Segunda Leitura

Ensinando Direito em 2053, um exercício de futurologia

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

15 de setembro de 2013, 8h01

Spacca
O ensino do Direito é, de todos, o mais conservador. Apesar de algumas mudanças feitas em faculdades mais avançadas, ainda há aulas no velho estilo Coimbrão: professores a falar, alunos a ouvir. Pouca utilização da tecnologia, análise de julgamentos equivalem à leitura de acórdãos, às vezes impressos, mesmo quando já estão disponíveis em vídeos (como, por exemplo, TRF da 4ª Região). Muitas citações, a maioria sem qualquer utilidade para o estudo concreto e com a única finalidade de exibir erudição. Poucos resultados para quem deseja direcionar-se para uma profissão jurídica específica.

Mas, em um exercício de futurologia, imaginemos como será o Direito ensinado daqui a 40 anos. Transportemos nossos pensamentos para uma manhã do dia 15 de setembro de 2053.

O professor José Carlos, 136 anos de idade, na sua casa em um confortável condomínio na zona rural, distante cerca de 150 km de sua universidade, prepara-se para mais uma aula de sua matéria, Direito Interplanetário. Veste roupas mais formais, uma bermuda cinza e uma camisa branca feita imitando linho. Liga seus possantes aparelhos eletrônicos e, na tela que ocupa toda a parede de seu escritório, dirige-se aos funcionários da universidade encarregados da transmissão, perguntando se tudo está em ordem. “Positivo”, respondem.

José Carlos pede aos seus filhos adolescentes, Mirna, 46, e Cássio, 44 anos, que façam menos barulho na brincadeira de disputar uma bola que se movimenta sozinha. E abre-se o espaço para o acesso dos alunos.

O professor acena aos 930 alunos matriculados no primeiro ano do curso (houve desistência de 70). Um terço deles é de países latino-americanos, mas há alguns da África e até da Ásia. E assim ele inicia sua aula.

Explica que será estudado um julgamento, em tempo real, no Tribunal de Recursos Hídricos. O acusado, um habitante de Vênus, tentava levar para o seu planeta um contêiner cheio de água e foi surpreendido pela Polícia de Águas quando acionava os motores de sua nave espacial. Imediatamente preso, com base no “Código Sul-americano de Defesa do Ambiente”, é conduzido à Corte especializada para ser julgado.

O professor faz uma breve introdução. Explica que a água no Brasil era gratuita e abundante, até que começou a escassear em 2025. Conta que a agricultura e a indústria utilizavam quantidades enormes de água, sem nada pagar. Narra o desperdício que era praticado pelos brasileiros, tanto nas atividades públicas como na vida privada. Por fim, explica que isto tudo mudou por volta de 2040, quando povos do Oriente impuseram à comunidade internacional a flexibilização da soberania dos Estados e o uso compartilhado dos recursos naturais, não só no Brasil, mas em toda a América do Sul.

Os alunos estão ansiosos. Assistem à aula de suas casas, do clube, em viagem, todos munidos de poderosos aparelhos retransmissores, imagem nítida e som perfeito. Na universidade, só estiveram na abertura do ano letivo, quando assistiram a uma conferência ministrada pelo professor Salinas, decano, que completou 94 anos de ensino jurídico. Naquela ocasião fizeram visita guiada aos locais mais importantes. Lembram-se, rindo muito, da biblioteca, com vários livros encadernados, agora, inclusive, aberta ao turismo. Não conseguiam compreender como os antigos podiam ficar horas concentrados em uma leitura. Alguns duvidavam. Outros confirmavam, um deles afirmando que se lembra de uma foto de seu avô sentado em uma cadeira de balanço, lendo um livro de um certo Pontes de Miranda.

