Segunda Leitura

Promotor lidava com fatos mais pitorescos nos anos 70

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

8 de setembro de 2013, 8h01

Spacca
Nos anos 1970, o Promotor de Justiça atendia a população carente de cidades do interior. Filas se formavam no Fórum para levar ao representante do MP variadas consultas e pedidos. Alimentos, direitos trabalhistas, retificação de nomes, adoções, tutelas, levantamento do FGTS e conflitos de vizinhos eram rotina.

O atendimento ao povo, que também era chamado de “muro dos lamentações”, em comparação aos pedidos que se fazem em Jerusalém, era uma rica oportunidade de conhecimento da alma humana, seus anseios, angústias,  gestos elevados ou indignos. Cansava um pouco, mas valia a pena.

Tomei, pela primeira vez, contato com esta realidade em Umuarama (PR), julho de 1970. Cheguei às 13h com o juiz ao Fórum e, de longe, vi dezenas de homens de cócoras. Perguntei: “o que eles fazem ali?” Respondeu-me o juiz, “estão à sua espera”.

Ainda que nem todas as reclamações pudessem ser atendidas, a maioria se resolvia em acordo. Datilografava-se um recibo ou, nas brigas de vizinhos, um “termo de bem viver”. O promotor fazia tudo sozinho, porque do Estado só recebia os vencimentos. Nada de funcionários, estagiários, telefone ou selos para o correio.

Em meio àquelas pessoas simples, desenrolavam-se todos os dramas universais da humanidade. E, junto com situações tristes, havia também as pitorescas. É delas que vou falar.

Mas o leitor precisa ter em mente que o Brasil, a sociedade, eram muito diferentes. A população era mais inculta, havia muitos analfabetos e a moral mais rígida. A violência menor, não havia roubos (assaltos) no interior, só furtos. Vejamos alguns casos, a fim de que os mais jovens tenham ideia de como se solucionavam pequenos problemas.

Era maio de 1971, chego à comarca de Apiaí, cidade de clima frio no Alto Ribeira, em São Paulo. Em uma tarde cinzenta, estava eu a atender o povo. Chega uma mulher baixinha, cerca de 45 anos, e sem me olhar conta que estava muito nervosa. O motivo era que seu marido “naquela hora, jogava a semente fora e dormia”. Compreendi que se tratava de ejaculação interrompida, que a impedia de chegar ao orgasmo. Chamei o homem. Ele se justificou: “não quero mais ter filhos”. Era motivo razoável. Pensei muito, certo de que não encontraria solução nos tratados de Direito Civil. Aconselhei-o, então, a comprar “camisinhas”, nome que se dava aos preservativos. Ele me disse que naquele mês o orçamento não permitia. Combinamos que eu lhe daria o primeiro pacote de presente. E assim fiz. Ele me esperou e, no fim da tarde, fui à farmácia e fiz o clássico sinal com o polegar direito, código de quem desejava preservativos. O vendedor, discretamente, deu-me a caixinha, paguei e dei-a de presente ao homem. Suponho que tenham tido noites mais agradáveis.

Ano de 1971, trabalhava em Miracatu. Recebi um inquérito dos mais vulgares: lesões corporais leves, artigo 129 do Código Penal. Mas o motivo era inusitado. O indiciado procurou a vítima na escola noturna e de surpresa (ou de inopino, como se usava) desferiu-lhe um soco na cara, causando-lhe ferimentos. Tudo por ciúmes. Motivo: a vítima tivera relações com a égua do indiciado e ele não suportou ver-se traído…

Ainda Miracatu, 1972. Cheguei pela manhã  ao Fórum. Embaixo, cartórios; em cima, sala de audiências, gabinetes do juiz e de promotor. Escutei tocar a campainha que o juiz usava para chamar os funcionários do Cartório. Surpreso, porque sabia que o magistrado lá não estava, subi a escada. Vi, então, um funcionário sentado na cadeira do juiz, pés na mesa e que me disse, supondo que era um seu colega de cartório: “traga-me um copo d’água gelada e um café”. Ao reconhecer-me ficou pálido e saiu às pressas. À tarde entrou na minha sala e começou a justificar-se, nervoso. Olho para ele e digo: “não sei do que você está falando”. Ele entendeu, agradeceu e nunca mais tocou no assunto. E eu, claro, nada falei ao juiz.

