Ideias do Milênio

Sonho ver israelenses e palestinos tocando juntos

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6 de setembro de 2013, 8h28

Entrevista concedida pelo maestro indiano Zubin Mehta, diretor artístico da Orquestra Filarmônica de Israel, à jornalista Leila Sterenberg, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30. 

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Zubin Mehta, nascido na Índia há 77 anos, é considerado um dos maiores maestros do mundo. Foi ele quem mais tempo permaneceu à frente da Filarmônica de Nova York como diretor musical, cargo que também ocupou na Filarmônica de Los Angeles, cidade onde mora. Rege regularmente a ópera do estado alemão da Baviera e a orquestra Maggio Musicale Fiorentino, de Florença, que esteve no Brasil em 2012. Este ano Mehta voltou ao país com a Orquestra Filarmônica de Israel, da qual é diretor musical vitalício. No programa, obras grandiosas, como a quinta sinfonia de Gustav Mahler. Também estava prevista uma sinfonia de Mozart, que o maestro decidiu trocar pelo Concerto para Violino em Sol Maior, do compositor austríaco, ao saber que o violinista e grande amigo Pinchas Zukerman estava no Rio de Janeiro. Pouco antes do ensaio de última hora com Zukerman e a orquestra no Teatro Municipal do Rio, Zubin Mehta conversou com o Milênio.

Leila Sterenberg — O senhor vai se apresentar na Caxemira, um lugar muito bonito na Índia, mas também muito turbulento politicamente. Eu li que o senhor estava ansioso para se apresentar lá e que o concerto significa muito para o senhor. Pode falar disso?
Zubin Mehta — Para todo indiano, a Caxemira é a joia da coroa do nosso país. Infelizmente, a região é disputada com o Paquistão, que tem a mesma opinião, mas há um cessar-fogo em vigor há muitos anos e o turismo voltou. Há muitos anos vou passar férias lá com meus filhos. Fizemos uma peregrinação até 5 mil metros de altitude. Lá você pode beber a água dos rios e dos lagos, da tão pura que ela é. O governo não permite que nós, indianos, compremos terras na Caxemira, então ela permaneceu intocada. E sempre tive o sonho de tocar lá, porque os hinduístas e os muçulmanos vivem em crise lá. Se ele pudessem se sentar por duas horas para ouvir Mozart, Beethoven e Tchaikovski, seria bom. E vai finalmente acontecer. Vai acontecer graças aos esforços da Embaixada Alemã.

Leila Sterenberg — Não é incrível? Falar da Índia me faz lembrar seu pai, Mehli Mehta. O senhor descreve em seu livro, The Score of My Life, como ele se apaixonou pela música e aprendeu sozinho a tocar violino. Antes do seu nascimento ele já tinha fundado a Orquestra Sinfônica e o Quarteto de Cordas de Mumbai. É um belo exemplo de como a paixão pela música pode mudar vidas.
Zubin Mehta — Meu pai foi violinista autodidata até o fim da guerra. Em 1945, depois que a guerra acabou, ele partiu no primeiro navio para Nova York para realmente estudar violino do zero. Ele passou quatro anos e meio lá e voltou um violinista completo. Ele sempre tocava, mesmo antes da viagem, em quartetos e em orquestras. Ele foi spalla, e, depois, se tornou regente da orquestra. Graças a ele, a música já fazia parte da minha vida antes de eu aprender a falar. Eu cresci nesse ambiente.

Leila Sterenberg — A fundação batizada com o nome de seu pai permite que jovens indianos aprendam e toquem a música erudita ocidental.
Zubin Mehta — Temos mais de 200 jovens e há uma lista de espera porque não temos professores suficientes. Precisamos de bons professores que queiram ir a Mumbai sacrificar um pouco de seu tempo para ensinar esses jovens, porque a instrução é muito importante.

Leila Sterenberg — Em Israel, o senhor foi um dos fundadores do projeto Mifneh, um programa de educação musical para árabes nascidos em Israel.
Zubin Mehta — Árabes nascidos em Israel que vivem no norte, em Nazaré e em Shefa-‘Amr, duas cidades, e lá temos 300 jovens aprendendo, mas músicos da orquestra supervisionam o ensino e o estudo.

