Quid pro quo

EUA negociam fim de ações que atrapalham Obama

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8 de setembro de 2013, 8h18

"A" tem uma demanda contra "B" na Suprema Corte dos EUA. Porém "B" também tem uma ação na Suprema Corte que pode prejudicar "A". Ambas são praticamente indefensáveis. Mas são "negociáveis". "A" tem encontros secretos com "B", as partes fazem um acordo "por baixo dos panos" e os dois processos morrem por inanição. Tudo deveria terminar em pizza.

Esse é um roteiro de um caso que passou recentemente por uma espécie de CPI no Congresso americano que, por parecer corriqueiro, não teria criado muito constrangimento, não fosse pelo porte dos atores principais: "A" é o governo dos Estados Unidos. "B" é a Prefeitura de St. Paul, no estado de Minnesota.

De acordo com um relatório conjunto de três comitês da Câmara dos Deputados e do Senado dos EUA, o Departamento da Justiça dos EUA (DOJ), em nome do governo federal, e a Prefeitura de St. Paul, fizeram um quid pro quo para provocar o encerramento dos processos — a expressão quid pro quo, para os americanos, é atribuída a negociatas.

Entre outras coisas, o quid pro quo resultou em uma perda de cerca de US$ 200 milhões para os contribuintes, valor que o governo deixa de coletar da Prefeitura, de acordo com o relatório publicado na internet e repercutido por parte da imprensa. Isso em um dos processos movido contra a Prefeitura, em que o fato gerador é um caso de fraude contra o erário público.

No outro processo, o governo federal poderia perder uma fonte de renda considerável e, sobretudo, sofrer uma perda política significativa: o esvaziamento de uma das bandeiras mais preciosas do governo Obama, a dos direitos humanos. Mas o governo federal e a Prefeitura desistiram das demandas e tudo se encaminhava para terminar em pizza, não fosse pelo inquérito parlamentar.

Quem investigou o caso e produziu o relatório foram o Comitê da Câmara dos Deputados para Supervisão e Reforma Governamental, o Comitê Judiciário do Senado e o Comitê Judiciário da Câmara do Congresso dos EUA.

O relatório acusa o então procurador-geral adjunto, Thomas Perez, de "manipular a Justiça e ignorar as normas jurídicas", ao entrar em "negociações secretas" com a Prefeitura, em fevereiro de 2012. Perez, que depois do episódio foi promovido a secretário do Trabalho do governo Obama, foi o agente do governo que se entendeu "a portas fechadas" com o prefeito da cidade Christopher Coleman, e com o advogado da cidade David Lillehaug, para encerrar os processos.

Programa social
A história é intrincada, a começar pelo fato de que a Prefeitura de St. Paul é a parte demandada nas duas ações que correram pelos tribunais. E o governo federal não era demandante ou demandado em nenhuma delas. Foi envolvido no caminho, por acidentes no percurso das ações.

No caso mais simples, a Prefeitura de St. Paul foi processada por um cidadão, por apropriação indébita de recursos públicos. Em 2009, o reverendo e empresário Frederick Newell entrou na Justiça, individualmente, contra a Prefeitura, seguindo as regras da delação premiada: provada a fraude, ele receberia de 15% a 25% do valor arrecadado.

Newell demonstrou que as autoridades locais produziram relatórios, por alguns anos, que davam conta do cumprimento de algumas obrigações previstas em um programa social do governo. E, graças aos relatórios, receberam seguidamente verbas do governo, no valor total de aproximadamente US$ 200 milhões.

Mas o relatório era falso. A Prefeitura nunca cumpriu as exigências do programa, que eram de fornecer cursos de treinamento profissional, preparação para empregos e realização de contratos com residentes de renda baixa ou muito baixa.

No entanto, há uma condição essencial para um processo de delação premiada, como esse de espólio dos cofres públicos, fazer sucesso: o governo e órgãos do governo, interessados em combater a fraude, têm de apoiar a denúncia. Isto é, precisam se tornar parte do processo como demandantes.

O inquérito parlamentar revelou que Newell passou dois anos demonstrando a procuradores do Departamento de Justiça e a advogados dos órgãos habitacionais e de financiamentos habitacionais que as autoridades municipais nunca fizeram nada do que descreveram em seu relatório. E sabiam que estavam "sangrando" os cofres públicos. Um caso descarado de fraude, pura e simplesmente.

Os advogados dos três órgãos acreditaram na força do caso, e produziram relatórios entusiasmados sobre os fatos e sobre as medidas jurídicas que deveriam ser tomadas. Entraram em ação. Juntaram-se ao delator como partes demandantes. Foi nesse ponto que o governo federal entrou na história do processo.

A primeira audiência na Suprema Corte estava marcada. Mas, duas semanas antes da data, se consumou o quid pro quo. Em uma decisão imposta "de cima", os três órgãos desistiram do processo, de forma simultânea e repentina, diz o inquérito parlamentar. Alegaram que o caso era fraco, indefensável. Em seguida, o caso foi extinto — uma situação muito rara na Suprema Corte.

Os procuradores e advogados envolvidos no processo ficaram revoltados e não relutaram em depor na "CPI" americana. A intervenção do então procurador-geral adjunto Thomas Perez no caso foi facilmente detectada pelos parlamentares, que dispunham até de conversações telefônicas para se colocarem a par da negociata.

