Processo Novo

Advogados têm direito a trabalhar com dignidade

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

2 de setembro de 2013, 8h00

Spacca
Quem se põe a discutir as teorias que reinam sobre a natureza do processo, logo se depara com aquelas, digamos, “tradicionais”: o processo, para muitos, é relação jurídica angular, triangular etc. Não considero errados tais pontos de vista. Penso, contudo, que esses são modos simplistas de ver o fenômeno, que não o esgotam.

Não pode o processo ser considerado uma relação jurídica simples, simétrica e unidirecional, capaz de representar, more geometrico, os papéis que desempenham os sujeitos que a compõem. O processo é relação jurídica complexa, dinâmica, bidirecional e circular, em que o comportamento de cada um dos sujeitos afeta e é afetado pelo comportamento dos outros etc. Para a definição de processo interessa notar não apenas a relação existente entre os sujeitos, mas, também, a relação existente entre os atributos de tais sujeitos, e o modo como os sujeitos os exercem, no processo. Estas relações (entre os sujeitos e entre os atributos) dão coesão a este sistema, que é o processo.1

O processo é um sistema integrado pelos sujeitos processuais e por seus atributos, em que interagem tais sujeitos.2 Poderíamos sintetizar essa concepção com a seguinte fórmula: processo é sistema interacional.

Essa concepção não contraria aquelas outras, a que me referi acima, mas as supera.3 Chama a atenção para o fato de que, no processo, relacionam-se sujeitos concretos. Permitam-me insistir nesse ponto: no processo canalizam-se os anseios de entes que integram a sociedade, e tais entes manifestam no processo sua condição humana, social, econômica etc. Como o processo se desenvolve através da interação entre as partes e o juiz,4 isso é, através da comunicação que deve se dar entre as partes e o órgão jurisdicional, é imprescindível que tais sujeitos encontrem-se em condições de compreender e de serem compreendidos, e o primeiro passo para que isso ocorra é a percepção de que os sujeitos que compõem a relação jurídica não são abstratos, mas sujeitos concretos.5

Nesse contexto, a importância do papel desenvolvido pelo advogado assume contornos ainda mais relevantes que o de mero “representante” das partes.

Não se pode considerar “Democrático de Direito” (artigo 1.º, caput, da Constituição) o Estado, se não permitir às partes participarem incisivamente do processo. A materialização desse direito ficaria irremediavelmente prejudicada e a prestação jurisdicional não seria condizente com as garantias mínimas do processo, decorrentes do devido processo legal, caso as partes não fossem representadas por alguém habilitado tecnicamente.6

Coerentemente com esta ordem de ideias, dispõe a Constituição que “o advogado é indispensável à administração da justiça” (art. 133), e o parágrafo 2º do artigo 2º da Lei 8.906/1994 estabelece que, “no processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público”.

A ausência de representação por advogado tornaria evidentemente mais débil a defesa dos interesses da parte, o que prejudicaria a concretização da aspiração constitucional, consistente em tornar o processo um espaço efetivamente democrático, não apenas na forma, mas também na substância.7

Por essas e outras razões, tenho insistido, em vários espaços, que o advogado não deve se envergonhar de suas prerrogativas, nem se acanhar em exercitá-las. Nos textos publicados nesta coluna até aqui, tenho chamado a atenção para a complexidade que nos cerca: tem-se, de um lado, um ambiente normativo cada vez mais complicado, que deverá ser aplicado a situações materiais as mais diversas, em um País em que cresce a carência por uma tutela jurisdicional eficiente; de outro lado, tem-se a insistente prática da “jurisprudência defensiva”.

Nesse ambiente, compreende-se que o desrespeito às prerrogativas do advogado significa a afronta direta aos direitos e liberdades assegurados ao cidadão pelo texto constitucional. Como decidiu o STF em julgado antes referido, “qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos”.

Sei que muitos não veem o trabalho desenvolvido pelo advogado desse modo. Infelizmente. Mas tenho confiança em que isso deve mudar. Evidentemente, sempre houve, e sempre haverá, aqueles que têm interesse em uma advocacia cada vez mais frágil. Por essas e outras razões, sei que o texto desta semana atrairá críticas. Mas a luta contra essa prática odiosa é dever não apenas da OAB ou dos advogados, mas de todos aqueles que têm interesse no desenvolvimento e aprimoramento do Estado Democrático.

