nova finalidade

Medicamento conhecido não pode ser repatenteado

Autor

  • Newton Silveira

    é advogado especialista em Propriedade Intelectual diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual mestre em Direito Civil e doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor de Direito Comercial na Graduação e de Propriedade Intelectual na Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP.

8 de setembro de 2013, 8h30

Muito se tem discutido a matéria de patentes de 2º uso na área farmacêutica.

Alegam os requerentes desse tipo de patente que o 2º uso se refere ao mesmo medicamento (a mesma formulação) usado para o tratamento de outra enfermidade.

Onde estaria a diferença? 

Na indicação terapêutica, ou seja na bula. Sem bula, o medicamento é o mesmo.

Daí a discussão surgir na área farmacêutica, já que o medicamento não pode ser vendido sem bula.

Seria o caso de direito autoral sobre a bula?

Evidentemente, quem compra um martelo pode usá-lo para bater bife, em lugar de usá-lo para bater pregos. Isso é possível porque o 2º uso não está escrito na bula do martelo. Esse utensílio não tem indicação terapêutica.

Exemplo recente e menos fantasioso pode ser retirado da AC 9070658-28.2002.8.26.0000 — TJ-SP, em acórdão da lavra do eminente Desembargador Ênio Zuliani (relator) proferido em apelação de Júlio Diniz Fraguete Xavier e Vitor Hugo Xavier (apelantes) em face de Federação Paulista de Futebol (apelada).

A ementa do acórdão proferido aos 22 de setembro de 2011 pela 4ª. Câmara de Direito Privado do TJ-SP tem o seguinte teor:

“Autores que pretendem proteção de exclusividade de invento (spray de tinta que árbitros de futebol utilizam para sinalizar, na grama, as penalidades de jogo) — INPI que negou a patente requerida por falta do requisito criatividade ou novidade (artigo 13, da Lei 9.279/96) — Apetrecho que não constitui invento, mas, sim, ideia de utilização prática de dispositivo comum — Improcedência mantida. Não provimento.”

Importante assinalar o seguinte trecho do voto do Desembargador Zuliani:

“O spray é ferramenta comum para o serviço de pintura e desenho e não há qualquer invento em aproveitar a sua função para demarcar território das arenas futebolísticas com o propósito de fixar o local exato para colocar a bola a ser chutada ou para estabelecer a linha de barreira dos jogadores que protegem o gol. A ideia de utilizar isso no campo de grama foi brilhante e serviu para corrigir um problema crônico da arbitragem, o que não significa invento digno de patente ou de privilégio, como pretenderam os autores”.

Diferente seria se uma indústria de spray o colocasse no mercado com bula, expressamente indicando o novo uso do spray. Caso contrário, os titulares dessa esdrúxula patente deveriam estar presentes em todos os jogos de futebol, munidos de competente mandado judicial para apreender o spray tão logo o árbitro o utilizasse para o novo uso.

Patente de Uso
O artigo 42 da Lei de Propriedade Industrial dispõe:

“Artigo 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos:

I – produto objeto de patente;

II – processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.”

Assim, o titular de uma patente de 2º uso não pode impedir terceiros de produzir o medicamento, pois ele é idêntico ao de 1º uso (que se acha em domínio público). Também não pode impedir terceiro de colocar à venda, vender ou importar o medicamento, pela mesma razão: a formulação se acha em domínio público.

Resta do caput do artigo 42 o verbo usar. Mas, quem usa o produto não é quem fabrica ou comercializa. Quem usa o produto em 2º uso é o consumidor. Este, se acha coberto pela exceção do inciso I do artigo 43, que isenta os atos praticados por terceiros não autorizados em caráter privado e sem finalidade comercial.

O que resta então?

Anunciar, na embalagem ou na bula, a nova destinação do medicamento. Anunciar, então, seria o verbo que se aplicaria. No entanto esse verbo não se acha nas previsões do caput do artigo 42, redigido em obediência ao Acordo TRIPs.

Além do mais, tal proibição significaria violação ao direito constitucional de livre expressão.

Não se vislumbra, assim, qualquer enquadramento nos verbos previstos no artigo 42: produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar.

Vejam-se os dois incisos do artigo 42: produto objeto de patente — não é o caso, como exposto; processo patenteado — também não é o caso, pois não se trata de processo; portanto, também não se trata de produto obtido por processo patenteado.

Qual poderia ser o teor de uma sentença proferida num processo de contrafação de patente de 2º uso? Proibir o réu de praticar 2º uso, ou sugerir ao consumidor tal 2º uso?

Como se vê, não se trata de falta de atividade inventiva, mas de falta de previsão legal. Ou, falta de lógica.

