Mundo dos negócios

Autorregulação impacta direito penal empresarial

Autores

  • Ricardo Breier

    é presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia do Conselho Federal da OAB e ex-presidente da OAB do Rio Grande do Sul (2016-2021)

  • Rodrigo Carril

    é advogado criminalista especialista em Direito e Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

28 de setembro de 2013, 8h00

O processo de globalização vem ocasionando profundas mudanças no mundo dos negócios, determinando que as organizações empresariais[1] providenciem novas técnicas e ferramentas para a minimização de riscos originados por suas ações (sistemas de gestão de riscos). O risco que outrora fora apenas avaliado sob o viés de perda econômica, agora passa pela eventual responsabilidade jurídica dos administradores ou da própria empresa, seja pelo abuso de poder dos administradores, pelas incidências de fraudes internas com lesão a terceiros ou pela responsabilidade social (transporte, saúde, meio ambiente, distribuição de medicamentos, proteção das leis do trabalho etc.). O modelo desta gestão denomina-se Compliance[2].

Compliance é justamente o empenho em torno da observância de leis e normas de conduta dentro de uma gestão empresarial, termo que poderia ser traduzido simplesmente por cumprimento ou adoção de determinadas medidas para evitar cometimento de fraudes por parte dos componentes da organização[3]programa de compliance[4]. Atualmente a função de compliance ultrapassa os aspectos jurídicos, alcançando os valores éticos, uma via de responsabilidade social e moral[5].

O mundo tem presenciado crises que tem afetado diversos segmentos sociais, originadas em grande parte por má-gestão de controle interno, muito em virtude da ausência de programas de compliance (Enron, WorldCom, Parmalat, crise financeira sistêmica de 2008, eventos de corrupção privada e de agentes públicos e desvios ocorridos no terceiro setor). Tal realidade global converge, cada vez mais, aqui no Brasil, para a necessidade de um maior controle sobre padrões éticos de conduta, já que outros países o tema está muito avançado (Estados Unidos, Itália, Inglaterra, Espanha e Austrália, por exemplo). Os benefícios para as empresas privadas que buscam esta regulação são inúmeros, como por exemplo: integridade da organização, fidelidade dos empregados, boa reputação, boas relações com stakeholders[6], fornecedores, clientes e investidores, assim como um bom relacionamento com os órgãos reguladores.

As peculiaridades dos programas de compliance dependem em grande medida do objeto das empresas, de modo que uma das principais formas de controle de riscos em sua atividade relaciona-se com a sua própria administração, uma ação de maior agilidade e eficácia em comparação às gestões públicas.

Em virtude do Estado, no contexto globalizado, ser incapaz de regular de forma eficiente as atividades empresariais, seja pela total carência de informação ou competência para fazê-lo, fortaleceu-se o tema da Autorregulação[7] como uma estratégia reguladora estatal.

Os benefícios da autorregulação apenas serão plenamente aproveitados se esta for implementada de forma flexível, combinando a elaboração de normas privadas com a supervisão governamental direta, podendo, inclusive, o próprio setor interessado participar da elaboração e aplicação das normas sobre seus membros[8]. Ainda, este contexto regulatório deve apresentar uma convergência entre os interesses privados e da comunidade externa em geral, assegurando o êxito pleno do sistema autorregulatório.

Como produto dos processos de autorregulação, aliado ao compliance, surgem os códigos de condutas empresariais[9], cumprindo basicamente duas funções: transcrever o regramento estatal para as situações de riscos que podem ocorrer na empresa, determinando quais são as obrigações que derivam do ordenamento jurídico para cada situação e informar a todas as pessoas da organização exatamente o que é permitido e o que não, como resultado direto das regras estatais[10].

Disso decorre um ponto de relevante análise, qual seja a legitimidade dos códigos de condutas e sua incorporação pelo ordenamento jurídico[11]. Buscando solver o problema, autores apresentam algumas propostas, de modo que nos parecem mais convenientes os dois modelos apresentados por Nieto Martín: a) o primeiro modelo consistiria na participação dos grupos interessados pelas normas de autorregulaçao, no processo de elaboração destas, dotando as normas de legitimidade democrática; b) além, o segundo modelo contaria com a intervenção da administração pública em determinados momentos da elaboração das normas, podendo estabelecer as diretrizes previamente ou, posteriormente, comprovando o grau de qualidade da autorregulação[12].

