Propriedade industrial

Importação paralela de marcas gera dúvidas

Autor

  • Newton Silveira

    é advogado especialista em Propriedade Intelectual diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual mestre em Direito Civil e doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor de Direito Comercial na Graduação e de Propriedade Intelectual na Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP.

10 de setembro de 2013, 8h15

O julgamento, no dia 5 de junho de 2012, do REsp 1.249.718/CE, aparentemente solucionou a questão da importação paralela de marcas, mas não convenceu.

Senão, vejamos.

A questão se cinge à interpretação do incido III do Artigo 132 da Lei de Propriedade Industrial, a saber:

“Artigo 132. O titular da marca não poderá:

[…]

III – impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento […]”

Conclui o acórdão do Superior Tribunal de Justiça que não há necessidade de interpretação de referido artigo e inciso, que são suficientemente claros: a contrario sensu, se não houve consentimento do titular da marca, o produto marcado não pode ser internado no mercado nacional, eis que o legislador optou pela exaustão nacional, no caso.

Uma coisa é clara: se o titular do registro da marca concordou com a importação do produto, não ocorreu ilícito.

Mas, se não houve concordância do titular do registro, expressa ou tácita, a conclusão de ilicitude não é automática.

O inciso III do artigo 132 permite a importação se não houve discordância do proprietário da marca, mas não a proíbe em seu próprio texto.

É preciso que o intérprete vá ao artigo 129 da mesma LPI para completar seu raciocínio. Dito Artigo 129 “assegura ao titular (do registro da marca) seu uso exclusivo em todo o território nacional”.

Agora sim. O titular da marca adquire seu uso exclusivo (artigo 129) e o inciso III do artigo 132 o excepciona.

A questão é: o inciso III do artigo 132 é a única exceção à exclusividade estabelecida no artigo 129?

Se fizermos um paralelo com o direito do titular de uma patente, na mesma Lei de Propriedade Industrial, veremos que o artigo 42 estabelece o direito exclusivo do titular da patente e o artigo 43 relaciona sete exceções, inclusive o inciso IV que cuida, também, da importação paralela:

“Artigo 43. O disposto no artigo anterior não se aplica:

[…]

IV – a produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto que tiver sido colocado no mercado interno diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento;”

Assim, em princípio, a exaustão no campo das patentes é exaustão nacional.

Mas, se formos ao parágrafo 4º do artigo  68 da LPI, veremos ser admitida a importação por terceiros de produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto, desde que tenha sido colocado no mercado diretamente pelo titular ou com seu consentimento.

Agora, se trata de exaustão internacional (vide importação e colocado no mercado).

Quando a exaustão nacional do inciso IV do artigo 43 se transforma em exaustão internacional? No caso de importação para exploração da patente. Ou seja, se o titular da patente importa, terceiros poderão importar!

Isso porque se o titular da patente importa para evitar a licença compulsória prevista no parágrafo 1º do artigo 68, estará praticando um abuso (falta de exploração da patente no território = abuso, cf. item 2 do Artigo 5 da Convenção de Paris).

Nesse caso, a transformação da exaustão nacional em internacional tem por fim atenuar o abuso de obter uma patente e não explorá-la no território, suprindo a falta de fabricação local pela importação do produto.

Nesse evento, a falta de exploração da patente também se reflete nas marcas, transformando a exaustão nacional em internacional, ex vi do

“Artigo 132. O titular da marca não poderá:

[…]

III – impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento, ressalvado o disposto nos parágrafos 3º e 4º do artigo 68;”

Mas a exaustão internacional das marcas é consagrada no artigo 190:

“Artigo 190. Comete crime contra registro de marca quem importa, exporta, vende, oferece ou expõe à venda, oculta ou tem em estoque:

I – produto assinalado com marca ilicitamente reproduzida ou imitada, de outrem, no todo ou em parte;”

Realmente, resta pouco espaço para a defendida exaustão nacional das marcas!

O fato é que o inciso III do artigo 132 nada proíbe. Autoriza o uso da marca pelo revendedor de produto legítimo.

Ou, como diria Gofredo da Silva Teles, a norma é autorizante.

Retornemos à questão da suposta proibição de importação paralela. Segundo o STJ, estaria no Artigo 129: “[…] assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional…”.

Mas, qual o modus desse direito?

Se retornarmos às patentes, o direito do titular está expresso no artigo 6º: “[…] será assegurado (ao autor) o direito de obter patente que lhe garanta a exclusividade, nas condições estabelecidas nesta Lei.”.

O modus está no artigo 42:

“Artigo. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos:

I – produto objeto de patente;

II – processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.”

E, ainda, com as restrições e exceções colacionadas no artigo 43.

Já o artigo 129 estabelece a propriedade da marca e seu uso exclusivo e ponto!

Onde está o modus, onde estão os verbos que competem ao titular do registro? Não estão ali.

Estão no artigo 190 que declara crime importar produto assinalado com marca ilicitamente reproduzida ou imitada.

Aqui, sim, temos uma proibição. Ao contrário, se o produto está assinado com marca lícita poderá ser importado …

Sobra, então uma área gris.

A marca importada não foi criminosamente reproduzida ou imitada, mas não assinala produto que tenha sido importado pelo titular de patente (artigo 68, parágrafo 4º).

O titular da marca não pratica abuso de patente e, portanto, pode impedir a importação por terceiros do produto patenteado (exaustão nacional de patente).

Nessa área agora o titular da marca está sujeito à exaustão nacional (artigo 132, III). Mas quando estará sujeito à exaustão internacional?

Acredito eu que quando o titular da marca praticar abuso de seu direito, como no caso das patentes.

Em outras palavras, se o titular do registro da marca a utiliza para provocar aumento injustificado de preços, por exemplo, o aplicador da lei poderia considerar a exaustão internacional da marca.

O relator do acórdão sob comento, ministro Sidney Beneti, ressalvou em seu voto:

“Ressalvem-se situações específicas cujo regramento ainda pende de determinar, como o debate a respeito da importação paralela de medicamentos — que, no âmbito da União Europeia, os preços de medicamentos não podem ser determinados livremente pelo fabricante e os governos podem interferir na fixação do preço cobrado — o que, pela especificidade do produto, forçosamente trará conseguências para o conceito da exaustão nacional, regional ou internacional.

Certos casos, como o dos medicamentos, podem, ainda, vir a receber tratamento legal diferenciado, imposto por necessidades de estados determinados, cuja legislação dosa as premências e conveniências nacionais, especialmente a necessidade de fornecimento de determinados produtos à população, de estímulo à concorrência para evitar a formação de monopólios ou cartéis, de atendimento privilegiado de determinadas áreas do consumo — mas de nenhuma dessas hipóteses se cogita no caso presente, em que se está diante de importação de ‘whiskies’, produto desprovido de fornecimento imprescindível e, ademais, com farto fornecimento por diversos produtores e marcas em salutar concorrência no mercado nacional”.

Tão discutível quanto a conclusão do acórdão é o final dessa transcrição que se refere a whisky como produto desprovido de fornecimento imprescindível…

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  • é advogado especialista em Propriedade Intelectual, diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual, mestre em Direito Civil e doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e professor de Direito Comercial na Graduação, e de Propriedade Intelectual na Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP.

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