Observatório Constitucional

Há padrão geral de conduta para Cortes Constitucionais?

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7 de setembro de 2013, 8h01

No exercício do judicial review, a teoria comumente atribui as seguintes funções principais às Cortes Constitucionais: proteção dos direitos fundamentais, realização de accountability horizontal dos demais poderes e garantia de pactos federativos. A respeito desses três papéis, é rotineiro encontrar na doutrina propostas de regras teóricas gerais, tais como:

(a) “Os tribunais constitucionais preenchem normalmente várias funções ao mesmo tempo. (…) A concorrência do tribunal constitucional com o legislador legitimado democraticamente pode agravar-se no âmbito do controle abstrato de normas. (…) o controle abstrato de normas é função indiscutível do legislador.”[1]

(b) “Uma Corte minimalista decide o caso que foi posto perante ela, mas deixa muitas coisas não decididas. A Corte não ignora a existência de razoável dissenso em uma sociedade heterogênea. A Corte sabe que há muito conhecimento que ela não possui e a Corte é extremamente ciente das suas próprias limitações. Ela procura decidir casos de maneira mais estreita e evita definir regras claras e soluções definitivas.”[2]

(c) “Se as Cortes Constitucionais de democracias em evolução começarem as suas atividades dando mais ênfase a uma jurisprudência tímida – uma jurisprudência que as coloque a serviço do governo –, elas então poderão esperar por taxas maiores de sucesso na criação de accountability horizontal e na proteção dos direitos fundamentais, enquanto estabelece sólidas fundações para construir uma jurisprudência de confronto mais tarde.”[3]

(d) “Numa democracia representativa, as determinações de valor devem ser feitas pelos representantes eleitos; e, se a maioria realmente desaprová-los, poderá destituí-los através do voto. (…) a [minha] teoria geral restringe o controle de constitucionalidade (sob os dispositivos de interpretação aberta da Constituição) na medida em que insiste que esse controle só pode tratar de questões de participação, e não do mérito substantivo das decisões políticas impugnadas.”[4]

Especificamente em relação a cada uma das propostas exemplificativas acima apresentadas, não é necessário o exame mais acurado da realidade fática de qualquer Corte Constitucional para se perceber que:

(a) A ideia habermasiana de que a fundamentação complexa está presente com maior intensidade apenas no controle abstrato de constitucionalidade de normas não é factível. Os riscos de afronta à separação de poderes ou de enfraquecimento de garantias individuais são inerentes a todas as demais funções exercidas pelas Cortes Constitucionais, as quais também demandam complexas fundamentações. A virada federalista conduzida com maestria pela Corte Rehnquist nos Estados Unidos representa exemplo claro disso.

(b) Conquanto seja bastante interessante, a proposta de minimalismo racional por parte das Cortes Constitucionais em questões ética ou tecnicamente complexas também não resiste a generalizações. Aliás, ainda no primeiro momento em que desenvolveu o seu pensamento sobre o assunto, o próprio Sunstein já havia reconhecido isso[5]. Ademais, a negativa experiência decorrente da tímida postura adotada pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Hamdi v. Rumsfeld é mais do que suficiente para evidenciar que posturas minimalistas podem não ser as mais adequadas em todas as situações eticamente complexas.

(c) A proposta de Shapiro de que Cortes Constitucionais atuem de maneira inicialmente tímida em democracias recentes aparenta ter sido seguida de maneira estrita no Chile. Contudo, há relevantes experiências diametralmente opostas em outras democracias jovens que são talvez até mais exitosas do que a chilena. São os casos da Colômbia, com a revisão jurisdicional dos fatos que davam origem aos constantes decretos presidenciais de estado de sítio, e da África do Sul, na garantia de melhores políticas públicas relacionadas a direitos fundamentais que demandam prestações estatais positivas.

(d) A teoria procedimental mista de Ely também é claramente insuficiente. Habermas aponta com precisão que os próprios princípios procedimentais escolhidos por Ely possuem caráter normativo e precisam ser “completados a partir de uma teoria substancial de direitos”[6].