O tema da autorregulação vem ganhando cada vez mais importância, ao passo que ordenamentos jurídicos passam a tratar com mais atenção a estruturação interna das organizações, em busca de uma responsabilizaçãosancionamento cada vez mais efetiva, atentando para a individualização das condutas e consequentes sanções.

Neste cenário, é cada vez mais clara a estreita e indissociável relação entre a autorregulação e o direito penal, de modo que os códigos de conduta se apresentam como medidas bastante eficazes para prevenção de delitos e determinação de autoria. Ainda, estes também contribuem para o preenchimento de normas penais em branco.

Contrariando o inexpressivo registro do tema na doutrina nacional, a Europa mostra-se como um terreno fértil de discussão, com diversos dispositivos legais que reconhecem a autorregulação, inclusive na área penal e administrativa sancionadora. No direito germânico, o §130 da OwiG trata como contravenção, com sanção de até dois milhões de euros, de forma pessoal ao titular da empresa, seu representante ou diretor que seja omisso, ainda que culposamente, sobre as medidas de vigilância necessárias para impedir lesão a deveres da empresa e cuja infração constitua um delito ou infração de ordem. Ainda na Alemanha, está presente o delito de deslealdade do §266 do StGB, vinculado ao descumprimento dos códigos de governança, estando presente também no ordenamento espanhol, nos artigos 252 e 295, do Código Penal. Por sua vez, o direito francês, por construção jurisprudencial, admite desde 1982 a responsabilidade penal do Chef d’enterprise, quando existe uma obrigação legal para que este aja sobre as atividades realizadas por um auxiliar ou subordinado[13] [14]. Na Itália, temos o Decreto Legislativo 231/2001, que em seu artigo 6º estabelece requisitos mínimos de prevenção de delitos, onde a entidade será excluída da responsabilidade criminal se provar que é capaz de adotar meios de prevenção efetiva, antes da ação delitiva, através de implantação de protocolos específicos, destinação de recursos para prevenção de delitos, bem como estabelecer canais de informação encarregados da prevenção criminal.

Da mesma forma, destacamos o tratamento dado pelo Direito Espanhol, onde o artigo 31 bis, do Código Penal, estabelece os efeitos que terão os programas de compliance, contando como uma circunstância atenuante a implementação de programas preventivos para o futuro, ou seja, após o cometimento do delito, de modo que parte da doutrina espanhola defende que a existência prévia poderia excluir a responsabilidade da organização. Importante notar que os elementos necessários do sistema de compliance seriam aqueles delimitados pelo próprio ordenamento jurídico espanhol, por exemplo a Ley de Mercado de Valores e o Código de Buen Gobierno de las Sociedades Cotizadas.

Nos Estados Unidos, a matéria é tratada no capitulo 8º do United States Sentencing Comission Guidelines Munual (USSG), que estabelece critérios para processamento de natureza criminal de organizações, perante aos Tribunais Federais dos Estados Unidos, de empresas que não implantem programas destinados à prevenção de futuros delitos. Haverá a possibilidade de causa de exclusão de responsabilidade, se a empresa provar no curso do processo que adotou algum programa de ética e cumprimento para prevenir e detectar ações delitivas[15].

No Brasil, tomamos como referência a recém publicada Lei 12.846/2013, denominada de Lei Anticorrupção. Nesta, em resposta às novas exigências internacionais[16], regula-se a responsabilidade civil e administrativa das pessoas jurídicas por atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira, guardando estreita ligação com o Foreign Corrupt Practices Act, diploma americando de 1977 e com o Bribery Act, diploma inglês de 2011. De acordo com a nova lei brasileira, são previstos benefícios na aplicação de sanções para as empresas que adotem práticas de prevenção a atos de corrupção (leia-se programas de compliance), mecanismos de auditoria, incentivo à denúncia e aplicação de códigos de conduta e ética.

