Restrição indevida

Veto ao anonimato não justifica proibição a máscaras

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6 de setembro de 2013, 18h05

Ao longo dos últimos anos acompanhamos uma série de "primaveras" ao redor do mundo, em que os cidadãos (especialmente os mais jovens) foram às ruas questionar seus governos por diversas razões. No Brasil não foi diferente e, neste ano de 2013, passamos a acompanhar diversas manifestações populares em todo o país, com diversas pautas, e em que ficou clara a indignação latente da população em geral.

Se a indignação popular representou uma demonstração de maturidade democrática, as reações do poder público — em especial as policias militares — demonstraram que ainda há muito a ser conquistado em termos de liberdades públicas fundamentais. Cito, como exemplo, os casos das cidades de São Paulo e de Belo Horizonte, ambas em junho do presente ano (a despeito de situações semelhantes terem ocorrido no Rio de Janeiro, Recife e em diversas outras cidades brasileiras).

Passadas as principais manifestações em junho, a proximidade da simbólica data do 7 de Setembro motivou a articulação de diversos movimentos e, com eles, em muitos estados temos notícias de que autoridades realizaram uma série de "proibições" ao uso de máscaras, capuzes, gorros, etc, sob as mais diversas roupagens.

Exemplifico, desta vez, com declaração [1] do Comandante Geral da PM do Distrito Federal de que "mascarados serão presos em manifestações" e de nota veiculada no site oficial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[2] anunciando que "autoridades policiais estão autorizadas a solicitar a identificação civil de manifestantes que portem máscaras, capuzes ou lenços nos rostos, sob qualquer pretexto, em protestos populares”, destacando que “caso algum mascarado se recuse a retirar a máscara e apresentar sua identificação, será encaminhado a uma delegacia, onde haverá a identificação datiloscópica (impressão digital) e fotográfica." Não foi possível ter acesso à decisão pois, segundo a mesma nota, "o processo corre em caráter sigiloso".

As motivações das autoridades para justificar as medidas são as mais diversas, mas convergem em um discurso de proteção contra "vândalos", “criminosos” e em nome da “segurança publica”. Por mais justas que, à primeira vista, pareçam, é certo que nenhuma destas razões sobreviveria a uma analise constitucional. Violam direitos e garantias fundamentais e representam um perigosíssimo precedente na história de nossa democracia recente.

Em primeiro lugar, não existe qualquer norma do Legislativo proibindo o uso de máscaras em manifestações. Da mesma forma, questiono se as autoridades mencionadas são competentes para prescrever essa proibição face o princípio da legalidade previsto no artigo 5º, II da Constituição, posto que indo muito além de seu mero poder regulamentar. Podem o Poder Executivo ou o Judiciário regular esse comportamento, em nível abstrato? O Supremo Tribunal Federal já se manifestou nesse sentido por ocasião da AC 1.033-AgR-QO [3], em que destacou a amplitude da restrição da garantia da reserva de lei.

Mas vamos prosseguir até o próximo argumento, da "proibição do anonimato" supostamente existente em nosso texto constitucional e que, também, não parece correto. Vejamos o que diz, textualmente, o inciso IV do artigo 5º "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".

A correta hermenêutica constitucional, visando a aplicação ao maior âmbito possível de sua proteção, só poderia autorizar o entendimento de que toda manifestação de pensamento é livre, salvo se anônima. A exceção à proteção ao anonimato jamais pode ser interpretada como uma proibição a este. Se assim não fosse, seria forçoso concluir pela inconstitucionalidade do "Disque Denúncia" e que todos nós seriamos obrigados a andar pelas ruas com crachás para que não sejamos anônimos. O absurdo fala por si só.

A Constituição não proíbe o anonimato, mas apenas o retira do âmbito de proteção da norma. Em outras palavras: o Constituinte não pretendeu que o anonimato fosse proibido civil ou penalmente — até porque não previu nenhuma sanção para tal, em nenhum âmbito — nem tampouco quis autorizar o legislador infraconstitucional a fazê-lo, uma vez que a redação não se aproxima nem um pouco do inciso XLII, por exemplo (que determina a criminalização do racismo).

O que ocorreu foi a omissão dos casos de anonimato do âmbito de proteção constitucional de modo que este, simplesmente, não teria proteção idêntica aos casos em que o pensamento é expresso por alguém identificado. Alias, notemos que a Constituição anterior (1967/1969), de inegável matriz autoritária, sequer menciona a expressão "anonimato": dizer que a Carta de 1988 quis proibi-lo é dizer que, neste particular, a liberdade de expressão seria maior na vigência da ordem anterior do que na atual, o que também torna claro o equívoco.

