Direitos dos ateus

Advogado muda argumento e pode salvar caso perdido

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7 de setembro de 2013, 7h19

Às vezes, fazer valer o direito de clientes na Justiça, mesmo que ele já tenha sido repetidamente negado, é uma questão de abordagem. Mais exatamente, uma questão de abordagem jurídica do tipo "por que ninguém pensou nisso antes?". E esquecer a lei que parecia mais óbvia, claramente violada, mas nunca sustentou suficientemente o caso nos tribunais.

O advogado David Niose mostrou que acredita nisso quando aceitou reviver um caso que já foi derrotado várias vezes nos tribunais. Sob o novo ângulo jurídico que ele apresentou, a Suprema Corte de Massachusetts, nos EUA, resolveu avaliar o caso. Na última quarta-feira (4/9) aconteceu a primeira audiência para discutir a imposição de práticas cristãs a não cristãos, ateus ou agnósticos.

Todos os dias, antes de começar a primeira aula, alunos em escolas dos EUA são orientados a ficar em pé, se perfilar em frente à bandeira hasteada em cada classe, colocar a mão no peito e recitar o "Pledge of Allegiance" — um juramento de lealdade à bandeira e à pátria. O juramento também é feito no início de sessões parlamentares em todo o país e até mesmo em reuniões de prefeituras com líderes comunitários. Todos recitam:

"I pledge allegiance to the Flag of the United States of America, and to the Republic for which it stands, one Nation under God, indivisible, with liberty and justice for all" [Eu juro fidelidade à bandeira dos Estados Unidos da América e à República que ela representa, uma nação sujeita a Deus, indivisível, com liberdade e justiça para todos].

A eterna discussão resulta da expressão "under God", que sujeita a nação a Deus. A expressão não estava no juramento original, que foi concebido pelo reverendo socialista Francis Bellamy, em 1892. Ele escreveu o texto para uma campanha publicitária da prestigiosa revista The Youth’s Companion, para vender bandeiras dos EUA e produtos patrióticos. Uma das ideias bem-sucedidas foi a de colocar bandeiras em todas as salas de aula do país.

Na década de 1920, o juramento ganhou expressão nacional — ou nacionalista, para ser exato — com a chegada em massa de imigrantes ao país. Uma parte do texto que dizia "minha bandeira" foi alterada para "a bandeira dos Estados Unidos", para que os imigrantes não jurassem lealdade à bandeira de seu país de origem.

A próxima mudança ocorreu durante a II Guerra Mundial, na postura dos estudantes ao recitar o juramento. O braço direito estendido em direção à bandeira, similar à célebre postura nazista, no cumprimento a Hitler, foi substituído pela mão direita no peito.

Depois da guerra, nas décadas de 1940 e 1950, o país começou a se preocupar com o crescimento do comunismo e surgiu um movimento para forçar a adição da expressão "under God" ao juramento. Em 1954, o Congresso dos EUA incluiu oficialmente essa expressão no juramento de fidelidade à bandeira e à pátria.

Até essa iniciativa do Congresso, nada dava sustentação jurídica à obrigação das pessoas de recitar o "Pledge of Allegiance", muito menos de incluir Deus na história. Para os ateus, agnósticos, não cristãos ou qualquer defensor de um estado secular (ou laico), isso é uma violação flagrante ao preceito de separação entre a Igreja e o Estado. A Primeira Emenda da Constituição proíbe o Congresso de legislar em favor de qualquer religião.

No entanto, os processos que chegaram à Suprema Corte dos EUA — o último deles em 2004 — não tiveram sucesso, mesmo depois de vencerem etapas de tribunais inferiores. Todos eles buscaram sustentação jurídica na Primeira Emenda, com destaque para os preceitos de separação entre a Igreja e o Estado.

Em 2002, um juiz federal escreveu, em uma decisão favorável aos não crentes, que se for para sujeitar a nação a Deus, ela também pode ser sujeitada a Jesus, a Vishnu, a Zeus ou a deus algum. Mas sua decisão provocou tanta ira que ele mesmo a suspendeu.

Apenas um processo, de 1943 — "West Virginia State Board of Education vs. Barnette" —, foi bem-sucedido, mas foi um êxito apenas parcial, na opinião dos defensores do Estado secular. Testemunhas de Jeová, cuja religião proíbe saudações ou juramentos a símbolos, argumentaram, com sucesso, que seus filhos não podiam fazer juramento à bandeira e nem mesmo à República, porque isso contrariava sua crença.

Desde então, as cortes mantêm que nenhum aluno é obrigado a recitar o juramento de fidelidade nas escolas. Mas tem de se levantar, se perfilar em direção à bandeira, e permanecer calado, enquanto os demais fazem o juramento.

Isso não resolve o problema dos pais patriotas, que querem que seus filhos continuem fazendo o juramento à pátria, mas querem que os termos cristãos sejam excluídos do juramento. Por isso, querem manter o "Pledge of Allegiance", porém, sem a expressão "under God".

A solução encontrada pelo advogado de Massachusetts foi pedir à Suprema Corte do estado — não à Suprema Corte federal — que determine a retirada da expressão "under God" do juramento patriótico, porque, segundo a demanda, ela viola o princípio de "direitos iguais" garantido pela Constituição estadual e todas as leis antidiscriminatórias.

Esse princípio constitucional garante que "todas as pessoas nascem livres e iguais" e que essa igualdade não pode ser reduzida por questões de "sexo, raça, cor, credo ou nacionalidade".

O advogado disse, na primeira audiência, que a repetição do juramento nas escolas, como está, é uma doutrinação cotidiana e uma alienação inaceitável dos alunos não cristãos. "O texto do juramento, com a expressão ‘under God’, torna patriotas os alunos cristãos e não patriotas os demais, porque são obrigados a não fazer o juramento", argumentou.

O advogado Eric Rassbach, do Fundo Beckett para a Liberdade Religiosa, defendeu as famílias cristãs. Argumentou que a maioria das pessoas não vê a recitação do juramento de fidelidade como uma oração. "Seria terrível consagrar na lei esse tipo de alergia a Deus que os demandantes têm", ele disse.

Não há garantias de que os não cristãos vão ganhar a disputa desta vez. Mas até mesmo as pessoas religiosas, que já apelidaram o juramento sem a expressão "sujeita a Deus" de "juramento ateu", temem que isso possa acontecer.

Segundo já perceberam, o advogado David Niose alinhou toda a sua argumentação com o de outro processo que teve êxito na Suprema Corte de Massachusetts: o do casamento gay. Nesse processo, os demandantes gays também alegaram violações ao princípio de "direitos iguais" para todos, bem como a todos os dispositivos legais contra a discriminação.

Mas o maior temor dos cristãos é a de que uma possível vitória dos defensores do Estado secular na Suprema Corte vá provocar uma enxurrada de ações judiciais em todos os estados americanos, onde o juramento de fidelidade sujeito a Deus é recitado cotidianamente. Se o resultado for favorável ao movimento secular, ações judiciais "copycats" (similares) devem se propagar no país.

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