patriarcais (o Estado, a família, a lei) hoje destituídas da posição de referência ética, padece de uma dissociação misteriosa ou de uma associação ainda não compreendida entre o anseio de um bem ou de um gozo absoluto e uma prática de um mal que subordina a lei a desejos egoístas. Estamos diante de uma orientação patriarcal disfuncional que desrespeita a alteridade. Se na sociedade patriarcal convivíamos com padrões de regras e rigores pré-estabelecidos, hoje o diálogo das diferenças é nosso desafio: o conflito criativo.

Vivemos uma crise de nossas instituições na contemporaneidade. Manifestações populares clamam em diferentes cantos do mundo por justiça social e verdadeira democracia. Em todas as manifestações populares ocorridas recentemente no Brasil os órgãos oficiais foram rechaçados, tal como a mídia oficial e as lideranças formais, transferindo-se, finalmente, para a rede informal o debate sobre tais acontecimentos. Há hoje, uma evidente e profunda descrença nas instituições tradicionais cuja natureza é hierárquica e autocrática.

A psicologia pode contribuir para abordar as “deformidades” na aplicação da lei no âmbito do sistema tributário brasileiro. O tema das “autoridades intangíveis e arbitrárias”, bem trabalhado por Modesto Carone no posfácio da obra Carta ao pai, de Franz Kafka (1991), serve perfeitamente para promover o diálogo entre direito e psicologia. A carta de Kafka nunca foi entregue ao pai, e seja este pai pessoal ou institucional, na ausência de diálogo, muitas palavras ficarão presas na garganta. O tema do pai autoritário arquetípico está também presente na obra de Kafka O processo pela imagem da acusação misteriosa feita ao Sr. Joseph K. O clima de mistério diante de perguntas não respondidas apresenta um sujeito impedido de consciência e de participação na construção da lei e nas deliberações que envolvem sua vida. A autoridade intangível e arbitrária é aqui representada pelo vazio de papel proposto à instituição jurídica por um Estado omisso.

Do ponto de vista político, a crítica da obra kafkiana, que certamente nunca perdeu o caráter inovador, recai exatamente sobre a falta de transparência no aparato burocrático do Estado. Para essa tarefa faz-se necessário ouvir a voz do "outro", que liberta o sujeito de sua alienação narcísica, colocando-o a par dos conflitos de interesse presentes, tanto na disputa pessoal quanto institucional. O Estado e a instituição jurídica devem sentar-se ao divã em que somos todos analistas. Dessa perspectiva, torna-se legítimo questionar a convencional fronteira entre público e privado, político e pessoal, e, dessa forma também, entre psicologia e política.

Trago aqui a visão de Castells de que é a socialização da informação que permite a cada indivíduo a construção dos próprios significados, tornando-o capaz de interferir nas relações de poder. O projeto de transparência fiscal por meio da proposta de socialização da informação interfere de forma revolucionária nos mecanismos que alienam o sujeito dos processos e decisões tomadas por órgãos oficiais e governamentais.

O sujeito que se perdeu de sua dimensão ética é, na obra O Processo, o funcionário público capaz de cometer atrocidades e arbitrariedades em nome de um bem supremo representado pelo poder do Estado ou da instituição jurídica injustificadamente identificados com o divino. De outro lado, o senhor K, sujeito privado do seu direito de pensamento crítico e de consciência, vive uma dissociação, como o neurótico, identifica-se com um mal absoluto. É capaz de, movido pelo sentimento de culpa inconsciente devido a um crime que o acusam de ter cometido, entregar-se, ao fim, à própria aniquilação.

Enfim, é no símbolo da transparência (individual e coletiva), alvo necessário à democracia, que desponta uma nova ética que se constrói junto à identidade do sujeito: a ética da alteridade. Não há separação aqui entre psicologia, psicanálise e política. A liberdade do sujeito está vinculada à possibilidade de se interrogar sobre e de entender os motivos de sua alienação. Devemos trazer, então, nosso paciente, sociedade global contemporânea e suas novas circunstâncias jurídicas, éticas e políticas, para um "divã coletivo", quer-se dizer, sujeitá-la à fria e implacável análise de uma equipe multidisciplinar.

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    é psicóloga pela Universidade de São Paulo, membro analista e docente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA/SP) e membro analista da International Association Analytical Psychology (IAAP).

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