Exigência descabida

Exclusão de obesos de concursos vai criar a Ficha Lipo

Autor

  • Vitor Guglinski

    é advogado professor de Direito Civil e Direito do Consumidor membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG e coordenador da Escola Superior da Advocacia da 6ª Subseção da OAB-MG de Cataguases.

5 de setembro de 2013, 9h52

Notícia do dia 1º de setembro do corrente ano dá conta de que Tsuwa Watanabe, de 39 anos, candidata ao cargo de Agente de Organização Escolar foi considerada inapta pela comissão do respectivo concurso público para o exercício da função pelo fato de, segundo o Departamento de Perícias Médicas de São Paulo, ser portadora de obesidade mórbida.

Não é a primeira vez que o poder público do estado de São Paulo adota tal conduta. No dia 2 de fevereiro de 2011, o Brasil acompanhou, com perplexidade, o caso envolvendo a  eliminação de candidatos a professores da rede pública do estado de São Paulo,  ocorrida durante a realização dos exames de saúde, e motivada pela obesidade que  os acomete. Em síntese, referidos candidatos denunciaram que, no momento da  avaliação de saúde, foram vetados pelo setor de perícias médicas responsável pelos exames, ao argumento de que a obesidade é oficialmente uma doença. Por  isso os portadores desse mal não estariam aptos a integrar o funcionalismo  público, em que pese terem demonstrado estar clinicamente saudáveis, através dos  resultados de outros exames.

A questão acende, então, fértil discussão acerca da constitucionalidade da  eliminação de candidatos a esse tipo de função por motivo de obesidade. Analisando as implicações jurídicas envolvendo o tema, é possível extrair  alguns fundamentos jurídicos que permitem concluir que esse ato por parte do Poder Público encontra-se totalmente  divorciado das diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito.

Investigando as bases constitucionais pertinentes ao tema, dispõe o artigo 37,  incisos I e II, da Constituição Federal:

Artigo 37. A administração pública direta e indireta de  qualquer dos  Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos  Municípios obedecerá  aos princípios de legalidade, impessoalidade,  moralidade, publicidade e  eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada  pela Emenda Constitucional nº  19, de 1998)

I – os cargos, empregos e funções públicas são  acessíveis aos brasileiros  que preencham os requisitos estabelecidos em lei,  assim como aos estrangeiros,  na forma da lei; (Redação dada pela Emenda  Constitucional nº 19, de  1998)

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de  aprovação  prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de  acordo com a  natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista  em lei,  ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de  livre  nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional  nº 19, de  1998)

Da leitura do dispositivo e seus incisos, verifica-se que a Constituição  Federal conferiu à lei a tarefa de regular o acesso aos cargos e empregos  públicos. Como parâmetro a ser utilizado para afiançar os argumentos aqui expendidos, a Lei 8112/90 disciplinar o Regime Jurídico dos Servidores  Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, sendo  que os requisitos básicos para a investidura em cargo público estão dispostos no  artigo 5º, e incisos, do diploma legal supra citado, a saber:

Artigo 5º São requisitos básicos para investidura em cargo público:

I – a nacionalidade brasileira;

II – o gozo dos direitos políticos;

III – a quitação com as obrigações militares e  eleitorais;

IV – o nível de escolaridade exigido para o exercício do  cargo;

V – a idade mínima de dezoito anos;

VI – aptidão física e mental.

Das exigências legais acima, extrai-se que o legislador ordinário, cumprindo  o comando constitucional, estabeleceu critérios objetivos para o ingresso no  funcionalismo público, sendo que, em relação à aptidão física e mental (inciso  VI), em homenagem aos princípios que regem nosso ordenamento constitucional, tal  requisito deve ser avaliado de acordo com cada caso específico. Isto é,  observando-se a natureza da função a ser exercida pelo candidato eventualmente  aprovado, de modo que não haja distorções na aplicação desse critério e,  consequentemente, injustiças para os candidatos.

Um dos traços de maior destaque nos concursos públicos é a garantia de  igualdade entre os participantes do certame, sendo que somente a lei pode  estabelecer restrições de acesso a determinados cargos, e, mesmo assim, só nos  casos em que determinadas características inerentes ao candidato forem incompatíveis com a natureza da função a ser desempenhada. Isso decorre do  princípio da isonomia, o qual está explícito no artigo 5º, caput e implícito no artigo 3º, inciso IV, ambos da Constituição Federal, e que proíbe, consoante esse último preceptivo, quaisquer formas de discriminação, expressão essa que nos adverte que o rol de elementos discriminatórios rechaçados pela Constituição Federal não é exaustivo, mas meramente exemplificativo.