Avança o tempo, 1973. Estou em Caraguatatuba, litoral paulista, filas de pessoas no corredor, algumas acompanhadas de seus cachorros. Entra um homem baixinho, seus 50 anos de idade, que ganhava a vida vendendo quindim. Olha-me e diz com cara triste: “Promotor, o senhor tem que dar um jeito na molecada, eles me chamam de Rim-tim-tim e eu fico louco, corro atrás deles, um dia bato num e vou preso”. Rim-tim-tim era o nome de um cachorro de um seriado da TV. Acalmei-o e mandei as intimações para os “acusados”. Eles vieram com suas mães, tinham de 10 a 12 anos. Passei-lhes uma carraspana, invocando o respeito que deveriam ter com aquele homem. Juraram não fazer mais, as mães assinaram um “termo de compromisso”, cujo valor jurídico era discutível, mas que tinha a força de uma escritura pública. E a partir daí o homem pode prosseguir na calma rotina de sua vida. Quando me via, cumprimentava-me faceiro, tirando o chapéu em sinal de respeito.

Um dia apresenta-se um senhor de nível social mais elevado, dono de um hotel. Queixa-se da mulher e pede-me, quase chorando, que fosse à sua casa aconselhar o casal. Marco dia e hora e lá me apresento. Residência grande, bem localizada. E começam as acusações recíprocas. Ele isto, ela aquilo. Ouvi atentamente. Que dizer? Eu tinha 27 anos e era solteiro. Eles, só de casados, tinham mais do que isto. Respirei fundo e comecei a falar, com ar professoral, que fossem mais tolerantes, pensassem nos filhos, que era preciso ser compreensivo, coisas assim. Eles ouviram com atenção. Despedi-me e saí pensando que nunca havia falado tanto sobre algo que não sabia nada. Fui direto a um bom banho de mar para pôr as ideias em ordem.

O réu respondia seu terceiro processo por furto de botijões de gás que eram deixados ao  lado das casas de veraneio. Ao pedir a condenação, requeri ao juiz que, no regime aberto, fosse determinado que o trabalho que faria durante o dia fosse prestado na loja “Lar Caiçara”, que vendia botijões de gás, pois ele estaria no local em que se sentia feliz. Durante os dois anos da condenação eu passava pela casa comercial e o via trabalhando junto aos botijões. Não sei se era impressão minha, mas seu rosto era de felicidade.

A cidade recebia um fluxo migratório do norte de Minas Gerais. Pessoas simples, fortes, era comum não serem registrados. E sem a certidão de nascimento não podiam tirar carteira do trabalho. Recebo um homem que me diz: “Doutor, chamam-me de Antônio mas eu não tenho certidão de nascimento, preciso ser registrado na firma e não consigo. Só sei que nasci no fim da guerra”. Respondi que faríamos o registro fora do prazo e ele respondeu: “que bom, mas não sei em que dia e ano nasci”. Mandei voltar em uma semana. Tive boas informações sobre ele. Quando ele voltou, respondi: “Seu nome é Antônio, vamos registrá-lo no dia do santo, 13 de junho. E o ano só pode ser 1918, quando terminou a Primeira Guerra Mundial”. E assim se fez.

Ele era um delegado de Polícia honesto e trabalhador, todavia meio excêntrico. Tinha um fusca no qual seu cachorro ia no banco da frente e a mulher atrás. De repente passou a exigir alvará policial para qualquer reunião, festa de aniversário de crianças, coisas assim. Fui procurado. Que fazer para cessar aquela prática, sem desestimulá-lo? Resolvi mandar-lhe um ofício bem pomposo e, ao final, pedir para que suspendesse aquela conduta, porque a exigência feria o princípio constitucional da legalidade.  Passados uns dias ele veio ao Fórum  e disse ter suspendido os pedidos de alvará. Agradeceu-me com os olhos marejados e disse: “Doutor, aquele oficio do senhor me emocionou, principalmente o início, muito obrigado!”  Ele saiu e eu fui olhar a cópia, tirada com papel carbono. Lá estava:  “Tenho a grata satisfação de passar às honradas mãos de V. Sa. o requerimento que …”.

Assim eram aqueles tempos. Trabalhava-se menos. Ria-se mais. Em algumas coisas, melhores. Em outras, piores. No passado, no presente e no futuro,  o importante é saber extrair o melhor das situações que a vida oferece.  

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