Combate à arbitrariedade

Jurista García de Enterría foi um grande líder intelectual

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29 de setembro de 2013, 10h26

No último dia 16 de setembro, faleceu, em sua residência, em Madri, na Principe de Vergara, o jurista espanhol Eduardo García de Enterría, aos 90 anos de idade (27 de abril foi seu aniversário). Um registro se impõe, e creio que posso faze-lo, em homenagem a esse grande jurista dos séculos XX e XXI. O tempo de um pensador não é o tempo de sua vida, mas do seu pensamento, de suas ideias. E García de Enterría projetou para além do século XX ideias no campo do Direito Público, lançando e edificando os pilares da constitucionalização do Direito Administrativo continental europeu, com larga influencia na América Latina. Sua liderança intelectual foi um diferencial materializado em numerosos doutorados honoris causae recebidos no mundo inteiro, gerados por autêntica admiração, mas também no Curso de Direito Administrativo reeditado ininterruptamente desde 1974.

No entanto, não há dúvidas de que traço marcante desta trajetória é sua Escola de Catedráticos, fenômeno incomum, que congrega aproximadamente uma centena de catedráticos de direito público na Europa. Em sentido estrito, a Escola reúne professores espanhóis, mas, com o passar dos anos, em seus encontros foram se incorporando professores estrangeiros, da França, Itália, Argentina, Venezuela, Brasil (de que somos representantes eu e o Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto), entre outros países. Os prêmios, as instituições a que pertenceu, as láureas, as amizades, e a influência exercida por García de Enterría ainda serão dignos de análises históricas. 

Das obras de García de Enterría decorre, como essência, o combate à arbitrariedade dos poderes públicos através do direito administrativo. Assim é que os conceitos indeterminados não se confundiriam com espaços discricionários e com clareza ímpar o jurista soube defender uma notável ampliação dos tentáculos jurisdicionais sobre a Administração Pública, reduzindo-se os espaços discricionários dos administradores. No campo da ética pública, sustentou com vigor a ideia de que as Democracias justificam-se a partir da prestação de contas dos agentes políticos e da juridicidade de seus atos. 

Introduziu, na Constituição espanhola de 1978, o princípio da interdição à arbitrariedade dos poderes públicos, extraído do devido processo legal substancial. Foi um defensor das garantias inerentes ao direito administrativo sancionador. Soube trabalhar a densidade normativa das regras e princípios constitucionais. Foi percursor no manejo da jurisprudência como fonte normativa em seus trabalhos, atendo-se ao chamado direito jurisprudencial. Sua simplicidade impactante, seu caráter, sua franqueza, sua coragem, sua generosidade intelectual, foram características singulares de uma personalidade exclusiva no universo intelectual normalmente marcado por vaidades, egoísmos e competições vulgares. 

Com este notável jurista mantive relações muito estreitas e neste momento é importante resgatar e fortalecer sua memória no Brasil. Seu último livro foi  "Las transformaciones de la jurisdicción administrativa: de excepción singular a la plenitud jurisdiccional. ¿Un cambio de paradigma?, Cívitas, 2007", que tive a honra de traduzir ao português para publicação no Brasil (editora Fórum). Fui ainda premiado com a oportunidade de haver sido por ele orientado diretamente em meu doutorado na Complutense de Madri, cuja tese defendi em 2003. Fui seu último orientado de doutorado.

Com ele e outros professores, fundamos o Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado – IIEDE, sediado em Porto Alegre, no qual García de Enterría ocupava a presidência de honra, e será eternamente presidente honorífico e fundador do Instituto. Convivi com sua família, frequentei sua residência, íamos aos restaurantes que apreciava em Madri (sobretudo Casa Lúcio e Zalacaín).

Palestrei no Seminário de "Miércoles" (Seminário García de Enterría) em três ocasiões. Prefaciou meu livro Teoria da Improbidade Administrativa, atendeu convites nossos e veio ao Brasil em algumas oportunidades, inclusive para receber seu único doutorado honoris causae no Brasil (outorgado pela UFRGS em 2003, em evento promovido pelo IIEDE).

Participamos dos encontros da Escola de Catedráticos, sempre a convite pessoal dele e de sua esposa Amparo.  Não há palavras nem gestos possíveis para agradece-lo. Sempre externei publicamente, em especial a ele próprio, minha profunda gratidão. Ficam as saudades, fica a gratidão, fica o orgulho de ter convivido com um gigante como Eduardo García de Enterría.

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