Imperialismo fiscal

País tem seu próprio caminho na tributação internacional

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3 de setembro de 2013, 7h35

No estágio atual das relações comerciais internacionais, tornou-se lugar comum falar-se em globalização. Os estudos a respeito da tributação não ficaram imunes a tal fenômeno, multiplicando-se os trabalhos que falam de temas como a harmonização tributária e a criação de padrões fiscais internacionais.

Em uma época caracterizada pela competição fiscal, regular e abusiva, entre os países, assim como pela crise econômica, que na área financeira levou as nações ao desequilíbrio fiscal-orçamentário, principalmente nos ditos países desenvolvidos, há que se ter redobrada cautela ao se falar em globalização fiscal, para não se cair em um cenário de “imperialismo fiscal”.

Parece-nos que os países desenvolvidos utilizam a tributação como forma de aumentar seu poder tributário nas relações comerciais com países em desenvolvimento. A manutenção de tal poder está no centro do Modelo de Tratado sobre a Tributação da Renda e do Capital editado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desde 1963 (adiante Modelo OCDE).

Mais preocupante, entretanto, não é a dominação jurídico-formal materializada no Modelo OCDE. Para nós, o mais temeroso é a dominação cultural, que toma conta dos operadores do Direito Tributário em determinada jurisdição e os transforma em porta-vozes de supostos princípios que são apresentados como se refletissem pautas axiológicas inerentes ao Direito Internacional Tributário.

Um aspecto importante das convenções tributárias é que as mesmas servem à distribuição de poder tributário aos países signatários. Este aspecto faz com que tais tratados se tornem um instrumento de concorrência fiscal legítima, na medida em que o predomínio de cada país durante sua negociação poderá refletir na maior ou menor extensão de seu poder tributário nas relações comerciais bilaterais.

Há muito se fala que, regra geral, quanto mais desproporcional for o desenvolvimento econômico entre os países signatários de um tratado tributário, a adoção de um critério de fonte reservará maior poder tributário ao país em desenvolvimento, enquanto que a adoção de um critério de residência garantirá maior fatia do bolo fiscal para o país desenvolvido.

Exatamente por tal razão que o Modelo OCDE estabelece o critério de residência como principal pauta para a repartição do poder tributário entre os países signatários. Nas relações entre países com níveis aproximados de desenvolvimento, a adoção de tal critério não deveria gerar maiores distorções. Contudo, como mencionado acima, nos casos de relações entre países desenvolvidos (ativos exportadores de capital, embora também sejam importadores de capital) e em desenvolvimento (majoritariamente importadores de capital[1]), a adoção do critério da residência mostra-se anti-isonômico e distorce a balança da distribuição das receitas tributárias.

Uma das principais regras do Modelo OCDE que concretiza a máxima da tributação na residência é aquela prevista em seu artigo 7, segundo a qual “os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade desse modo, os lucros que forem imputáveis a esse estabelecimento permanente conforme as regras do parágrafo 2 poderão ser tributados naquele outro Estado”.

Para compreendermos a importância atribuída a este artigo pela OCDE, vale a pena transcrever a seguir um trecho dos Comentários da própria OCDE ao artigo 7 de seu modelo:

“Este Artigo aloca poder tributário com respeito aos lucros das empresas de um Estado Contratante, desde que tais lucros não estejam sujeitos a regras diferentes previstas em outros Artigos da Convenção. Ele incorpora o princípio básico de que, a não ser que a empresa de um Estado Contratante tenha um estabelecimento permanente situado no outro Estado, os lucros daquela empresa não podem ser tributados neste país, salvo o caso de tais lucros caírem em alguma categoria especial de rendimento para a qual outros Artigos da Convenção concedam poder tributário àquele outro Estado”.[2] 

Fala-se no “princípio básico” do estabelecimento permanente como se, de fato, se tratasse de um critério absoluto e universal de alocação de poder tributário, e não de um modelo que protege certos interesses dos países desenvolvidos.