Como podemos perceber, é clara e direta a relação existente entre as questões de compliance e direito criminal no que diz respeito a futuras responsabilizações de organizações empresariais. Enquanto Espanha, Estados Unidos, Chile[17] e Alemanha caminham no sentido do reconhecimento das regras de compliance, de origem privada, para questões penais, no Brasil ainda estamos presos no discurso prévio sobre a importância dos programas de prevenção administrativos.

Por fim, entendemos que frente às novas orientações mundiais sobre a responsabilidade da pessoa jurídica, o tema compliance, especialmente o Compliance Criminal, deva iniciar um debate profundo no Brasil. A inserção dos modelos de autorregulação irá sem dúvida produzir efeitos no Direito penal empresarial, principalmente em temas relacionados como a responsabilidade individual e coletiva, o princípio da determinação, a responsabilidade por ações neutras, a posição de garantidor dos diretores e administradores, a imputação subjetiva de gestores superiores, o princípio da legalidade como delimitador conceitual da autorregulação, a culpabilidade penal empresarial ou corporativa entre tantos outros a serem explorados[18], o que encaminha o diálogo entre compliance e Direito penal.

Bibliografia:

ALONSO GALLO, Jaime. Estudios sobre las reformas del Código Penal, 2011.

BACIGALUPO, Enrique. Compliance y Derecho Penal, Navarra: Aranzadi, 2005.

BERINI, Arturo. Autorregulación empresarial, ordenamiento jurídico y derecho penal. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria (Org.). Criminalidad de empresa y Compliance. Prevención y reacciones corporativas, Atelier, 2013.

BERND, Schunemann. Las reglas técnicas del derecho penal, ADPCP, 1994.

DARNACULLETA I GARDELLA, Derecho Administrativo y Autorregulación: la Autorregulación Regulada, Universidad de Girona, 2002.

GRAHAM, C., Self-Regulation, cap. 2, in RICHARDSON, G.; GENN, H., Administrative Law and Government Action, The Courts and Alternate Mechanisms of Review, Clarendon Press, Oxford, Inglaterra, 1994.

LUHMANN, Niklas. Teoría política em el Estado de Bienestar. Madrid, Alianza Universidad, 1997.

MONDACA, Iván. Los Códigos de Conducta y el Derecho Penal Económico. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria __________.

NIETO MARTÍN, A. La Autorregulación y Sanciones. Lex Nova, Valladolid, 2008.

OGUS, Anthony. Self-regulation, in PARISI, Francesco (org.) Production of Legal Rules. Encyclopedia of Law and Economics, 2ª ed. Edward Elgar, vol. 7, 2011.

OMAROVA, Saule. Rethinking the future of Self-Regulation in the Financial Industry. Brooklyn Journal of International Law, 35(3), 2010.

TARANTINO, Anthony. Governance, Risk and Complianca Handbook. New Jersey, 2008.

VILA, Ivó Coca, ¿Programas de Cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria __________.

WELLNER, Philip A. Effective compliance programs and corporate criminal prosecutions. Cardozo Law Review. New York, v. 27-1, 2005.


[1] Parafraseando o clássico de Stewart Kid, na obra A treatise on the law of Corporations, de 1794, uma organização/corporação “is a collection of many individuals united into one body, under a special denomination, having perpetual sucession under an artificial form, and vested by the policy of the law with the capacity of acting in severeal respects as an individual”. Ver mais em TARANTINO, Anthony. Governance, Risk and Complianca Handbook. New Jersey, 2008.

[2] Compliance é compreendido como o agir de acordo com o estabelecido por lei, regulamentos, protocolos, padrões ou recomendações de determinado setor, códigos de conduta e órgãos regulatórios. É um estado de conformidade desejado perante a lei, regulação ou em virtude de demanda. O termo, originário do verbo inglês “to comply”, significa cumprir, executar, satisfazer ou realizar algo imposto. Ou seja, estar em conformidade, colocando em prática regulamentos internos e externos, tendo como objetivo a mitigação de riscos e prejuízos, principalmente no âmbito empresarial, mas sendo também aplicado, e cada vez com maior intensidade, na esfera pública.