Inicia-se o julgamento. Os juízes são três, dois com formação em Direito, sendo um brasileiro e o outro chinês, solução imposta em um Tratado lavrado em 2042. O terceiro, formado em hidrologia. O agente do Ministério Público fala de sua residência. O advogado, do seu escritório. O venusiano tudo confessa, pedindo clemência. Diz que no seu planeta sua família passa necessidades por falta do líquido

Os juízes parecem não se sensibilizar com as lamúrias do extraterrestre. E, como não havia necessidade de provas, o Tribunal passa a decidir. Por dois votos contra um, decretam seu exílio para Urano, local onde estavam os piores elementos do sistema solar. O hidrólogo propôs prisão perpétua no Brasil, mas os demais discordaram, porque venusianos viviam muito, cerca de quatro séculos, e sairia muito caro mantê-lo detido. O brasileiro, que presidia a sessão, ditou a sentença e mandou que retirassem o condenado. Não havia apelação, pois a população e a criminalidade haviam crescido demais e era impossível manter-se grandes estruturas. Por isso mesmo o julgamento era colegiado.

O professor José Carlos, então, passou a discutir com seus alunos o caso concreto. Começaram as manifestações sobre o pouco cuidado das gerações anteriores com a preservação dos recursos hídricos, na ordem estabelecida pelo programa do aplicativo. Um de cada vez e com prazo limitado a dois minutos. A maioria protestou contra os seus ascendentes e dois afirmaram que no Brasil a Constituição, de 1988, assegurava a proteção do meio ambiente para as futuras gerações. Uma voz feminina falou em tom de lamento: “e eu que admirava tanto meus avós….”.

José Carlos pediu foco, deviam manifestar-se sobre a pena imposta, se consideravam justa. Uma jovem estudante, com 34 anos de idade, afirmou que a pena fora severa, pois em suas viagens turísticas havia constatado que realmente faltava água em Venus. Dezenas de mensagens surgiram protestando. A maioria delas discordando com veemência. Afirmavam que, restringidos seus direitos ao uso de apenas 5 litros d’água por dia, não poderiam aceitar que um ET surrupiasse o precioso bem. Outra aluna invocou o princípio da dignidade humana e os demais afirmaram não aplicar-se a extra-comunitários, ou seja, aos de fora da América do Sul. Vencidas, ambas se calaram.

José Carlos prosseguiu, colhendo opiniões sobre o valor da água, a validade dos Tratados Internacionais, a inexistência do duplo grau de jurisdição e a severidade da pena imposta, notando-se que a maioria era favorável ao rigor do julgado.

Passadas duas horas, o professor avisa sobre a próxima aula. Tratariam de um caso de direitos do consumidor, mais especificamente um brasileiro que reclamava contra uma companhia de turismo sediada nos Estados Unidos, que não teria cumprido o contrato de levá-lo às montanhas nevadas no Chile. Extraoficialmente a empresa justificava sua conduta, alegando que não nevava há três anos por força do aquecimento global e que o cumprimento era impossível. A ação seria julgada uma semana depois pelo Tribunal de Consumo das Américas, com sede em Boston. Duas testemunhas arroladas pelo brasileiro deporiam por um sistema evoluído de vídeo-conferência. Todos assistiriam e comentariam.

Antes, todavia, LX4, o robô da Universidade, falaria por 30 minutos sobre os direitos do consumidor no Brasil e nos Estados Unidos, mencionando a legislação e a jurisprudência. Em seguida, um professor da Universidade de São Marcos, no Peru, a mais antiga da América Latina, faria uma exposição de 20 minutos.

Um aluno da Nicarágua perguntou quando seria a prova. O professor informou que seria no fim de semestre, virtual, e que consistiria na participação em uma reunião simulada, na qual o aluno deveria defender os interesses de seu cliente perante a parte contrária, buscando uma composição amigável.

Dado o aviso, a aula foi declarada encerrada. O professor preparou-se para uma partida de tênis com um dos seus vizinhos. Os alunos dedicaram-se às suas atividades de rotina. A maior parte deles aos seus estágios, quase sempre virtuais e em escritórios espalhados pela Europa, Estados Unidos, China e alguns países emergentes.

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