Leila Sterenberg — O senhor sonha com o dia em que palestinos e israelenses tocarão lado a lado da forma como a Filarmônica de Israel e a Orquestra do Estado da Baviera fizeram em Buchenwald?
Zubin Mehta — Sonho. Você sabe muito! Claro que sim. É o sonho de todo mundo. Há músicos da Filarmônica de Israel foram a Ramallah, a capital da Palestina no momento, para ensinar. Só que não é permitido. E é bem pertinho.

Leila Sterenberg — Naquele concerto incrível de 1999, o senhor regeu a Segunda Sinfonia Mahler, e agora escolheu a quinta para esta turnê no Brasil. Mahler era um judeu que falava alemão de um vilarejo da Boêmia que era parte do Império Austro-Húngaro. E quando o senhor morou em Viena, nos anos 1950, disse que havia um preconceito contra Mahler.
Zubin Mehta — Bem, não era permitido tocar Mahler durante o III Reich. Por isso os regentes que cresceram nessa época também não o apresentavam. Quando cheguei a Viena, em 1954, ele era pouquíssimo tocado. O centésimo aniversário de Mahler foi em 1960, e foi aí que começou a acontecer. Bruno Walter, o grande regente judeu alemão, tocou a Quarta Sinfonia de Mahler, Klemperer tocou a Nona Sinfonia, assim como orquestras estrangeiras, e, de repente, houve o renascimento de Mahler. Leonard Bernstein tocou a Quinta Sinfonia pela primeira vez com a Filarmônica de Viena. Assim foi crescendo, e hoje a Filarmônica de Viena tem Mahler em seu repertório.

Leila Sterenberg — E o senhor teve a chance de conhecer Bruno Walter. O senhor conta no livro que ele repassou a partitura da Primeira Sinfonia com o senhor. E o senhor também conheceu Alma Mahler, que alguns chamam de Alma Mahler Gropius Werfel.
Zubin Mehta — Eu passei uma tarde com ela em Nova York. Ela me recebeu sozinha e me mostrou… Ela vivia com seus homens. Ela tinha os autógrafos de Mahler, as plantas arquitetônicas de Gropius… Ela também namorou Kokoshka muitos anos, e tinha os leques dele emoldurados por toda a casa. Ela vivia com seu passado, e era como entrar num apartamento vienense, muito escuro, com muitas cortinas e móveis escuros. E eu tinha lido os livros dela, então não fiz muitas perguntas. Mas ela foi muito simpática. E eu conhecia a filha e a neta dela em Los Angeles.

Leila Sterenberg — O senhor disse em entrevistas que a música de Mahler foi influenciada por Wagner, que foi revolucionário em termos musicais. Talvez não seja loucura ver semelhanças entre o adagietto de Mahler e o prelúdio de “Tristão e Isolda”, de Wagner, certo?
Zubin Mehta — Bem, a parte lenta do prelúdio de “Tristão” é parecido com o adagietto, mas o adagietto é a declaração de amor de Mahler à sua nova esposa.

Leila Sterenberg — Alma.
Zubin Mehta — É uma canção de amor. E o prelúdio de “Tristão” é um presságio da tragédia do amor. Mas, sem Tristão, nada disso teria acontecido. Sem a música revolucionária de Wagner, como você disse, de Richard Strauss, Bruckner e, é claro, de Schönberg. Ele foi o último a receber o legado de Wagner. Depois ele rompeu e foi numa direção diferente.

Leila Sterenberg — É a chamada Segunda Escola de Viena, certo?
Zubin Mehta — Sim. Mas ele levou muitos anos para criá-la.

Leila Sterenberg — Quando o senhor acha que Israel estará pronto para uma ópera de Wagner? Algum dia?
Zubin Mehta — Para uma ópera, não, mas algumas partes sinfônicas de suas óperas devem ser apresentadas. Acho que acontecerá em breve.