Mas nem mesmo se a aventada proibição ao anonimato efetivamente existisse naqueles termos se justificaria a proibição ao uso de máscaras e afins durante as manifestações, como querem as autoridades citadas.

Em nosso direito a prisão penal pode ocorrer em dois casos: em flagrante delito ou por ordem judicial de autoridade competente, conforme dispõe o artigo 5º, LXI de nossa Constitucional. Desta forma, já fica descartada a odiosa "prisão para averiguação", instituto autoritário de larga utilização pela ditadura militar (e que vez ou outra se ensaia sua volta).

É certo que o uso de máscaras, panos nos rostos, etc. não constitui qualquer tipo penal vigente e, portanto, impossível que alguém seja preso em flagrante unicamente por isso (por óbvio que se alguém comete um crime enquanto usa mascara está sujeito à persecução penal pelo crime que cometeu, nunca pelo mero porte de uma máscara). Da mesma forma, se não existir ordem judicial fundamentada de autoridade competente determinando a prisão de alguém pelo uso de máscaras — e aqui me pergunto por que existiria — também não se justifica a detenção nesses termos.

Alias, não olvidemos que o direito de liberdade é amplo e não se traduz num mero "não ser preso": seja pelo texto constitucional vigente, seja pelo texto da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que determina que ninguém será privado de sua "liberdade física" e "nem submetido a detenção ou encarceramento arbitrários" (artigo 7º, parágrafos 1º e 2º) e que indica serem restrições à liberdade, além da prisão em si, a detenção e a retenção (parágrafo 5º, do mesmo artigo).

Além dos argumentos já refutados, o TJ do Rio de Janeiro sugeriu uma curiosa estratégia jurídica: autorizou a identificação civil, de antemão, de todo cidadão que porte "máscaras, capuzes ou lenços nos rostos", nos termos da lei federal 12.037. Da mesma forma, diz a nota que a decisão autoriza aos policiais determinarem que o cidadão deixe de utilizar a máscara.

Sem entrar no mérito da decisão — porque inexplicavelmente sigilosa — é certo que, na prática, autoriza a policia a impedir que o cidadão utilize máscara, capuz, gorro ou o que quer que seja. Em outras palavras, toma o lugar do legislativo ao proibir um comportamento abstrato e abre um precedente perigosíssimo: quando inconveniente para as autoridades, máscaras e outros objetos de protesto passam a ser vedados (Aliás, me questiono o que poderia ser do Carnaval se esse raciocínio prevalecer…). Com estes singelos objetos, se vai parcela da liberdade do cidadão.

Pior: o fundamento da “autorização” concedida pelo Judiciário carioca é o artigo 3º, IV da Lei de Identificação Criminal, que autoriza a identificação criminal (ou seja, que pressupõe a detenção ou retenção do indivíduo para levá-lo a um Distrito Policial para) “quando for essencial às investigações policiais” o que, pelo teor da nota parece ser o caso. Por essa razão, na prática, não basta que o cidadão apresente seu documento de identificação pois este pode ser considerado insuficiente pelo policial, levando-o, sob o pretexto de identificá-lo sob indevida (e inconstitucional) custódia enquanto se realizam os tais procedimentos.

Sabemos que é verdade que alguns cidadãos, individualmente ou em certos grupos, se manifestam de forma violenta ou, pior, se valem delas para cometer crimes. Estes comportamentos devem, sim, ser combatidos pelo Estado, dentro dos limites constitucionais e legais. Este argumento, porém, não pode servir para que o Estado se volte contra seus cidadãos quando este o questionam tão frontalmente.. Se o poder público falha em distinguir aqueles que se manifestam daqueles que cometem crimes não pode transferir sua incompetência para os cidadãos, restringindo sua esfera de liberdade indevidamente.

É certo que vivemos rico momento histórico e, nele, um momento decisivo para que nossa democracia se consolide ou recue. As posturas das autoridades aqui comentadas, sem sombra de dúvida, representam risco a diversos direitos e garantias fundamentais e, por isso, devem ser questionadas e fiscalizadas de todas as formas possíveis por toda a comunidade jurídica e por todos os que se preocupam com a consolidação de nossa jovem democracia.


[1]Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/134603>. Acesso em: 05/set/13.

[2]Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/mascarados-serao-presos-em-manifestacoes-de-7-de-setembro-em-brasilia-9836798 >. Acesso em: 06/set/13.

[3]"O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, inciso V, da CF, e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (…)’. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.)." (AC 1.033-AgR-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-5-2006, Plenário, DJ de 16-6-2006.)

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