Direito e ditadura

O duro desafio de defender presos políticos na ditadura

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1 de abril de 2014, 10h14

Tal como a Igreja e a imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil participou da Marcha Com Deus pela Liberdade, o grande movimento de massas contra o governo de João Goulart e suas reformas, e que se tornou uma espécie de aviso prévio do golpe militar de 31 de março de 1964, mas se desencantou logo em seguida. No caso da advocacia, esse desencanto se manifestou em um longo período de conformismo e apatia.

O estado de indiferença diante dos acontecimentos foi quebrado em 1977, quando o então presidente da Ordem, Raimundo Faoro, publicou um artigo no jornal O Globo, denunciando as torturas a que fora submetido o ex-presidente da UNE, Aldo Arantes, preso em São Paulo, desde dezembro de 1976. Faoro não era o candidato da esquerda para presidir a OAB. O candidato da esquerda era Josaphat Marinho. Mesmo assim, Faoro, que já participara antes da Comissão de Direitos Humanos do Congresso, teve como presidente da Ordem uma atuação firme diante da ditadura. E acabou sendo um dos interlocutores da sociedade civil nas conversas com o governo do general Ernesto Geisel que levaram ao processo de distensão politica.

Para o jornalista Elio Gaspari, autor da mais conceituada obra sobre o regime militar, não se pode considerar a ditadura como uma coisa única e continua. Segundo ele, ela tem nuances e pode ser dividida em três períodos: de 1964 a 1968 é uma coisa, de 1969 a 1973 é outra, e depois de 1974, é outra ainda. “No caso dos advogados que atuaram na defesa dos presos políticos também há nuances, há graus variados de valentia. De 64 a 68, o advogado precisava ter cinco colhões para defender um preso político; de 69 a 73, de 18; de 74 para a frente, com dois colhões ele já resolvia”, diz ele.

É na fase das “18 bolas”, entre 1969 e 1973, que emergem as figuras notáveis de alguns advogados que expuseram a própria vida, foram vítimas de atentados e passaram eles mesmos pela prisão na defesa dos direitos de cidadãos perseguidos pelo regime. A história de 15 desses notáveis advogados estão contados no livro Os advogados e a Ditadura de 1964 – A Defesa dos Presos Políticos no Brasil, organizado pelos professores Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, e publicado pelas editoras PUC-Rio e Vozes, em 2010. O livro faz o relato da atuação dos seguintes advogados: Airton Soares, Dalmo Dallari, Eny Moreira George Tavares, Heleno Fragoso, Luís Eduardo Greenhalgh, Marcelo Alencar, Marcelo Cerqueira, Mário Simas, Modesto da Silveira, Sigmaringa Seixas, Sobral Pinto, Técio Lins e Silva e Wilson Mirza. A lista inclui o procurador de Justiça de São Paulo Hélio Bicudo. Não entraram na lista, mas merecem ser mencionados, pelo menos mais dois advogados de São Paulo: José Carlos Dias e Idibal Pivetta.

O mais notável da atuação desses homens e mulheres que foram à luta é que nem sempre eles conheciam seus clientes e sequer defendiam os mesmos pontos de vista ideológicos e não faziam questão de cobrar honorários. O exemplo mais notável neste sentido é dado pelo mais admirado dentre os advogados de presos políticos, uma subcategoria que se criou então dentro da advocacia: Heráclito Fontoura Sobral Pinto, morto em 1991, aos 98 anos. Sobral Pinto era católico fervoroso, anticomunista radical, mas, acima de tudo, um defensor dos direitos e respeitador da lei. Sobre seu ofício, ele dizia: “O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que de dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá o sustento e à sua família. Não é advogado”.

O cliente mais conhecido de Sobral foi Luís Carlos Prestes, o pai ideológico de todos os comunistas do Brasil. Outro foi Carlos Lacerda, tão anticomunista como o próprio advogado. Marcelo Cerqueira e Modesto da Silveira eram claramente contrários à luta armada, mas nunca deixaram de defender um guerrilheiro caído e recolhido à prisão.

