Cadeira da advocacia

Quando o presidente do Supremo escreve uma carta

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12 de setembro de 2013, 16h46

À medida que vai envelhecendo, o ser humano começa a ter arquivos maiores. Isso funciona sempre assim, desde a choupana do miserável ao ricaço isolado em mansão principesca. Outro dia, este velho marinheiro encontrou uma pétala ressequida de rosa no entremeio de um livro bem antigo, folhas em papel de seda, contendo as obras completas de Vinícius de Moraes. Ficou lá onde estava. A moradora das palafitas amazônicas guarda o missalzinho enrolado no tercinho construído com bolas de plástico imitando pérolas. Mais à frente, o adolescente de ontem encontra na gaveta três bolinhas de gude, as mesmas que tinham mais valor porque eram imaculadamente brancas. Os antigos juristas são assim também. Têm nas estantes o livro autografado do primeiro professor de direito, o retratinho da avó (a mesma do ministro Sebastião Reis Júnior, dos melhores que o STJ tem) e outras miçangas, com relevo para o relógio de bolso que foi do pai de um deles, outro respeitadíssimo togado do 2º mais alto tribunal do país. Ao lado daquilo tudo, começam a juntar-se condecorações, diplomas de honra ao mérito, bilhetes, ofícios e cartas, sendo raros os manuscritos. No meu tempo de moço, a gente escrevia muito à mão, isso antes do computador. Tenho nos meus arquivos, que dizem implacáveis, bilhetes de Carlos Araújo Lima e Serrano Neves, notando-se que os dois faziam trio com Romeiro Neto, mais antigo e dos melhores criminalistas da época (v. caso Aída Curi). Evandro Lins e Silva estava chegando, ameaçando a supremacia maior. Estive com ele, Lins e Silva, quatro ou cinco vezes, não antes da ditadura que o tirou do Supremo e mesmo depois, quando retornava à advocacia. Chamou-me de “menino”. Escrevia sem buscar recursos mecânicos. Arquivei coisas dele. Não fui muito chegado a Evaristo de Moraes Filho, o criminalista (os dois filhos têm o mesmo nome), mas tenho dele papeizinhos trocados durante audiência pesada realizada num rincão qualquer do Brasil. Não esqueço Heleno Cláudio Fragoso. Tenho em depósito uns poucos lembretes vindos de próprio punho. Do lado de cá, ou seja, em São Paulo, Raimundo Pascoal Barbosa me escrevia de vez em quando, fingindo errar o português. Todo mundo sabia que ele fazia de propósito. Um ou outro bilhete de Dante e Celso Delmanto, uma carta caprichada, não com esferográfica, mandada por Waldir Troncoso Peres. Essas recordações vêm ao correr do pensamento, sem maiores pesquisas mas, com certeza, tenho muito mais.

Alguns dirão serem meus textos desconexos, pois não haveria sentido em lembrar à Suprema Corte as efígies de mortos famosos alheios ao julgamento do processo chamado “Mensalão”. Há sim. Continuo a usar a caneta tinteiro para escrever cartas, porque a mão pode transmitir ao papel, nos sucessivos pressionamentos, parte boa das emoções do escriba. Assim, remeti um escrito a Antonio Cezar Peluso, presidente, à época, da Corte Maior brasileira, ele e eu crescendo chapinhando areia em praia litorânea. Pedi-lhe, na missiva — que não era longa mais muito carinhosa —, providências para que fosse cumprida a lei federal (sobrepujando qualquer regimento) impondo ao Supremo Tribunal o dever de manter junto à tribuna assento adequado a que o defensor pudesse sustentar suas ações e fiscalizar, no entremeio, os debates judiciários. Veio-me em retorno, da mão do presidente Cezar Peluso, uma carta gerada com preocupação, inclusive, de não entortamento das linhas, sabendo-se disso por haver ainda, no canto esquerdo das folhas, a delicada marca deixada por um clip estabilizador. Nas cartas não computadorizadas há segredos. Não devem ser partilhadas a não ser com concordância expressa dos remetentes. Importante é dizer, entretanto, que o presidente Cezar Peluso disse haver tentado atender ao pedido com muito esforço, mas havia alguma coisa ligada ao tombamento do mobiliário do Supremo Tribunal Federal a complicar as coisas. Apenas devo dizer, em sequência e para encerrar o texto, que ofereci ao presidente Peluso, se e quando ele voltasse a advogar, duas velhas, leais e fortes mãos do velho criminalista para a unção, outra vez, da beca com que o respeitadíssimo ministro iniciara a vida profissional, no entrechoque daquelas ondas a baterem sincopadamente no quebra-mar mil vezes ponteado pelo esforço da resistência. Não seria eu, quem sabe, o mais indicado para a missão solene, mas cheguei à conclusão de que sou o quase mais antigo, partilhando com os contemporâneos, pouquíssimos aliás, a atividade de reabertura das portas da advocacia. Pretendemos fazê-lo, sim, eu e milhares de advogados espalhados por aí, uns anônimos, outros conhecidos, mas sempre vestindo o pano preto a lhes servir de sudário, em chegando a hora. A missiva segue ao ministro Peluso. Não lhe conheço o endereço e não pretendo insistir na localização. Independentemente disso, alguém, ou algum, na Suprema Corte, mais as três dezenas de advogados intervenientes do maior processo do século passado e do entrante, devem saber que é esta a hora maior em que a advocacia brasileira está a merecer demonstração física, concreta, pujante e definida de respeito. Seria, além do mais, o momento para que os criminalistas intervenientes, de maneira formal, apontassem o indicador à tribuna vazia e exigissem, doravante, um assento adequado, simples por certo, não o trono de um rei, mas o posto de guardião das liberdades, relembrando a todos que o Supremo Tribunal Federal está descumprindo lei expressa que permite ao advogado falar sentado, se e quando quiser. Não o fazendo, fica ali a cadeira à espera daquele que vem depois e de todos os que chegarem no cumprimento da sublime missão da advocacia.

Todos os criminalistas intervenientes no julgamento são excelsamente diferenciados no panorama jurídico nacional. No meio deles há dois ex-ministros de Estado. Façam as vezes de quase oitocentos mil advogados e deixem marcada a seriíssima pretensão nos ecos daquele augusto Tribunal Maior.

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