Leila Sterenberg — Quando?
Zubin Mehta — É uma questão sentimental, não intelectual. Todos em Israel sabem que Wagner não era nazista, mas ele era muito antissemita, em seus textos e simbolicamente também nas óperas. E a música de Wagner foi usada pelos nazistas. Então, para quem passou por campos de concentração, ela os leva de volta àqueles dias de terror, e ainda há pessoas vivas em Israel com números tatuados. Temos que esperar que elas deem sua permissão.

Leila Sterenberg — O seu relacionamento antigo com a Filarmônica de Israel e a Orquestra gerou um som característico, algo que também existia em Viena. O senhor descreveu que na primeira vez que ouviu a orquestra regida por Karl Böhm apresentando a Primeira Sinfonia de Brahms seus ouvidos se abriram. O que produz o som característico de uma orquestra
Zubin Mehta — É um som e uma visão do regente também. O meu repertório é Viena. É claro que também tocamos Stravinski e Tchaikovski, mas meu mundo da música vai basicamente de Haydn a Weber, e esse mundo é Viena. Portanto o som precisa ser centro-europeu, com um tom muito caloroso. Em Mahler, temos os dois. Por causa de suas dificuldades e de seu sofrimento, vemos que, principalmente na Quinta Sinfonia, ele às vezes sobe o tom. Temos um belo mundo e, de repente, dá tudo errado. Depois, volta o triunfo. Esse era o estado de espírito dele. Mas termina com uma comédia. Depois da declaração de amor ele está de bom humor, e o último movimento é todo otimista. Então a sinfonia começa com uma marcha fúnebre e termina com a alegria completa da vida.

Leila Sterenberg — Imagino que relações longas com regentes também sejam importantes. Além disso, ninguém viajava muito nos anos 1950.
Zubin Mehta — Dependa da personalidade de ambos. Estou comemorando 44 anos à frente da Filarmônica de Israel, então não entendo essa volatilidade. Mas somos uma família e há problemas, às vezes. Discutiu-se, por exemplo, porque não viemos para cá logo depois do concerto, para passar a sexta e o sábado no Rio. Alguns disseram que queriam dormir e viajar pela manhã. Essas são briguinhas de família.

Leila Sterenberg — Em entrevistas que o senhor deu nos anos 1990 a Bruce Duffie em Chicago, contou sobre sua primeira turnê com a Orquestra de Florença. Apesar de pequenas imperfeições técnicas, o público foi à loucura, foi um grande sucesso, por causa do envolvimento e da paixão que os músicos demonstraram.
Zubin Mehta — Assim que você pisa no palco, embarca numa espécie de ilusão aos olhos do público. Hoje, a Orquestra de Florença é uma das melhores da Europa. Quando cheguei, em 1991, seu nível não era tão alto, mas ela fazia muito sucesso porque, no palco, os músicos emanavam personalidade, e o público adora isso. Mesmo que não tocassem perfeitamente, as pessoas ficavam absolutamente encantadas. Foi isso que eu quis dizer.

Leila Sterenberg — No caso de Mozart, que o senhor também escolheu para a turnê… Os violinos não mudaram muito desde o final do século XVIII, mas o piano da época era totalmente diferente do piano de hoje, e outros instrumentos também mudaram. E a acústica das salas de concerto também mudou. Então a música é a mesma, mas não é.
Zubin Mehta — Mozart tocava seus concertos num cravo. Depois surgiu o piano. É claro que houve uma evolução. E o piano de hoje existe desde antes da Primeira Guerra. Então, é claro que o som é um pouco diferente. E os instrumentos da orquestra também evoluíram, mas não os violinos, porque ainda tocamos em violinos fabricados em 1780, 1790, alguns até antes. Temos também os instrumentos de corda modernos, porque não podemos bancar só violinos do século 18. Os instrumentos de sopro evoluíram.Na França, o oboé evoluiu. Em Viena, o clarinete também. E os metais diferem muito de país para país. Na Alemanha, nos Estados Unidos, os fabricantes são diferentes. Então o músico ou o regente escolhe o instrumento que quer.

