Processo Novo

Como surge um princípio jurídico no ordenamento?

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

23 de setembro de 2013, 8h31

Spacca
Caricatura José Miguel Garcia Medina - 30/07/13 [Spacca]Tarefa das mais difíceis é a de se identificar um princípio jurídico. Uso a expressão “identificar”, aqui, em um sentido amplo, para abranger formulação, convalidação e aplicação.

Não desejo, hoje, tratar da tese que identifica os direitos fundamentais como princípios. Nesse caso, sob certo ponto de vista, talvez o problema sequer existiria, já que é lugar-comum dizer que “direitos fundamentais são princípios”, embora isso seja algo que deva ser posto à prova. Também escapa aos limites deste trabalho, porque exige exame mais demorado, a relação existente entre regras e princípios. Para esse tema, haverá outro texto, em breve, nesta coluna.

A afirmação com que abro o texto desta semana pode parecer estranha ao leitor. Afinal, o que mais se vê, hoje, é o surgimento abundante de princípios, para se resolver todo e qualquer problema, em todos os sentidos. Parece, na verdade, que tudo acaba se tornando “princípio” e, então, sendo “ponderado” com outros “princípios”… Em texto anterior desta coluna, tentei chamar a atenção para o fato de que essa é uma atitude perigosa. O vocábulo “princípio” tem sido usado para abrigar uma quantidade muito grande de fenômenos jurídicos, que não guardam relação entre si. E pior: não raro, “princípios” de categorias diferentes são “sopesados”. Não parece adequado, contudo, aplicar a tese de Alexy àquilo que ele próprio, talvez, não chamasse de princípios.

Devemos reconhecer, de todo modo, que a tarefa de se definir princípio não é mesmo fácil. Depois, acertar como se decidir com base em um princípio, também não é algo simples. Contribui para essa complexidade o fato de a alguns “princípios” serem atribuídos vários significados.

Tome-se, por exemplo, a boa-fé objetiva. Que significações tem a boa-fé, em nosso direito? Boa-fé é princípio júridico?

De acordo com o artigo 113 do Código Civil, “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé”. Aqui, a boa-fé serviria como critério interpretativo. Logo adiante, porém, o artigo 187 do Código dispõe que é ilícito o ato que excede os limites impostos pela boa-fé. Por fim, o artigo 422 do Código Civil estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

A boa-fé, nos artigos 187 e 422, parece não se conformar apenas a servir de norte à interpretação das cláusulas de um negócio — como sucede com o artigo 113 — mas, indo além, limita a conduta das partes e, a um só tempo, impõe comportamentos. A leitura dos três dispositivos citados revela que não está em jogo, aqui, a boa-fé “subjetiva”. Não se ocupa a lei, no caso, de se perquirir sobre a intenção do agente. Por isso, fala-se hoje, comumente, em boa-fé objetiva.

À luz do Código Civil anterior, indagava-se sobre a existência de um “princípio da boa-fé”. Apesar da ausência de menção expressa a respeito de tal princípio, a doutrina o reconhecia, mas quase que exclusivamente como regra de “hermenêutica integradora”, como afirmou Couto e Silva.[1] Sob esse prisma, há, hoje, previsão expressa na lei, como se disse (cf. artigo 113 do Código Civil). Couto e Silva empenhou-se em demonstrar, ainda, à luz do sistema então em vigor, que haveria deveres, cujo cumprimento poderia ser exigido das partes, resultantes da concreção do princípio da boa-fé.

Guardadas as devidas diferenças, Couto e Silva fez algo parecido com o que fez Jhering, quando este formulou o princípio da responsabilidade por culpa in contrahendo, descrito por Larenz como exemplo de método a ser percorrido para se formular um princípio jurídico. Sob esse prisma, o conhecimento e formulação dos princípios “vai ligado o seu esclarecimento mediante casos paradigmáticos, a delimitação de seu alcance em relação com outros princípios e com uma regulação positiva, a sua concretização relativamente a grupos de casos e, finalmente, o plasmar-se numa ‘doutrina’ bem estruturada”.[2]

Poderia se dizer que todo esse trabalho doutrinário, à luz dos arts. 187 e 422 do Código Civil de 2002, já não seria mais necessário. Ficaria pendente, assim, a tarefa subsequente, consistente em saber como, com base na boa-fé, pode-se considerar ilícita determinada conduta, ou se impor deveres às partes. Creio, porém, que ainda temos muito a caminhar. Afinal, ainda estão em construção, na doutrina e na jurisprudência brasileira, os contornos da boa-fé objetiva.

A referência na lei à boa-fé, assim, embora permita ultrapassar a indagação sobre saber se tal princípio existiria, entre nós, deixa pendente a resolução de outras questões, como a de se formular o princípio. Afinal, dizer que as partes devem executar o contrato “de acordo com a boa-fé” oferece um caminho, por certo, mas não determina o que, de fato, deve ser observado pelas partes.

Prossigamos um pouco, ainda em relação à boa-fé objetiva.