Imaginemos um caso real de 2º uso.

Os nazistas inventaram tomar champagne num sapato feminino. O champagne continua sendo fabricado e vendido pelas fábricas de bebidas; os calçados pelas fábricas de sapatos.

Mas a venda de uma garrafa de champagne ao lado de um sapato feminino em embalagem transparente seria um 2º uso de exclusividade do III Reich. Uma espécie de patente de comercialização.

Ainda um aperfeiçoamento poderia ser acrescentado: um sapato impermeável para não vazar o champagne. Esse sapato também serviria para ser usado em dias de chuva. Terceiro uso.

Ananda Chakrabarty, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT) inventou uma bactéria engenheirada que digeria petróleo, colaborando com a limpeza ambiental.

O United States Patent and Trademark Office (USPTO) denegou a patente por considerar não patenteável matéria viva.

Chakrabarty foi à Suprema Corte que determinou que o USPTO concedesse a patente porque tudo de novo sob o sol criado pelo homem deveria receber uma patente.

Posteriormente, tentou-se nos Estados Unidos patentear genes modificados. A matéria foi considerada não patenteável porque não basta haver novidade, há que ter também uma nova utilidade.

O acordo TRIPS de 1994 veio a estabelecer as regras de patenteabilidade, exceto microrganismos e processos essencialmente biológicos.

Em consonância, a Lei de Propriedade Industrial brasileira veio a considerar não invenções o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, exceto os microrganismos transgênicos que não sejam mera descoberta.

Tudo isso significa que aquilo que existe na natureza não pode ser patenteado, mesmo que tenha uma nova utilidade, até então desconhecida.

Ou seja, tudo que se acha sob o sol não é novo e não pode ser patenteado.

Uma raiz amazônica que cura hemorróidas não pode ser patenteada em seu estado natural, e nem mesmo em forma injetável.

Ora, medicamentos que já caíram em domínio público equivalem às coisas naturais, todos já sob o sol. Da mesma forma que um microrganismo tal como encontrável na natureza não é patenteável, mesmo que se descubra para ele uma nova utilidade, medicamentos já conhecidos não poderão ser repatenteados para uma nova finalidade.

Se se descobrir que um medicamento utilizado para disfunção erétil também serve para curar enxaqueca, teríamos duas embalagens diferentes, uma para uso masculino, outra para uso feminino? Ou poderíamos ter uma embalagem unissex com duas bulas, uma azul e outra cor-de-rosa?

Conta-se que a Salvador Dali foi encomendada a elaboração do design de um frasco para um novo perfume.

No dia do lançamento do perfume, o artista se esquecera da encomenda. Levado ao palco sob o espocar dos flashes perguntou-se: Mestre, e o projeto? Catando do chão uma lâmpada de flash e batendo-a na mesa para ficar de pé, Dali a apresentou como o novo modelo. Perguntado sobre a marca, respondeu: a marca é flash.

Mais um caso de 2º uso.

Meio Industrial
Gama Cerqueira, no volume I de seu Tratado (número 68), afirmou:

“A invenção, de modo geral, consiste na criação de uma coisa inexistente na natureza”.

Ou, mais adiante:

“A coisa inventada deve ser diferente do que já é conhecido” (número 71).

E ainda mais:

“Reconhecer que um produto natural ou fabricado possui certas propriedades e indicar o proveito que delas se pode tirar não é inventar” (número 74).

No entanto se afirma que Gama Cerqueira admitia a concessão de patentes de 2º uso. Antes de mais nada, certamente não se tratava de 2º uso farmacêutico, já que é notório que o autor considerava razoável não se conceder patentes para medicamentos.

No volume II prosseguia Gama Cerqueira: “Somente os produtos fabricados ou elaborados pelo homem podem ser objeto de patente. Mas os processos e métodos destinados à produção, tratamento e exploração industrial dos produtos naturais podem ser privilegiados, assim como a aplicação nova desses produtos para obter um outro produto ou um resultado industrial” (número 26).

Ou seja, a ideia de nova aplicação não pode se referir a produto, como exposto. Pode, no entender de Gama Cerqueira, achar-se entre os processos e métodos para produzir um resultado industrial. Será então, um meio industrial para se obter um produto ou outro resultado.

É muito possível e provável que, passados quase setenta anos dos estudos de Gama Cerqueira, a doutrina deva se adaptar aos novos tempos, principalmente na época da biotecnologia, dos genes e da nanotecnologia. Mas sem perder a noção dos princípios que regem a criação intelectual e sua apropriação.

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    é advogado especialista em Propriedade Intelectual, diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual, mestre em Direito Civil e doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e professor de Direito Comercial na Graduação, e de Propriedade Intelectual na Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP.

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