Legitimidade em risco

Manifestações impõem rediscussão do novo CPC

Autor

  • Daniel Guimarães Zveibil

    é mestre e doutor em Direito Processual pela USP com trabalhos no campo do Direito Processual Constitucional membro do Ceapro e do IBDP professor de pós-graduação e defensor público no estado de São Paulo com atribuições no Tribunal do Júri da capital.

10 de setembro de 2013, 16h00

Em 9 de julho corrente, a Revista Consultor Jurídico publicou manifesto bastante afinado à comemoração da Revolução Constitucionalista de 1932 e cujo cerne critica a pressa na análise do novo Código de Processo Civil, listando uma série de exemplos confirmando a necessidade de continuidade dos debates[1]. A nosso ver, a regulamentação do agravo interno nos parágrafos 2.º a 5º do artigo 1.034 do novo CPC é outro exemplo que confirma o manifesto dos eminentes estudiosos.

Pedindo venia com máxima reverência, o parágrafo 4.º do artigo 1.034 do novo CPC[2] concede ao Judiciário autoridade para punir as partes — mesmo de boa-fé — cujo “pecado” é simplesmente não concordarem com a posição do juiz relator. A primeira hipótese do dispositivo que autoriza a multa recursal ao sucumbente — declaração de manifesta inadmissibilidade do agravo interno — servirá apenas para campear o abuso judicial de poder. Ora, a manifesta inadmissibilidade, por si só, não pode ser considerada má-fé, e as previsões do artigo 80 do novo CPC são suficientes para reprimir a litigância de má-fé, não havendo razão para essa inovação.

A segunda hipótese do parágrafo 4.º do artigo 1.034 que autoriza punição do recorrente que sucumbe — e se baseia na improcedência do recurso por votação unânime — absolutamente nada tem a ver com má-fé processual. Porque o simples e puro fato de um colegiado decidir unanimemente jamais poderia implicar em má-fé do sucumbente. Ora, se o propósito é coibir má-fé, especialmente quanto a recursos meramente protelatórios, novamente o novo CPC já resolve a questão pelo seu artigo 80, que prevê as hipóteses de litigância de má-fé.

Para enriquecermos o presente debate, é interessante trazermos à tona que o Presidente do Tribunal de Segurança Nacional, em pleno Estado Novo, ao verberar pelos jornais que seu Tribunal não se sujeitava ao controle do Supremo Tribunal Federal, ouviu intrépida réplica do grande Sobral Pinto em sentido contrário. Sua manifestação pública nos legou lição indelével quanto à necessidade de tolerarmos diferentes posições, pois “onde está o homem, aí está, também, a divergência, a discussão, e o embate. Desde as investigações meramente especulativas, até às resoluções de cunho nitidamente prático, a atividade humana não pode fugir aos imperativos da contradição. (…) Este desentendimento, quotidiano e ininterrupto, entre os membros da vasta família humana, é um imperativo irremovível da nossa própria natureza, e da maneira pela qual se desenvolve a nossa vida de criatura racional.”[3]

E é curioso notarmos que há poucos dias, em meio à querela entre ministros do STF, Celso de Mello, seu eminente Decano, acentuou que as divergências em julgamentos colegiados representam, em não raras vezes, “a semente das grandes transformações.”[4]

Ora, diante de tais considerações é justo indagarmos: faz algum sentido o novo CPC autorizar a punição do jurisdicionado pelo simples fato de sua divergência colidir com decisão unânime de juízes? Não pode o jurisdicionado, enquanto recorrente, enquanto parte, assim como o voto divergente de um juiz num julgamento colegiado, também representar “a semente das grandes transformações”? Uma semente transformadora que precede — e estimula — a divergência no seio do julgamento colegiado?

Por isso, em matéria recursal o novo CPC reflui em nossa história político-constitucional para aquilo que tivemos de pior, e o qual foi combatido abertamente por heróis como Sobral Pinto — o qual enxergava na divergência uma condição imanente ao ser humano. E o ponto que discutimos do novo CPC é decisivo para que o jurisdicionado tenha direito ou a um sistema recursal democrático, ou autoritário: e a redação atual, a nosso ver, impõe um sistema autoritário. Se tal fato é danoso na esfera cível, o que dirá em matéria penal — a qual certamente sofrerá influxos da nova legislação processual civil.