O artigo 422 do Código Civil inspirou-se no direito alemão. Com a codificação alemã (BGB, § 242), conferiu-se sentido ético à boa-fé subjetiva pela concepção de que a ignorância não seria suficiente, pois a boa-fé exige a consciência de não lesar alguém (Guter Glauben). A boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva são formadas pelo mesmo substrato ôntico, mas ambas diferem quanto ao modo de manifestação. A boa-fé objetiva se projeta do exterior para o interior, uma vez que a manifestação da vontade no meio social é o que deverá prevalecer par a segurança do tráfego negocial (Rechtsverkehr). Na boa-fé subjetiva o caminho é inverso, centrando-se a análise sobre o sujeito emitente da declaração de vontade.

Essa guinada (do “subjetivo” para o “objetivo”) percorre todo o Código Civil brasileiro.[3]

Algo parecido sucede com o artigo 187 do Código Civil, que é semelhante ao artigo 334.º do Código Civil português. Vê-se que adotou o critério objetivo, funcional ou finalístico, segundo o qual mais importante que a intenção do sujeito é a constatação de que o direito foi exercido de modo contrário à sua finalidade econômica ou social.

Disso decorrem muitas consequências. Reconhece-se, por exemplo, que “as diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva” (Enunciado 412 das Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal). Na jurisprudência, esse entendimento vem sendo reiteradamente observado.

Vê-se que, como afirmei acima, a dimensão da boa-fé objetiva está em construção, entre nós. Os dados fornecidos pela lei (no caso, os artigos 187 e 422 do Código Civil) são importantes, evidentemente; mas a atitude doutrinária – como a desenvolvida outrora por Costa e Silva – não deixa de ter relevância, já que é necessário, ainda, precisar o que é o princípio, e o que se pode (e não se pode) resolver com ele.

A primeira dificuldade, pois, está em se formular um princípio.

Embora seja complexo fazê-lo, alguns autores apresentaram critérios que devem ser observados para se identificar um princípio.

Para Josef Esser, os princípios são “descobertos” a partir de uma problemática concreta, “de modo que é o problema, e não o ‘sistema’ em sentido racional, que constitui o centro do pensamento jurídico”.[4] Uma vez formulados, os princípios devem ser convalidados à luz da experiência histórica.[5] Formulados e convalidados, os mesmos princípios devem ser aplicados a outros dados para que tenham, então, sua existência confirmada nas conseqüências práticas de sua aplicação.[6] É o que alguns chamam de criterio della fecondità dei principi.[7]

Esses critérios, creio, devem ser considerados, para que se possa dizer que algo é um princípio jurídico. Os princípios devem ser formulados a partir das problemática concreta e convalidados pela prática da comunidade etc. Vale dizer: os princípios não surgem do nada, e não podem ser simplesmente abandonados, como se não tivessem existido. Incidem, aqui, as observações que temos feito em torno da ideia de jurisprudência íntegra (cf. p.ex., o que escrevermos aqui e aqui). Através do critério de fecundidade do princípio, sua existência e convalidação é reafirmada, como se seu sentido, sob esse prisma, fosse atualizado constantemente, a cada novo caso resolvido com base no princípio. Não observadas essas condições, não se poderá afirmar que se está diante de um princípio jurídico.

Com este segundo texto, ainda estamos apenas começando uma longa caminhada, que começamos antes, nesta coluna, aqui na Conjur. Temos muito a percorrer, mas, pouco a pouco, espero que consigamos apresentar bases mínimas a serem observadas, na interpretação e aplicação de princípios jurídicos.

Caminhemos, pois. Até a próxima semana!


[1] A obrigação como processo, p. 33 ss.

[2] Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 512.

[3] Tratamos do tema, com mais vagar, na obra Código Civil comentado, escrito em coautoria com Fábio Caldas de Araújo, no prelo.

[4] Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado, p. 9.

[5] “La prima e fondamentale base di prova per la dimostrazione della esistenza del principio è un comportamento osservabile o nella comunità attuale o in una classe storicamente determinata di comunità tra cui figura quella in considerazione, o addirittura, al limite, in ogni società umana” (Vincenzo Panuccio, Saggi di metodologia giuridica, p. 46).

[6] Vincenzo Panuccio, ob. cit., p. 41.

[7] Refere-se Vincenzo Panuccio ao criterio della fecondità dei principi, afirmando que “un principio che non sai fecondo di conseguenze giuridiche (anche all’infuori degli effetti espressamente previsti) non è, parlando a stretto rigore, un principio giuridico” (ob. cit., p. 62). A ideia é também mencionada por Boulanger, consoante narra Guido Alpa: “Ma la regola ferra che Boulanger osserva è la segunte: una proposizione di tenore generale non há valore e carattere di principio se non quando la sua aplicazione possa portare ad una soluzione di diritto positivo. […]. Nei principi Boulanger vede quindi un indispensable mezzo tecnico per la soluzione dei problemi giuridici: testualmente ‘un indispensable elément de fécondation de l’ordre juridique positif’ ” (I principi generali, p. 109-110).

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