Com essas observações, não se pretende advogar em favor da tese de que teorias constitucionais, especialmente aquelas direcionadas ao controle de constitucionalidade, são indesejáveis. O propósito é apenas questionar generalizações teóricas voltadas a fazer com que o arranjo contingente da jurisdição constitucional soe natural. Isso porque, assim como não é a teoria pela teoria que define se é adequada ou não a prática da jurisdição constitucional em determinada sociedade, não é a sofisticação abstrata de critérios e métodos de conduta que pode solucionar de maneira definitiva o confronto naturalmente inerente à coexistência do constitucionalismo com a democracia. Não é possível, consequentemente, realizar recomendação genérica de boa conduta aplicável a toda e qualquer sociedade que adote o instituto do judicial review. São incompletas, justamente por pretenderem resolver o problema de maneira racional e universal, as sugestões no sentido de que as Cortes Constitucionais devem sempre agir de maneira minimalista em casos ética ou tecnicamente complexos ou, então, de que em democracias recentes não há espaço para o exercício rotineiro de funções contramajoritárias no âmbito da jurisdição constitucional. Não é possível diagnosticar em abstrato as origens de eventual ilegitimidade de determinado modelo de exercício de jurisdição constitucional e prognosticar soluções sem examinar detidamente os contextos histórico, social e político que o permeiam.

Nesse sentido, com relação à postura política que deve ser adotada pelas Cortes Constitucionais, é ingênuo propor, como fez Shapiro, que o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos permitiria a extração da conclusão transcendental de que, em democracias recentes, a única conduta racional adequada a ser inicialmente tomada no exercício da jurisdição constitucional seria a autocontenção. É até razoável o argumento apresentado pelo autor para fundamentar sua proposta, no sentido de que o exame da história norte-americana revela que “a Suprema Corte se tornou ativista na defesa dos direitos das minorias apenas após processo histórico extremamente longo de desenvolvimento da sua própria legitimidade através da proteção dos direitos dos detentores do poder”[7]. Ainda assim, é perfeitamente possível imaginar que o oposto da sua proposta pode muitas vezes ser mais recomendado. De fato, é difícil imaginar espaço para criticar a postura literalmente ativista adotada pela Corte Constitucional da África do Sul como instituição legitimadora do projeto pós-apartheid de transformação social do país. Na África do Sul, a postura política inicialmente ofensiva da Corte Constitucional gerou resultados positivos em termos de redução de crueldade e de garantia mais efetiva de direitos humanos.

Na mesma linha, não é empiricamente aceitável a argumentação desenvolvida por Habermas no sentido de que a competência das Cortes Constitucionais para realizar o controle abstrato de constitucionalidade de normas jurídicas afeta mais a separação de poderes e a democracia do que a resolução de conflitos federativos normativos. O mencionado exemplo da virada federalista realizada pela Corte Rehnquist é mais do que suficiente para mostrar que é possível haver afetação à democracia (não necessariamente de maneira ilegítima) a partir de outras competências das Cortes Constitucionais além do controle abstrato de constitucionalidade de normas.

Essa linha de raciocínio, aliás, não pode valer apenas para a discussão acerca da legitimidade da existência da jurisdição constitucional. Deve, com efeito, evoluir para (a) os métodos de funcionamento das Cortes Constitucionais, (b) as suas competências constitucionalmente previstas, (c) a sua estratégia política de sobrevivência e, principalmente, (d) as suas regras de interpretação de normas.

A esse respeito, a excepcional evolução da obra de Sunstein é a melhor ilustração que pode ser apresentada. No livro One Case at a Time: Judicial Minimalism on the Supreme Court, Sunstein apresentou a sugestão de que as Cortes Constitucionais sempre se portassem de maneira minimalista no julgamento de questões ética, política ou socialmente complexas. O autor preconizou que, nessas hipóteses, o melhor a fazer seria julgar o caso sem necessariamente encerrar de maneira definitiva o debate a respeito da matéria. O caminho seria evitar as abstrações inerentes à formulação de teorias gerais e adotar a técnica de decidir um caso de cada vez. Com isso, segundo Sunstein, as Cortes Constitucionais não apenas prestariam homenagem ao profundo dissenso que existe nas sociedades a respeito de questões morais, como, principalmente, fomentariam a aceleração democrática e catalisariam deliberações no âmbito da sociedade civil e do parlamento.

