Direito Comparado

Direito Administrativo perde Garcia de Enterría

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

25 de setembro de 2013, 21h59

No último dia 17 de setembro, li na página eletrônica do jornal espanhol El Pais a notícia sobre a morte de Eduardo Garcia de Enterría y Martinez-Carande, ocorrida no dia anterior. A coluna daquela semana, sobre o novo Código de Processo Civil português (clique aqui para ler), já havia sido enviada para a redação da ConJur e decidi mantê-la, ainda que perdesse a oportunidade de cuidar imediatamente desse triste evento. Em termos jornalísticos, não foi a melhor decisão. Mas, como este espaço possui também um caráter técnico-jurídico, resolvi esperar e coletar mais dados para escrever uma coluna fundamentada sobre o maior administrativista espanhol (e um dos maiores da Europa) do século XX. Assim o fazendo, estava certo de que prestaria uma homenagem mais honesta intelectualmente a esse homem que tanto valorizou o estudo metódico, ordenado e, apesar de sua notável clareza de estilo, rico em sua complexidade.

Eduardo Garcia de Enterría y Martinez-Carande nasceu em Ramales de la Victoria (Espanha) no dia 27 de abril de 1923, um pequeno ayuntamiento da comunidade autônoma da Cantábria, região com riquíssimos sítios arqueológicos do paleolítico superior. Ramales de la Victoria hoje possui apenas 2.367 habitantes. Sua história, contudo, é muito antiga e remonta ao ano 1.000 D.C. Garcia de Enterría nasceu em um família tradicional, de pais e avós notários e juízes. Tendo crescido naquelas verdejantes montanhas da velha Espanha dos tempos de Pelágio, líder dos antigos resistentes cristãos contra o invasor mouro.

Sua adolescência passou-se durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Por efeito da profissão paterna, ele mudou de domicílio algumas vezes, tendo chegado em 1940 a Barcelona, cidade ainda devastada pelos combates entre republicanos e falangistas. Esse foi o tempo de uma difícil escolha: qual faculdade seguir? A carreira profissional de seus antepassados, longe de ser um estímulo para o jovem Eduardo Garcia de Enterría, era um objetivo que o repugnava. Além disso, suas habilidades matemáticas inclinavam-no para as Ciências Exatas. O ingresso na Faculdade de Direito deu-se por insistência de seu pai e ele matriculou-se na Universidade de Barcelona e, posteriormente, transferiu-se para a Universidade de Madrid, onde foi aluno de Federico de Castro y Bravo (1903-1983), um dos civilistas mais influentes no Direito de língua espanhola e bastante conhecido no Brasil por seus estudos sobre o negócio jurídico.[1] Castro y Bravo ajudou Garcia de Enterría a encantar-se com o Direito, o que não é espantoso, dada a qualidade do docente e a invulgar abertura cultural que o Direito Civil oferece.

A descoberta do Direito Administrativo não se deu na Faculdade e sim, após sua formatura, quando prestou concurso (e foi aprovado aos 24 anos) para o disputado cargo de letrado do Conselho de Estado, um dos mais antigos e prestigiosos espaços da Administração Pública espanhola.[2] Os pontos do concurso eram vastíssimos e Garcia de Enterría preparou-se estudando pelos melhores livros do Direito Administrativo francês. Ele apreciou sobremaneira Maurice Hauriou (1856-1929), antigo catedrático de Direito da Universidade de Tolouse e fundador da teoria institucionalista.

Garcia de Enterría, no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, colaborou na fundação da Revista de Administración Pública, um marco na História do Direito contemporâneo espanhol. Em 1956, ele foi aprovado para a cátedra de Direito Administrativo na Universidade de Valladolid (1957) e, posteriormente, ingressou na Universidade Complutense de Madrid (1962), graças a um novo concurso.

Na segunda metade do século XX, Garcia de Enterría firmou-se como o maior administrativista espanhol, levando para além das fronteiras ibéricas suas novas ideias sobre os institutos básicos do Direito Administrativo e visões diferentes sobre a discricionariedade, o poder de polícia e a relação entre os administrados e a Administração, sob o enfoque dos direitos fundamentais.

As influências teóricas mais salientes no pensamento de Garcia de Enterría advém dos Direitos francês, italiano e alemão. Ele estudou alemão, após sua aprovação na cátedra universitária, e fez estudos periódicos nas Universidades de Turíngia e de Munique.

Seus livros e artigos ganharam enorme repercussão nos meios jurídicos estrangeiros. Seu Curso de derecho administrativo, que tem como coautor Tomás-Ramón Fernandez, publicado pela editora Civitas, de Madrid, em dois tomos, está em sua 16ª edição, neste ano de 2013.

