Separação de bens

Tribunais aplicam à união estável direitos do casamento

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3 de setembro de 2013, 7h04

As relações familiares têm evoluído significativamente nas últimas décadas, exigindo que o direito de família também sem transforme para abarcar as mudanças operadas na dinâmica social dos afetos.

Nesse sentido, está em vias de obter a “maioridade civil”, a lei 9.278 de 10 de maio de 1996, que instituiu a “união estável” como modelo de relação entre casais, alternativa ao casamento.

A Constituição da República, de 1988, já legitimava o instituto por meio de seu artigo 226, parágrafo 3º[1], o qual também passou a ser incluído no Código Civil de 2002, em seus artigos 1.723[2] e seguintes, tendo a doutrina e jurisprudência avançado na tendência da tutela das pluralidades familiares.

Por ser um modelo de união que em muito se assemelha ao casamento, a jurisprudência dos tribunais estaduais e do Superior Tribunal de Justiça tem aplicado às uniões estáveis[3], por extensão, alguns direitos previstos para o vínculo conjugal do casamento.

Entendemos que, muito embora a matéria não se vincule diretamente ao direito empresarial, é fato que as consequências tocantes ao regime de bens seguido pelo casal de companheiros, a comunicação de seu patrimônio durante a relação e após o seu término — seja por dissolução ou por morte de um dos parceiros — podem, sim, influenciar relações jurídicas importantes vinculadas às do empresariado, a exemplo de demandas em que se discutam questões societárias, recuperação de créditos, validação de garantias por pessoas viventes sob esse modelo sócio afetivo, etc.

Desse modo, tendo em vista que o Poder Judiciário tem sido chamado a se posicionar sobre o assunto, apontamos abaixo alguns entendimentos firmados pela jurisprudência atual e, inclusive de recentes julgados da mencionada Corte superior.

Constituição e validação de garantias na União Estável
O artigo 1.725 do Código Civil[4], reconhecendo a aplicação analógica do regime de comunhão parcial de bens à união estável, “no que couber”, traduziu longa evolução doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, mas deve ser analisado quanto aos limites dos aspectos atinentes à solidariedade que permeia as relações familiares, especialmente no que concerne à divisão do esforço comum.

Nesse sentido, a exemplo da validação de garantias porventura dadas por pessoas que vivam em união estável, nos parece acertada a jurisprudência que reconhece a inexigibilidade de outorga uxória para o fiador que assim se mantém: “A circunstância de manter o fiador união estável não tem o condão de infirmar, por ausência de outorga uxória, a garantia locatícia por ele prestada ainda que o relacionamento esteja revestido de todas as formalidades para seu reconhecimento como unidade familiar.”[5]

Por outro lado, deverá ser considerado o grau de informação que a pessoa presta, ao tempo da constituição das garantias, sobre o seu estado civil, a fim de determinar a extensão da sua responsabilidade: “Rejeitada a alegação de nulidade da fiança face à ausência de outorga uxória. Ônus da prova. Caso concreto. Tendo o fiador se declarado como divorciado quando da assinatura do contrato de locação, embora vivesse ele em união estável, não sendo tal situação de conhecimento da locadora, é de ser considerada válida a fiança prestada.”[6]

Separação obrigatória de bens na União Estável de maior de 70 anos
Outro aspecto do mencionado artigo 1.275, tratado recentemente pelo STJ, diz respeito à união estável quando um dos companheiros já possua idade superior a 70 anos e a aplicação ou não do regime de separação obrigatória de bens.

É válido lembrar que o direito de família brasileiro estabeleceu as seguintes possibilidades de regime de comunicação dos bens: comunhão parcial, comunhão universal, separação obrigatória, separação voluntária e, ainda, participação final nos aquestos (bens adquiridos na vigência do casamento).

A obrigatoriedade da separação de bens no casamento já era prevista no Código Civil de 1916[7], para pessoas maiores de 70 anos, sendo tratada pelo artigo 1.641 do Código Civil atual. Com a alteração feita pela Lei 12.344 de dezembro de 2010, o regime da separação de bens passou a ser obrigatório no casamento de pessoa maior de 70 anos.

No Recurso Especial 646.259, julgado meses antes da promulgação da referida Lei 12.344/10, o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso, entendeu que, para a união estável, à semelhança do que ocorre com o casamento, é obrigatório o regime de separação de bens de companheiro com idade superior a sessenta anos.

No caso em si, a discussão se pautou sobre o conflito de entendimentos entre as instâncias sobre como deveria ser tratada a matéria. Com o falecimento de um dos companheiros (na época, com 64 anos e estando vigente o CC/16), o juiz determinou a separação obrigatória de bens e concedeu à companheira apenas a partilha dos bens adquiridos durante a união estável, mediante comprovação do esforço comum.

Inconformada com a decisão, ela interpôs recurso no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que reformou a decisão afirmando que não se aplica à união estável o regime da separação obrigatória de bens “porque descabe a aplicação analógica de normas restritivas de direitos ou excepcionantes. E, ainda que se entendesse aplicável ao caso o regime da separação legal de bens, forçosa seria a aplicação da súmula 377[8] do Supremo Tribunal Federal, que igualmente contempla a presunção do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado na constância da união”.