Por outro lado, os parágrafos 2.º e 3.º neste artigo 1.034 do novo CPC também não atendem às exigências do Estado democrático de direito.

Devemos ter em mente que nossa Constituição prescreve no artigo 5.º, LIV, a obrigação do Estado brasileiro garantir o devido processo legal, e de cujo seio deriva, dentre outros deveres, o dever de implementar um Poder Judiciário que possua condições de atuar perseguindo o ideal de imparcialidade — ainda que na vida, devido à natureza humana, seja impossível uma imparcialidade real.

Neste passo, pedindo-se novamente venia com a máxima reverência, não faz sentido que o projeto reforce a inaceitável prática do relator da decisão monocrática impugnada participar da revisão de sua própria decisão, quando superada a possibilidade de retratação. Tal prática torna inviável a perseguição do ideal de imparcialidade da autoridade judiciária na fase recursal, além de tornar certa a destruição do julgamento colegiado no presente contexto; isto, se levarmos em conta o agravante de que o novo CPC concede poderes à turma julgadora do agravo interno para condenar o agravante a pagar multa — aquele que ousou questionar a decisão do relator, dando mais trabalho à unânime turma julgadora.

Na Antiguidade, por sinal, já se advertia que quase sempre se é mau juiz em causa própria[5].

A franca exacerbação do princípio da duração razoável do processo em detrimento do devido processo legal, supervalorizando as decisões monocráticas, poderá trazer julgamentos velocíssimos: é verdade. Todavia, o jurisdicionado ficará privado de um sistema recursal verdadeiramente democrático, no qual o recorrente de boa-fé não tema o Judiciário por simplesmente discordar de um relator ao interpor seu recurso. Sai derrotado o império da lei, elemento vital num Estado democrático de direito.

A nosso ver, portanto, um novo CPC realmente democrático merece a poda dos parágrafos 4.º e 5.º do artigo 1.034, além de alteração nos parágrafos 2.º e 3.º de modo a tornar incompetente para o agravo interno o juiz prolator da decisão impugnada.

Não negamos que o novo CPC traz, em razão da cultura jurídica e talento criativo dos artífices desta nova codificação, grandes e promissoras novidades. O referido manifesto de 9 de julho, ao qual aderimos, com justiça assinala este ponto. Porém, um Código que num simples detalhe é capaz de inspirar medo, fobia, ou pavor no jurisdicionado de boa-fé em relação à autoridade judicial, com toda a certeza não se atenta às manifestações de junho de 2013. Nada mais justo, portanto, que deixemos a pressa de lado e rediscutamos minuciosamente o novo CPC: é o modo mais correto de afiançarmos a legitimidade da nova codificação, rendendo especial preito aos movimentos populares que anseiam pela abertura de instituições políticas e jurídicas em nosso país.

[1] GAJARDONI, Fernando da Fonseca, et al., Estudiosos criticam pressa na análise do novo CPC, Consultor Jurídico, 09de julho de 2013, em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-09/estudiosos-criticam-pressa-analise-codigo-processo-civil>, último acesso em 20 de agosto de 2013.

 

[2] § 4º Quando o agravo interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor da causa atualizado.

[3] SOBRAL PINTO, Heráclito Fontoura. Pelos domínios do direito, Archivo Judiciario, publicação quinzenal do Jornal do Commercio, vol. LX (outubro, novembro e dezembro), 1941, 57.

[4] Confira na matéria “Ministros defendem Lewandowski no plenário do STF”, publica na Revista Consultor Jurídico (Conjur), em: <http://www.conjur.com.br/2013-ago-21/ministros-saem-defesa-lewandowski-retomada-julgamento>, consultado em 22/ago/2013.

 

[5] Aristóteles. A Política, Livro III, Cap. V, § 8.

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