Repercussão negativa
O outro processo é um caso mais complexo. Envolve a controvertida teoria do "impacto desigual" (disparate impact). O "impacto desigual" é diferente do "tratamento desigual", aquele que é dado a alguém que pertence a uma minoria — uma discriminação direta, baseada em raça, cor, sexo, religião ou nacionalidade. O "impacto desigual" é decorrente de uma discriminação involuntária — ou, mesmo que voluntária, sutil.

Por exemplo, uma companhia de energia foi processada pelo DOJ porque exigiu dos candidatos a emprego diploma do colegial. Era uma "política da empresa". O governo considerou que a tal "política da empresa" discriminava, mesmo que involuntariamente, os afro-americanos, em comparação com os candidatos brancos. Isso porque as pesquisas revelam que o número de pessoas de cor com diploma colegial é significativamente menor do que o de pessoas brancas.

Quaisquer "políticas de empresa", regras ou condições podem resultar em um impacto negativo muito maior sobre uma minoria, quando há comparação com o que acontece com a maioria. Os números politicamente incorretos são facilmente detectados em estatísticas. Por isso, o impacto é desigual.

Condições estabelecidas para financiamentos bancários podem negar, indiretamente, o acesso a crédito à população negra ou de origem hispânica. E favorecer a população branca. Muitos bancos foram processados pelo DOJ. E isso promove a bandeira de defesa dos direitos humanos do governo — além de proporcionar uma receita extra, oriunda de indenizações.

Na área da habitação, é comum se observar discriminações sutis em negócios que exploram o aluguel. Em Miami, por exemplo, a maioria dos condomínios de apartamentos não constroem quadras de basquete. Elas atraem pessoas negras, que adoram esse esporte. Nem quadras ou campos de futebol, que atraem latinos. Elas constroem quadras de tênis ou salas de raquetebol (ou de "squash"), esportes que atraem a população visada pelo condomínio. Não há notícias de processos contra esses condomínios, no entanto.

Mas foi nessa área que a cidade de St. Paul foi processada mais uma vez. Em 2002, a Prefeitura local aprovou um código habitacional muito rígido, especificamente para residências de aluguel. E colocou fiscais nas ruas para executá-lo. Os fiscais passaram a fazer "batidas" em residências pobres, especialmente em áreas habitadas por afro-americanos. Não tiveram dificuldades em encontrar todos os tipos de problemas. Foram fechando uma residência após a outra.

Em 2004 e 2005, diversos proprietários de residências para alugar, a maioria pequenas empresas, entraram com ações contra a Prefeitura de St. Paul em um tribunal federal. Alegaram que a fiscalização da Prefeitura estava deixando a cidade sem residências para alugar aos pobres. Isso seria uma violação à Lei da Justiça na Habitação (FHA – Fair House Act). Embora o código valesse para todos, estava afetando desproporcionalmente a população negra, que compõe de 60% a 70% da população pobre da cidade. Um caso de "impacto desigual".

O tribunal federal rejeitou o caso. Argumentou que o caso apresentado pelos demandantes não era forte o suficiente para seguir em frente. Mas um tribunal de recursos discordou. Decidiu que o caso era bom e reinstalou a demanda baseada em "impacto desigual". A Prefeitura levou o caso "Magner vs. Gallagher", como é chamado, à Suprema Corte dos EUA. Nesse ponto, o governo federal entrou na história desse segundo processo.

Os procuradores-gerais do DOJ, então liderados por Thomas Perez, concluíram que a Prefeitura de St. Paul iria ganhar a causa na Suprema Corte, por 5 a 4, no mínimo. Isso seria terrível para a popularidade do governo Obama, decorrente de seu programa de defesa dos direitos humanos e de proteção às camadas mais pobres da população.

O DOJ move centenas de ações judiciais em todo o país, com base na teoria do "impacto desigual". Essa área de atuação é tão importante para o DOJ, que o órgão criou um departamento jurídico apenas para cuidar desses casos. Toda a estrutura e todos as ações estavam ameaçadas, assim como essa bandeira considerável do governo Obama.

Em novembro de 2011, a Suprema Corte decidiu ouvir o caso e marcou a primeira audiência para 29 de fevereiro de 2012, quando as partes deveriam apresentar seus argumentos oralmente. Ao marcar a data, a corte pediu às partes que respondessem à pergunta: Por que um tribunal deve dar conhecimento a essa causa, com base na "Fair Housing Act"? — isto é, por que o tribunal deve aceitar que a ação prossiga?

Além de conhecer a posição de alguns ministros — e dos ministros que normalmente votam com eles —, o DOJ sabia que o tribunal federal que rejeitou a causa em primeira instância tinha razão. A "Fair Housing Act" não tem nada a ver com a teoria do "impacto desigual". Ela dispõe sobre "tratamento desigual", proibindo discriminação (direta) contra minorias, em questões habitacionais.

A teoria do "impacto desigual", por sua vez, foi inventada para regulamentar o mercado de trabalho, com o intuito de coibir o estabelecimento de políticas empresariais que tenham um "impacto adverso" desproporcional sobre grupos minoritários, embora de forma involuntária. Não tem a ver com questões habitacionais.

Mas, em 10 de fevereiro de 2012 — 19 dias, portanto, antes da primeira audiência —, o caso foi encerrado, graças ao bem-sucedido quid pro quo do governo federal com o governo municipal de uma das grandes cidades americanas. Até agora, não há notícias de qualquer ação concreta do Congresso dos EUA para dar sequência à produção do relatório. E, nesse caso, a pizza estará servida.

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