O espólio do companheiro apresentou recurso especial no STJ, argumentando que se aplicaria às uniões estáveis o regime obrigatório de separação de bens, quando um dos conviventes fosse sexagenário, como era o caso.

A partir daí, a discussão entre os ministros do STJ se deu a respeito dos limites de extensão do instituto da união estável em comparação ao casamento, pois, se argumentou que, caso se optasse pela liberdade de escolha do regime de bens para os sexagenários, seriam estabelecidos mais direitos aos conviventes do que aos cônjuges (referindo-se à união estável como um “instituto menor” que o casamento); e, ainda, que negar-se a interpretação jurisprudencial no mesmo padrão do legalmente estabelecido ao instituto do casamento seria inverter a hierarquia constitucionalmente sufragada.

Desse modo, concluíram os ministros que deve se ter em favor das uniões estáveis envolvendo sexagenários (e agora, septuagenários, por força da alteração da Lei 12.344 de dezembro de 2010!), a mesma previsão de regime de separação de bens obrigatória que a lei determina para os casados, em igual situação.

O entendimento dos ministros do STJ, nesse sentido, tem o intuito de evitar interpretações discrepantes da legislação que, em sentido contrário ao adotado pela corte, estimularia a união estável entre um casal formado, por exemplo, por um homem com idade acima de 70 anos e uma jovem de 25, para burlarem o regime da separação obrigatória previsto para o casamento na mesma situação.

Além disso, em que pese a tendência da defesa das pluralidades familiares, o ordenamento jurídico nacional ainda protege com maior empenho o instituto do casamento, e uma opção de escolha diferenciada de regime de bens para companheiros nessa circunstância poderia desestimulá-lo.

Nesse sentido, vale apontar trecho do entendimento do Ministro Massami Uyeda, ao julgar o REsp 1.090.722, “se para o casamento, que é o modo tradicional, solene, formal e jurídico de constituir uma família, há a limitação legal, esta consistente na imposição do regime da separação de bens para o indivíduo sexagenário que pretende contrair núpcias, com muito mais razão tal regramento deve ser estendido à união estável, que consubstancia-se em forma de constituição de família legal e constitucionalmente protegida, mas que carece das formalidades legais e do imediato reconhecimento da família pela sociedade”.

No entanto, de acordo com Uyeda, é preciso ressaltar que a aplicação do regime de separação obrigatória de bens precisa ser flexibilizado com o disposto na súmula 377/STF, “pois os bens adquiridos na constância, no caso, da união estável, devem comunicar-se, independente da prova de que tais bens são provenientes do esforço comum, já que a solidariedade, inerente à vida comum do casal, por si só, é fator contributivo para a aquisição dos frutos na constância de tal convivência”.

A interpretação aplicada por Uyeda foi firmada anteriormente na 3ª Turma pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito, no julgamento do REsp 736.627, no qual o ministro apontou que a evolução da jurisprudência, nesse sentido, tem se operado, porque “o que vale é a vida em comum, não sendo significativo avaliar a contribuição financeira, mas, sim, a participação direta e indireta representada pela solidariedade que deve unir o casal, medida pela comunhão da vida, na presença em todos os momentos da convivência, base da família, fonte do êxito pessoal e profissional de seus membros”.

No mesmo sentido, em outro recente acórdão envolvendo sexagenário (REsp 1.171.820), a ministra Nancy Andrighi considerou presumido o esforço comum para a aquisição do patrimônio do casal durante a união estável, declarando não haver espaço para as afirmações do companheiro que alegava que a companheira não teria contribuído para a constituição do patrimônio a ser partilhado.

Para a ministra, “do ponto de vista prático, para efeitos patrimoniais, não há diferença no que se refere à partilha dos bens com base no regime da comunhão parcial ou no da separação legal contemporizado pela súmula 377 do STF”.

Por fim, quanto ao alcance da cautela da separação obrigatória de bens, não resta dúvida de que ela tem por objetivo, “proteger o patrimônio anterior” dos companheiros, “não abrangendo, portanto, aquele obtido a partir da união” (nos termos da manifestação do Ministro Menezes Direito, no REsp 736.627), de modo, assim, a serem compartilhados entre os conviventes, os bens adquiridos na vigência da união estável (como são os aquestos, no casamento), inclusive pelos maiores de 70 anos.


[1] § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

[2] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

[3] http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=110503

[4] Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

[5] (TJRJ, ACi nº 2006.001.46102, 12ª CC, Rel. Des. Marco Antonio Ibrahim, j. 3/5/2007)

[6] (TJRS, ACi nº 70019693167, 15ª CC, Rel. Des. Otávio Augusto de Freitas Barcellos, j. 10/10/2007)

[7] artigo 258, parágrafo único, inciso II, CC/16

[8] No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

Autores

  • Brave

    é coordenadora da área Cível do Rayes & Fagundes Advogados Associados. Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Sylvie tem larga e sólida experiência na área de Contencioso Empresarial, Recuperação Estratégica de Créditos e Negociações.

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