Outra obra digna de referência é La lucha contra las inmunidades del poder en el derecho administrativo : (poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos), em 3ª edição, da editora Civitas, de Madrid. Trata-se de uma monografia que apresenta as visões de Garcia de Enterría sobre temas que lhes são particularmente caros, como a discricionariedade, as relações entre Executivo e Judiciário e o controle judicial dos atos administrativos.[3] Esse livro é o resultado de uma conferência pronunciada no ano de 1962, em plena ditadura franquista, o que não deixa de ser notável, na qual ele atacou o regime de imunidades da Administração, especialmente quando ela se mostra insubmissa ao controle do Poder Judiciário. Ter-se-ia de estabelecer meios de se controlar a discricionariedade administrativa, por meio dos seguintes instrumentos: a) a diferenciação entre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados; b) o controle dos motivos determinantes dos atos administrativos; c) o controle da finalidade do ato administrativo, por meio da investigação do desvio de poder; d) a admissão de que há elementos regrados nos atos administrativos discricionários.[4] Tais ideias fizeram-se sentir no Brasil mais fortemente a partir dos anos 1990, quando surgiram as primeiras obras que contestavam a clássica dicotomia entre atos vinculados e atos administrativos, o que também se evidenciou na jurisprudência.

A supremacia da Constituição e seu caráter eminentemente normativo é um tópico de interesse de Garcia de Enterría, especialmente em suas publicações dos anos 1980, quando esse tema começava a interessar aos estudiosos de língua portuguesa e espanhola, graças aos processos de reconstitucionalização da maior parte das nações ibéricas e latino-americanas, que saíam de longas noites ditatoriais.[5]

Muitos de seus textos encontram-se traduzidos para nossa língua. Fábio Medina Osório, que é um dos grandes divulgadores do trabalho do velho catedrático espanhol, traduziu “Las transformaciones de la justicia administrativa: de excepción singular a la plenitud jurisdicional. ¿Un cambio de paradigma?” [“As transformações da justiça administrativa : da sindicabilidade restrita à plenitude jurisdicional : uma mudança de paradigma?”], publicado em Belo Horizonte, pela Editora Fórum, no ano de 2010. O livro mereceu uma bela apresentação de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, outro admirador de Garcia de Enterría.

A jurisprudência brasileira é tributária dos ensinamentos de Garcia de Enterría. A título de exemplo, veja-se que, no Supremo Tribunal Federal, de entre os acórdãos publicados em sua página eletrônicas, há 48 decisões colegiadas que se fundam nos escritos de Garcia de Enterría.

Além da brilhante carreira universitária, Garcia de Enterría foi o primeiro juiz espanhol da Corte Europeia de Direitos Humanos (1978-1986). E, o mais importante, colaborou com o processo constituinte espanhol, cuja liderança intelectual esteve a cargo dos chamados “pais fundadores” da Constituição de 1978, a saber, Gabriel Cisneros, José Pedro Pérez-Llorca, Miguel Herrero y Rodríguez de Miñón, Miquel Roca i Junyent, Manuel Fraga Iribarne, Jordi Solé Tura e Gregorio Peces-Barba (este último falecido em julho de 2012 e muito conhecido no Brasil no âmbito da teoria dos direitos fundamentais).

Todos os que conheceram Eduardo Garcia de Enterría descrevem-no como um homem discreto, afável e extremamente humilde, qualidades raras em um ambiente tão marcado por vaidades inconfessáveis, como é o mundo universitário.

Seu desaparecimento deixa órfão o Direito Administrativo. Sua contribuição ultrapassou os limites do Direito Público e tornou Garcia de Enterría digno de admiração por toda a comunidade jurídica. Ficam assim as sinceras e humildes homenagens de um civilista a um dos luzeiros do Direito Público no século XX.


[1] As informações dos parágrafos iniciais extraíram-se de um depoimento pessoal de Eduardo Garcia de Enterría ao portal Direito do Estado, coordenado por Paulo Modesto, com duração de uma hora, cuja audição é fortemente recomendada: http://www.direitodoestado.com.br/depoimentos-magistrais/eduardo-garcia-de-enterria. Acesso em 20/9/2013.
[2] O letrado é ocupante de cargo privativo de bacharéis em Direito, que desempenha as funções de estudo, preparação e redação dos projetos de manifestações sobre os assuntos submetidos ao Conselho de Estado, conforme previsto no art. 14, 1, da Lei Orgânica do Conselho de Estado de Espanha.
[3] Essa temática também se faz referir no livro Democracia, jueces y control de la administracion, em 2ª edição, também da Civitas.
[4] ENTERRÍA, Eduardo García de. Op. cit. p. 34.
[5] GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Constituição como norma. Revista de direito público, v. 19, n. 78, p. 5-17, abr./jun. 1986; GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La constitucion como norma y el tribunal constitucional. Madrid: Civitas, 1981.

Autores

  • é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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