A defesa mais notória no currículo de Sobral Pinto foi a de Harry Berger, comunista preso no Brasil durante a ditadura do Estado Novo e torturado até ficar louco. Para ele, Sobral Pinto invocou a Lei de Proteção aos Animais: “Esta lei diz que nenhum animal pode ser posto numa situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira, tem que sair, galopar, isto é da sua natureza. O Homem também não pode ficar numa situação dessas, contrária a tudo que há na sua natureza e na sua psicologia”.

Em 1964, coube a Sobral Pinto fazer a defesa de um grupo de chineses membros de uma missão comercial que estava no Rio de Janeiro no dia do golpe. Como conta em seu livro Lições de Liberdade, “eles foram presos como espiões. Dois eram jornalistas, credenciados pelo Itamaraty; três eram organizadores de uma exposição de produtos chineses e estavam em entendimentos com o Banco do Brasil e o ministério da Indústria e Comércio; quatro vinham comprar algodão e também estavam em entendimentos com o Banco do Brasil e outros órgãos do governo. Os nove tinham passaporte diplomático. Foram condenados e, em seguida, foram deportados”.

Sobral Pinto chegou a ser preso em 1968, em Goiânia, quando se preparava para ser paraninfo de formatura de uma turma de estudantes de Direito. Em 1980, seu escritório no Rio de Janeiro sofreu um atentado a bomba.

Em 1970 e no mesmo dia de novembro, no Rio de Janeiro, foram presos os advogados Heleno Fragoso, George Tavares e Augusto Sussekind de Moraes Rego. Em comum tinham apenas o fato de serem defensores de presos políticos. Muitos outros também foram presos e sofreram os mais variados tipos de pressão. Modesto da Silveira conta que, uma vez, em plena audiência na auditoria militar, o escrivão lhe deu a notícia de que sua filha havia sido atropelada. Ele fica alarmado, mas antes de qualquer coisa, liga para sua casa. A mulher atende e confirma que nada aconteceu. Era apenas mais um ato para amedrontar o advogado.

Mario Simas, que teve entre seus clientes os frades dominicanos de São Paulo acusados de darem apoio ao grupo de Carlos Marighella, admite que não chegou a ter sua integridade física ameaçada, mas sofreu retaliações. Perdeu os dois empregos fixos que tinha — um no Sindicato dos Metalúrgicos de São Pualo e outro no Centro Social dos Soldados da Polícia militar. Segundo conta o livro Avogados contra a Ditadura, a diretoria do sindicato justificou assim a sua demissão: “Doutor, um corpo a mais, um corpo a menos boiando no Rio Tietê, não conta”.

Hélio Bicudo, que era do Ministério Público, entra no livro não pela defesa de presos políticos, mas em homenagem à sua luta sem tréguas pelos direitos humanos. Élio Gaspari diz que, por uma única razão, ele já merecia ser reverenciado: “Foi o homem que colocou o Fleury na cadeia”. O delegado Sérgio Paranhos Fleury comandou no Dops de São Paulo, onde tornou-se um ativo colaborador dos militares que comandavam a repressão política no Estado. Por seu papel como repressor foi condecorado pelo Exército e pela Marinha. Morto em um acidente em 1979, deixou a fama de ser um torturador frio e cruel.

O caminho de Fleury cruzou o de Helio Bicudo por outras circunstâncias, não menos violentas: o delegado foi denunciado pelo procurador de Justiça de fazer parte do Esquadrão da Morte em São Paulo, um grupo de policiais dedicado ao extermínio de supostos bandidos. “Dos 35 policiais denunciados nas investigações sobre o esquadrão, apenas seis, de menor hierarquia, foram condenados. Os delegados foram todos absolvidos. Eram intocáveis”. Fleury chegou a ser preso, mas logo foi posto em liberdade, por um casuísmo da legislação. Foi editada então a Lei Fleury (Lei 1.941), que alterou o artigo 594 do Código de Processo Penal e garantiu ao réu primário com bons antecedentes o direito de responder o processo em liberdade. Um casuísmo, mas um avanço. Apesar de acontecer em plena ditadura.

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