Guerra ao passado

Ampliação da quarentena compromete ideais da OAB

Autor

  • Sergio Tostes

    é advogado formado pela Faculdade de Direito da UERJ Mestre em Direito pela Harvard University e pela New York University advogado militante há 45 anos e sócio senior de Tostes e Associados Advogados.

12 de setembro de 2013, 12h46

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil decidiu, por unanimidade, em consulta que lhe foi formulada pela seccional de Roraima, que a quarentena de três anos imposta aos magistrados para advogar no juízo do tribunal do qual se afastou, inserta no artigo 95, parágrafo único, inciso V, da Constituição Federal, se estende, também, à sociedade de advogados a que aquele profissional se vincular.

A decisão parte de duas premissas absolutamente equivocadas: (1) os magistrados que se afastam do cargo, a grande maioria, no cumprimento do ditame constitucional da aposentadoria aos 70 anos de idade, retornam à advocacia com o único propósito de fazer tráfico de influência perante seus antigos pares; e, (2) os escritórios de advocacia que os acolhem estão imbuídos do mesmo propósito.

Esses dois equívocos oriundos do órgão máximo da Ordem dos Advogados do Brasil representam grave desvio na história da veneranda instituição — a quem a sociedade civil brasileira tanto deve por sua luta indômita pelas liberdades individuais, a mais marcante de todas, os atos de destemor que reencaminharam o país a rota da democracia plena.

Preocupa o país adotar a presunção de venalidade para seus cidadãos. Num exagero de raciocínio, equivaleria a prender todas as pessoas e soltar apenas as que provarem sua inocência. Para uma entidade que sempre defendeu o culto aos valores da cidadania não parece convir que se cultue antivalores com o mesmo entusiasmo. Que outros corolários terá essa linha de raciocínio? Os escritórios de onde saem advogados agregados à magistratura pela regra do quinto constitucional poderão atuar no tribunal para onde foi seu integrante?

Os juízes aposentados advogam porque ainda estão plenos de vigor quando são forçados a se aposentar, aos 70 anos. Triste a sociedade que deixa de utilizar a sabedoria e o conhecimento de muitos de seus maiores vultos. Homens como Sobral Pinto, Oscar Niemeyer, Barbosa Lima Sobrinho, para citar apenas alguns, puderam disseminar sua capacidade criativa e seu talento até uma idade mais avançada, permitindo a várias gerações de brasileiros aprender com suas lições. Nenhuma forma de transmissão de conhecimento é mais eficiente do que o contato pessoal com aqueles com capacidade de transmitir sua experiência e sabedoria.

A regra constitucional da aposentadoria compulsória aos 70 anos não tem sintonia com a realidade do Brasil atual. Com o expressivo aumento da expectativa de vida. Grandes talentos, especialmente no Poder Judiciário, são obrigados a se afastar de suas atividades no auge de seu vigor intelectual e inteiramente capazes de aliar vasto conhecimento jurídico com o discernimento que só o tempo pode conferir. Em algum momento, essa regra terá que ser revista, para o bem do país.

Veja-se o exemplo dos Estados Unidos, onde ministros pontificaram na Suprema Corte quando já entrados na casa dos 70 e, até mesmo dos 80 anos. Na década de 1960, quando aquele país passou por sua maior inflexão social, com o reconhecimento dos direitos civis, os grandes artífices do avanço foram justamente seus membros mais antigos, os ministros Earl Warren, Hugo Black e William Douglas. As universidades americanas e europeias, símbolos de excelência valorizam sobremodo a importância do "velho" para a boa formação das gerações novas. Lamentavelmente, não se pode dizer que nossas universidades consigam se ombrear com aquelas.

Retomando a decisão da OAB, vê-se que o equivoco das premissas acima expostas decorre de fazer prevalecer a exceção sobre a regra. Os integrantes do Poder Judiciário são corretos. Os integrantes das sociedades de advocacia também são corretos. Estas são as regras; as exceções são os eventuais desvios de conduta. Para esses desvios, aí estão as leis de caráter punitivo para serem aplicadas, especialmente pela própria OAB que tem meios próprios em relação aqueles que eventualmente saiam da linha.

Afinal, está-se tratando de advogados regularmente inscritos, com um impedimento, pelo prazo de três anos, restrito exclusivamente ao tribunal a que pertenciam enquanto foram magistrados, portanto sob a égide da corporação. Igualmente, as sociedades de advocacia têm regime próprio estabelecido pela Lei 8.906 de 1994, estando igualmente sujeitas às devidas cominações em caso de desvio. Os Tribunais de Ética e Disciplina das diversas seccionais têm desempenhado um papel exemplar na fixação de parâmetros de conduta.

Portanto, os aposentados que retornam à sua casa de origem, a Ordem dos Advogados do Brasil, devem ser louvados por não se acomodar e continuar a compartilhar com seus colegas advogados a sabedoria acumulada em anos de exercício da magistratura. Igualmente, as sociedades de advocacia que os recebem prestam grande serviço a seus integrantes que têm o privilégio de aprender e se aprimorar nesse saudável convívio. Na realidade, essas sociedades transformaram-se em centros de educação continuada, oferecendo benefício ímpar aos advogados recém-formados, o que as escolas não oferecem, como os exames de admissão nos quadros da OAB estão a demonstrar.

Diz o voto aprovado pelo Conselho Federal: "Preambularmente, cumpre informar que ao sentir do Relator, não é um caso de mera análise objetiva da legislação e seus requisitos intrínsecas (???), o clamor social que deu vazão …". Os vários e graves erros gramaticais e expressões desconexas não espantam tanto quanto ver um resolução da OAB invocar o clamor das ruas em detrimento das leis escritas, o que vai de encontro a toda tradição da Ordem.

Diz mais. "Mesmo que não ocorra (sic) os requintes objetivos legais, de sociedade devidamente registrada, a simples vinculação informal (…) já é suficiente para fazer a prova da infração". Ora. A OAB não pode afrontar o princípio sagrado de que a pena não pode passar da pessoa que comete a falta.

Ademais estabelece uma regra abstrata de situações que podem, em tese, configurar a falta.

Em vez de se manifestar pela prevalência da exceção sobre a regra, de forma indiscriminada, que a OAB contribua, ainda mais, para o aprimoramento das instituições do país, apontando especifica e nominalmente, e tomando as providências cabíveis contra aqueles advogados, egressos da magistratura, que estejam praticando atos reprováveis. Que faça o mesmo em relação a sociedades de advogados que estejam se beneficiando desses atos. Que aponte também publicamente, no exercício do dever insculpido no artigo 133 da Constituição Federal, integrantes do Poder Judiciário que estejam desnaturando seu múnus. Estará assim cumprindo seu compromisso histórico em defesa da democracia. O que está em total descompasso com esse compromisso é estabelecer qualquer forma de limitação à liberdade da prática da advocacia, sem o devido processo legal, este que é o grande compromisso dos advogados para com a sociedade civil.

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    é advogado, formado pela Faculdade de Direito da UERJ, Mestre em Direito pela Harvard University e pela New York University, advogado militante há 45 anos e sócio senior de Tostes e Associados Advogados

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