[3] BACIGALUPO, Enrique. Compliance y Derecho Penal, Navarra: Aranzadi, p. 27, 2005.

[4] Inúmeros conceitos são utilizados como referência à organização empresarial em torno das práticas de compliance, sem que seja alterada a compreensão e o sentido maior da expressão, ainda que possam definir estruturas distintas, de forma que entre eles encontraremos Função Compliance, Sistema de Compliance, Gestão de Compliance, Compliance-management e Gerenciamento de riscos entre outros.

[5] VILA, Ivó Coca, ¿Programas de Cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria (Org.). Criminalidad de empresa y Compliance. Prevención y reacciones corporativas, Atelier, 2013, p. 60.

[6] Stakeholders: pessoas, grupos ou qualquer organização que tenha interesse em uma organização, de modo que os interessados podem afetar ou serem afetados pelas ações da organização. Dentre estes poderiam ser citados, credores, funcionários, diretores, governo e suas agências, acionistas, fornecedores e sindicatos. De todo modo, usualmente este termo define os interessados diretos nas decisões das organizações, principalmente seus acionistas.

[7] Dentre as possíveis formas de autorregulação, o modelo de autorregulação regulada (cunhada pela doutrina anglo-saxônica como self-regulation) é a mais comum e importante forma de manifestação da participação privada no processo regulatório, sendo destacados três possíveis modelos para sua implementação: delegated self-regulation, devolved-self-regulation e cooperative self-regulation. A autorregulação regulada é caracterizada pela intervenção dos entes privados no processo de regulação, de forma subordinada aos fins de interesse público estabelecidos pelo Estado. Este, titular do direito de regular, recorre às empresas para que colaborem com a elaboração de normas.. Neste sentido, ver mais em: OGUS, Anthony. Self-regulation, in PARISI, Francesco (org.) Production of Legal Rules. Encyclopedia of Law and Economics, 2ª ed. Edward Elgar, vol. 7, 2011.

[8] OMAROVA, Saule. Rethinking the future of Self-Regulation in the Financial Industry. Brooklyn Journal of International Law, 35(3), 2010, p. 697.

[9] MONDACA, Iván. Los Códigos de Conducta y el Derecho Penal Económico. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria (Org.). Criminalidad de empresa y Compliance. Prevención y reacciones corporativas, Atelier, 2013, p. 111.

[10] ALONSO GALLO, Jaime. Estudios sobre las reformas del Código Penal, 2011, p. 151.

[11] Sobre o tema, ver BERND, Schunemann. Las reglas técnicas del derecho penal, ADPCP, 1994, pp. 307 e ss..

[12] NIETO MARTÍN, A. La Autorregulación y Sanciones. Lex Nova, Valladolid, 2008, p. 89.

[13] BACIGALUPO, Enrique. op. cit., p. 30.

[14] Sobre o tema, interessante notar que nos Estados Unidos a matéria encontra-se em estágio claramente avançado de discussão, sendo que já em 1977, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) tornou crime subornar autoridades para facilitar negócios envolvendo estrangeiros.

[15] Destacamos, nos Estados Unidos, a identificação de elementos fundamentais para que um programa de compliance possa ser considerado efetivo, conhecidos por hallmarks, de acordo com guia disponibilizado pelo Governo Americano, através do Department of Justice and the Enforcement Division of the U.S. Securities and Exchange Commision. Disponível em <http://www.justice.gov/criminal/fraud/fcpa/guide.pdf>

[16] Neste sentido, os seguintes diplomas internacionais: Convenção Interamericana Contra a Corrupção, da Organização dos Estados Americanos, firmada em 1996; Convenção Sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, firmada em 1997 e a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, de 2005.

[17] No ordenamento jurídico do Chile, importante notar o artigo 3º, da Lei 20.393/09, que estabelece a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.

[18] Buscando o desenvolvimento do tema no Brasil, os autores anunciam o breve lançamento da obra Compliance, Autorregulação e Responsabilidade Penal, onde são discutidos os fundamentos da incorporação de novas regras, de caráter privado, no Direito Penal, através de uma análise dos princípios do compliance e da autorregulação e sua legitimidade.

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