Não há como questionar, e este certamente não é nosso propósito neste texto, que o “princípio” do estabelecimento permanente é um critério válido e coerente para a distribuição de poder tributário entre países signatários de uma convenção sobre a tributação da renda e do capital. Contudo, parece-nos que ele não é nada além disso. Um critério razoável. E não um princípio fundamental de Direito Internacional Tributário.

Veja-se que ao se afirmar que o tal “princípio” é norma fundante da tributação internacional se pretende afastar a possibilidade de sua ponderação contra outros critérios também legitimamente válidos e coerentes de tributação dos lucros das empresas, como seria a tributação, exclusiva ou concorrente, de tais rendimentos pelo país de fonte, bandeira que sempre foi levantada pelos países em desenvolvimento, especialmente os latino-americanos.

Portanto, o tão falado “princípio” do estabelecimento permanente não é mais do que um critério de alocação de poder tributário. Por uma questão histórica, principalmente de exercício de poder político pelos países desenvolvidos, acabou se cristalizando na redação do artigo 7 do Modelo OCDE. Contudo, mesmo assim, não passa de um critério de alocação de poder tributário que prevaleceu no curso do desenvolvimento da tributação internacional. Não se trata de nenhum “princípio” com carga axiológica que oriente o Direito Internacional Tributário.

A tentativa de países de buscarem impor suas políticas fiscais através da monopolização de organizações internacionais não é surpreendente. É traço comum na história da humanidade. Nota-se, ainda, outro traço facilmente identificável e que tampouco é surpreendente, ao qual podemos nos referir como imperialismo teórico.

Com efeito, com o acentuado crescimento que teve o Direito Internacional Tributário nos últimos anos, verificamos a cada vez maior atenção de pesquisadores brasileiros aos trabalhos desenvolvidos no exterior. Vários estudantes e pesquisadores estão fazendo cursos no exterior e trazendo para o Brasil a bagagem de sua experiência internacional.

Este intercâmbio é extremamente positivo para o desenvolvimento de uma doutrina nacional. Contudo, para tanto é importante que essa “importação” de pesquisas e doutrinas estrangeiras seja feita de forma crítica, sem que haja uma absorção ou uma cooptação da doutrina nacional pela estrangeira, sem espaço para que aquela reflita o fenômeno da tributação internacional a partir de seu próprio contexto.

É importante frisar uma vez mais que não estamos negando, de modo algum, a importantíssima contribuição que a doutrina estrangeira tem a dar para a formação da doutrina nacional, nem estamos defendendo a criação de um Direito Internacional Tributário Tropical, criado exclusivamente a partir de referências nacionais. Apenas estamos destacando que a transposição de posições doutrinárias estrangeiras não pode ser feita sem uma análise crítica de seus pontos de partida. Senão, vejamos.

No dia 1º de junho de 2012 foi publicada a decisão proferida pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial 1.161.467. Trata-se do primeiro caso julgado pelo STJ a respeito da aplicação das convenções sobre a tributação da renda e do capital, em especial seu artigo 7, nos casos de prestação de serviços sem transferência de tecnologia por não residente no Brasil. A questão tangencia exatamente o “princípio” do estabelecimento permanente, antes mencionado.

Já escrevemos mais de uma vez sobre o tema [3], sendo que não nos cabe, neste texto, retomar toda a discussão a respeito do assunto. A controvérsia que chegou ao Poder Judiciário refere-se exatamente à competência exclusiva do país de residência para tributar os “Lucros das Empresas”, salvo os casos em que a empresa atua no país de fonte através de um estabelecimento permanente.