Seguindo raciocínio parecido com o de Ely, ainda que com fundamento em teoria de justiça significativamente mais substantiva, Sunstein apresentou o ponto de partida para o minimalismo, composto por espécie de rol de questões essenciais para que a sua regra de conduta efetivamente pudesse funcionar sem acarretar riscos à democracia. A “substância do minimalismo” demandaria, para o autor, postura necessariamente maximalista das Cortes Constitucionais com relação a qualquer ato público que envolvesse princípios supostamente inerentes aos “pressupostos filosóficos exigidos pela Justiça”[8]. Não é necessário maior esforço crítico para compreender que o ponto de partida do minimalismo proposto pelo autor é metafísico. A representação supostamente consensual do entendimento ético da sociedade norte-americana é claramente o resultado liberal que Sunstein atingiu após longa reflexão teórica. Com segurança, se fosse outro o autor a refletir longamente sobre o mesmo tema, os pressupostos filosóficos exigidos por uma teoria da justiça pretensamente universal seriam distintos. Ao caminhar nesse sentido, aliás, Sunstein cometeu exatamente o mesmo equívoco que maculou a teoria procedimental mista de Ely. A diferença é que o primeiro optou por formular a teoria substancial de justiça que o segundo preferiu esconder. Ainda assim, se a crítica que pode ser feita a Ely é que a sua proposta de restrição do judicial review demanda necessariamente uma teoria de justiça para fazer sentido, a constatação que pode ser feita em relação ao minimalismo proposto Sunstein é a de que a sua empreitada teórica é inquestionavelmente metafísica.

Portanto, o enfrentamento do problema das melhores regras gerais de conduta para as Cortes Constitucionais é indissociável da percepção de que qualquer teoria que pretenda responder essa questão em abstrato e com pretensões universalistas será metafísica. O melhor, nesse sentido, é olhar também para o contexto, como, por exemplo, o próprio Sunstein fez, em momento mais recente da sua obra[9], quando reconheceu que a interpretação também é uma instituição humana e que, portanto, não representa nada por si só. De fato, Sunstein mudou radicalmente de ideia em relação à possibilidade de criar uma regra geral de conduta para as Cortes Constitucionais. O autor deixou de ser entusiasta apenas do minimalismo racional e reconheceu que outras teorias de interpretação, como o maximalismo, o originalismo, o populismo e o cosmopolitismo constitucional, poderiam ser mais adequadas em algumas situações. Sunstein reconheceu que nenhuma escolha a respeito de regras de interpretação poderia ser determinada pela qualidade da regra em si mesma. Ao admitir que “a interpretação não representa nada por si só”[10], compreendeu que é sempre o contexto que deve definir a escolha da regra interpretativa. Igualmente, não há razão para que esse pensamento deixe de ser aplicado aos debates sobre (a) a legitimidade democrática do instituto do judicial review em si; (b) as competências normalmente exercitadas pelas Cortes Constitucionais; (c) os modelos de controle de constitucionalidade; (d) as técnicas de decisão empregadas no julgamento dos casos; e (e) a estratégia política de afirmação da jurisdição constitucional nas democracias.


[1] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I, 2ª Ed., Tradução: Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 299-301.
[2] SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. 2a Ed., Cambridge: Harvard University Press, 2001, p. ix.
[3] SHAPIRO, Martin. Judicial Review in Developed Democracies, in: GLOPPEN, Siri; GARGARELLA, Roberto e SKAAR, Elin (ed.). Democratization and the Judiciary – The Accountability Function of Courts in New Democracies. Frank Cass Publishers, New York, 2004, p. 24.
[4] ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança. Uma Teoria do Controle Judicial de Constitucionalidade, 1ª Ed., Tradução: Juliana Lemos, São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 137-243.
[5] SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. 2a Ed., Cambridge: Harvard University Press, 2001, pp. 46-57 e 212-213.
[6] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I, 2ª Ed., Tradução: Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 329.
[7] SHAPIRO, Martin. Judicial Review in Developed Democracies, in: GLOPPEN, Siri; GARGARELLA, Roberto e SKAAR, Elin (ed.). Democratization and the Judiciary – The Accountability Function of Courts in New Democracies. Frank Cass Publishers, New York, 2004, p. 13.
[8] SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. 2a Ed., Cambridge: Harvard University Press, 2001, pp. 61-67.
[9] SUNSTEIN, Cass R. A Constitution of Many Minds. Princeton University Press, 2009, pp. 19-32.
[10] SUNSTEIN, Cass R. A Constitution of Many Minds. Princeton University Press, 2009, p. 32.

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