Nesse passo, cabe registrar a irretocável lição de Celso Antônio Bandeira de  Mello, no sentido de que “os concursos públicos devem dispensar tratamento  impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas  finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a  objetividade ou o controle destes certames” (Curso de Direito  Administrativo, 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, pág. 194).

Sendo assim, encontramos um dos fundamentos jurídicos a coibir tal prática  por parte do Poder Público, na medida em que, no caso dos professores tolhidos  do certame, a alegação de que são obesos não pode servir de óbice para a  aprovação no concurso, na medida em que a atividade a ser por eles desempenhada  é, preponderantemente, intelectual. Portanto, a atitude do poder público,  data maxima venia, extrapola a órbita do interesse público e foge aos critérios objetivos de avaliação do candidato.

A obesidade, em suas diversas causas, consoante a Classificação Internacional  de Doenças (CID), de fato é considerada uma doença. Entretanto, se esse mal for considerado um óbice à ocupação do cargo de Agente de Organização Escolar, também deverão ser inadmitidos no serviço público tantos quantos forem  os portadores de outras doenças, tais como os portadores de doenças visuais  (miopia, astigmatismo, hipermetropia etc.), os diabéticos, enfim, os portadores de diversos outros males que também são internacionalmente classificados como doenças. Nesse sentido, inclusive, deverão ser inadmitidos no serviço público os portadores de necessidades especiais, que hoje, aliás, são cotistas em  concursos públicos, por expressa determinação constitucional constante do artigo  37, inciso VIII, da Constituição.

Ora, seria absurdo!

Nesse caso, a obesidade nada guarda relação com o desempenho das funções para  as quais a candidata prejudicada se inscreveu. Seria diferente se, por  exemplo, ela estivesse participando de uma seleção para policial militar, oficial  das Forças Armadas, bombeiro, enfim, profissões em que o primor físico é  indispensável para o desempenho das respectivas atribuições. Aliás, sobre esse  tema é interessante abrir um breve parêntese, pois nem mesmo essas corporações  estão livres da obesidade, uma vez que é comum vermos pelas ruas policiais muito  gordos, sem qualquer condição de empreender eventual perseguição a quem esteja em fuga.

Continuando nessa trilha, basta ligarmos nossos televisores nos noticiários  para vermos nosso Congresso Nacional e assembleias legislativas abarrotados de  parlamentares obesos; basta darmos uma volta pelos fóruns e tribunais  brasileiros para encontrar juízes, promotores, procuradores públicos e  serventuários obesos; prefeitos, governadores. O funcionalismo público  brasileiro, de um modo geral, é gordo! Ou algum leitor ousa dizer que a maioria  de nossas lideranças políticas e demais integrantes do funcionalismo público é  “saradinha”?

É óbvio que não!

Dessa forma, caso a eliminação dessa candidata seja mantida, em  homenagem ao já citado princípio da isonomia, os candidatos à  magistratura, MP, AGU, agências reguladoras, bancos, estatais etc. deverão se  cuidar a partir de agora, pois, como diz a máxima jurídica, “onde existe a mesma  razão existe o mesmo direito”.

Nossos políticos também deverão abrir os olhos, já que as instâncias da  Justiça Eleitoral deverão também indeferir a candidatura dos rechonchudos, e  será dever do eleitor não votar naqueles que certamente conseguirão burlar até  mesmo as balanças. Quiçá será lançado algum programa chamado Ficha Lipo.

Cabe lembrar que a obesidade possui origens das mais variadas, que vão desde  maus hábitos alimentares, sedentarismo, enfim, o desleixo com a própria saúde,  até aquelas de origem genética, tendentes, conforme o caso, a jamais  desaparecer. É preciso lembrar que existem pessoas obesas que podem jamais  conseguir emagrecer ou, no máximo, não emagrecerão o suficiente para alcançar o  patamar considerado ideal pelas autoridades em saúde. Todavia, do ponto de vista  intelectual, pessoas obesas são plenamente capazes de exercer funções de  professor e correlatas. Não é necessário ser magro para pensar.

Inteligência, raciocínio, criatividade, assiduidade, pontualidade, comprometimento. Esses são, principalmente, os atributos desejados de um funcionário público.

Ponderação e justiça: estes são, necessariamente, deveres constitucionais do  Estado. 

Nota do autor: o presente texto é uma reedição adaptada do artigo intitulado Candidatos obesos, concursos públicos e o peso da justiça, publicado no ano de 2011 em diversos periódicos jurídicos impressos e eletrônicos. 

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