Repetiremos, aqui, a conclusão que apresentamos em outro estudo sobre a matéria[4], no sentido de que, considerando que o Brasil incorporou, em suas convenções, o artigo 7 do Modelo OCDE, aceitou a introdução, em seu sistema convencional, do tal “princípio” do estabelecimento permanente. Dessa forma, não deveriam as autoridades fiscais brasileiras buscar, pela via hermenêutica, alcançar tributação não prevista na convenção internacional, sob pena de sua violação. Portanto, acreditamos que andou bem o STJ ao afastar a pretensão fazendária nos autos do aludido recurso especial.

Agora, afirmarmos que, considerando a redação das convenções tributárias brasileiras em vigor, mostrou-se correta a decisão do STJ, não equivale a afirmar que estaria errado o Brasil em tentar buscar a tributação de tais rendimentos na fonte. Pelo contrário. Notando-se a evolução dos elementos de conexão e a busca dos Estados por receitas tributárias, é natural que o Brasil defenda seu direito de tributar rendimentos correspondentes a decréscimos patrimoniais ocorridos no território nacional, relacionados à exploração do mercado brasileiro[5].

Na verdade, um dos grandes atrativos do mercado global atual é exatamente a existência de um mercado consumidor com poder aquisitivo, razão pela qual diversas empresas da “velha economia” vêm ao Brasil realizar negócios e auferir rendimentos que não seriam realizáveis em suas economias com mercados consumidores saturados.

Ora, é evidente, portanto, que há uma justificativa razoável, um elemento de conexão entre o rendimento auferido pelo não residente e o Brasil, a viabilizar a pretensão tributária deste último. Contudo, tal pretensão tributária tem que ser estabelecida pelo veículo legítimo, mediante a previsão de regra no tratado internacional que estabeleça a tributação de fonte no caso dos lucros das empresas.

Voltamos aqui ao que falamos antes. Considerando os tratados celebrados pelo Brasil, com a redação que eles possuem, não é legítima a pretensão da Fazenda Nacional de fazer incidir o Imposto de Renda Retido na Fonte sobre a contraprestação de serviços técnicos sem transferência de tecnologia prestados por não residentes, por exemplo. Nada obstante, talvez fosse o caso de uma revisão da política de celebração de tratados brasileira, seja para prever a tributação na fonte dos lucros das empresas (o que não seria uma negociação fácil) ou, ao menos, para incluir regra nos moldes do artigo 5 (3) b (estabelecimento permanente de serviços) em seus tratados, como temos no tratado celebrado com a China, por exemplo.


[1] Fala-se atualmente, especificamente em relação a países como os BRICS, que esta distinção teria perdido a aplicabilidade. Parece-nos, contudo, haver um grave erro de avaliação. Mesmo nesses casos, que, diga-se, são as exceções e não a regra no contexto dos países em desenvolvimento, não se pode dizer que há uma paridade entre a importação e a exportação de capitais. É só pegarmos o exemplo do Brasil, que possui um conjunto ainda bastante incipiente de multinacionais. Além disso, quando consideramos outras nações, como a grande maioria dos países africanos, a dicotomia importador-exportador de capitais se torna ainda mais clara.

[2] OECD. Model Tax Convention on Income and on Capital. Paris: OECD, 2010. p. 130.

[3] Ver: UCKMAR, Victor; GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André et al. Manual de Direito Tributário Internacional. São Paulo: Dialética, 2012. p. 349-354; ROCHA, Sergio André, Tratados contra a Bitributação da Renda, 2008, p. 191-199. Para uma análise detalhada do tema, ver: XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 563-571.

[4] Ver: ROCHA, Sergio André. Caso Copesul: Tributação pelo IRRF da Prestação de Serviços sem Transferência de Tecnologia Prestados por Não Residentes. In: CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e (coord.). Tributação Internacional: analise de casos: Vol. 2. São Paulo: MP Editora, 2013 (no prelo).

[5] Sobre o tema da evolução dos elementos de conexão, ver: UCKMAR, Victor; GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André et al, Manual de Direito Tributário Internacional, 2012, p. 285-286.

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