Leila Sterenberg — Além de reger Mozart, Mahler e Wagner, o senhor também encomenda composições. Quem são os Mozarts, Mahlers e Wagners de hoje?
Zubin Mehta — Apresentei muitas obras de Luigi Nono, da Itália, e Luciano Berio. Em Israel temos Ödön Pártos. Esses são clássicos que infelizmente já faleceram. E temos também compositores modernos, como Ami Maayani em Israel. E há imigrantes da Geórgia e da Rússia que estão compondo muito bem. Assim como na Europa também. Temos Kurtág na Hungria, e há alguns compositores americanos, Steve Reich, o minimalista. Há muita música sendo criada.

Leila Sterenberg — Já lhe fizeram esta pergunta várias vezes, mas está otimista em relação ao futuro da música?
Zubin Mehta — Eu me preocupo com o futuro do público de música, que às vezes. Na Itália não temos esse problema, a não ser com óperas contemporâneas. Mas em Munique, onde passei oito anos, fosse contemporânea ou barroca, sempre lotava. Portanto, em algumas partes da Europa não há problema. Acredito que haja problemas na Inglaterra, porque há cinco orquestras em Londres, e não dá para lotar os teatros toda noite. Em Israel não temos problemas.

Leila Sterenberg — Em Nova York, a Filarmônica promove concertos para a família, nos quais você leva a crianças.
Zubin Mehta — Eles têm ideias diferentes para atrair o público. Em Israel também. Temos uma série chamada “Jeans Concerts”. Convidamos jovens, o concerto só dura uma hora e meia, e não as duas horas e meia habituais. E temos um apresentador que fala com eles. Depois do concerto há uma discoteca no saguão. Dessa forma, também atraímos os jovens.

Leila Sterenberg — A forma como as pessoas ouvem música se tornou mais individual, principalmente nos últimos anos como o iPod, o iPad e celulares. O senhor acha que isso ameaça a experiência de assistir a um concerto ao vivo?
Zubin Mehta — Nós também competimos com as nossas próprias gravações, mas não há nada como ir a um concerto. Nada.

Leila Sterenberg — O senhor já disse que Villa-Lobos deveria ser mais tocado por orquestras importantes. Por que acha que isso não acontece?
Zubin Mehta — Por causa do repertório dos maestros. Quando maestros brasileiros vão ao exterior, certamente tocam Villa-Lobos.

Leila Sterenberg — Se tivesse que fazer a trilha sonora da sua vida, quais compositores estariam nela com certeza?
Zubin Mehta — Eu não saberia dizer. Somos abençoados com 400 anos de obras-primas. Podemos escolher o que quisermos, temos uma seleção tão incrível que, seja do período clássico, romântico, impressionista, dodecafônico, as escolhas são variadíssimas.

Leila Sterenberg — No ano passado, o senhor disse num programa de televisão israelense que o rock é previsível. Onde é o seu limite? Existe música boa e música ruim, rock bom e música erudita ruim?
Zubin Mehta — Existe música inspirada e não inspirada em todos os campos e em todos os períodos, por isso podemos escolher.

Leila Sterenberg — O senhor fala várias línguas. Estamos conversando em inglês, sua língua materna é um dialeto do guzerate e aprendeu alemão em Viena. Uma vez, perguntado sobre o propósito da música, responde que, para o senhor, a música é uma língua. Vou citar a Bíblia, que o senhor estudou numa escola jesuíta. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” A música é uma língua que nos aproxima de Deus, mesmo para quem não acredita?
Zubin Mehta — Ela nos aproxima das pessoas. As pessoas que não conseguem se comunicar através da língua se comunicam através da música. Por exemplo, se eu tocar com um artista russo e eu não souber russo e ele não souber inglês, a música comunica imediatamente. Não há fronteiras.

Leila Sterenberg — Mas existe uma transcendência que atingimos através da música.
Zubin Mehta — Nunca devemos subestimar o poder que a música tem.

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