Faz-se necessário, sob esse prisma, que sejam dadas aos advogados condições dignas de exercer o seu trabalho. Note-se bem: o advogado tem dever de exercitar suas prerrogativas, sob pena de, não o fazendo, prejudicar não apenas a si próprio e à advocacia como um todo, mas também àquele que o constituiu seu defensor. É evidente que, quando se falha não apenas na proteção do advogado como profissional, mas também como ser humano, fragiliza-se não apenas a advocacia, mas também a proteção daqueles a quem os advogados devem defender.

Considero salutar, nesse sentido, o intento do legislador ao prever, no projeto de novo CPC, que “os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial” (artigo 82, § 14, da versão que será levada à votação no Plenário da Câmara dos Deputados). Algo importante, também, é a disposição que prevê percentuais mínimos a serem observados, nas causas em que a Fazenda Pública for parte (artigo 82, § 3.º do Projeto). Há outras inovações no projeto, igualmente importantes, relativas aos honorários advocatícios.

Em relação ao dia a dia do trabalho do advogado, há duas regras, inseridas no anteprojeto de novo CPC e mantidas tanto na versão aprovada pelo Senado quanto na que será levada à discussão no Plenário da Câmara, que, a meu ver, merecem destaque. Considero-as importantes, porque vêm em socorro especialmente dos advogados que laboram sozinhos, ou daqueles que constituíram pequenas sociedades:

A primeira delas é que prevê a suspensão dos prazos processuais entre os dias 20 de dezembro e 20 de janeiro.8

Para alguns, o prazo de suspensão deveria ser menor (de 20 de dezembro a 10 de janeiro). Penso, contudo, que qualquer que seja a solução adotada pelo novo Código, será a mesma salutar, e resolverá o problema que, todos os anos, têm acontecido: os advogados ficam sem saber qual será sua sorte, em relação ao que fazer durante as festas de fim de ano e ao período de férias de seus filhos, até que, por decisão do Tribunal de Justiça do Estado em que atuam – tomada, não raro, após insistente apelo da OAB –, se delibere no sentido da suspensão dos prazos processuais…

Tenho especial apreço, ainda, por outra disposição, que estabelece que “na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os úteis” (artigo 219 do projeto que será levado a votação).

Há muitos prazos curtos, de cinco dias, previstos na legislação processual – e isso se repete, no projeto do novo CPC. Não raro – eu me arriscaria a dizer que essa é uma prática frequente –, as intimações são publicadas às quintas-feiras, e os prazos têm início às sextas-feiras. Com isso, à luz do Código em vigor (artigo 178), os prazos correm inclusive no final de semana (e, às vezes, para azar do advogado, também em feriados “prolongados”).

Evidentemente, não faltam vozes para criticar tais soluções.

Afirma-se, por exemplo, que, com isso, a tramitação dos feitos durará ainda mais tempo. Essa crítica, a meu ver, carece de razão. Como todos sabem, os processos judiciais demoram tanto tempo em razão dos denominados “tempos mortos”, em que, embora não haja prazo próprio em curso, ficam os autos aguardando alguma providência na burocracia estatal judiciária.

Esse é um problema que se resolve com o melhor aprimoramento do Poder Judiciário (por exemplo, com mais juízes, melhor distribuídos dentro da estrutura judiciária, o que implica na necessidade de melhor gestão, de se escolher com cuidado os pontos que merecem maior investimento etc.). Definitivamente, não é o fato de os prazos não correrem em alguns dias que compreendem as festas de fim de ano, ou correrem apenas em dias úteis, que farão com que o processo dure mais tempo.

Claro que, como antecipei acima, não faltarão manifestações contrárias a esse modo de pensar. Mas, por tudo o que antes se disse, não considero que exista outro modo de se compreender o exercício da advocacia, no Estado Democrático de Direito.

Até a próxima semana!


1 Procuro desenvolver essas ideias, com mais vagar, na obra CPC Código de Processo Civil comentado, 2. ed., comentários ao art. 3.º

2 Sobre a ideia de sistema, aqui apenas referida, cf. Paul Watzlawick et al, Pragmática da comunicação humana, p. 109.

4 Sobre a crise do conceito de relação processual, cf., dentre outros, Aroldo Plínio Gonçalves, Técnica processual e teoria do processo, p. 97; Giovanni Arieta et al, Corso base di diritto processuale civile, 3. ed., p. 90.

4 Tratando o processo como estrutura dialética, cf. Elio Fazzalari, Istituzioni di diritto processuale, 7. ed., p. 83.

5 Sobre a importância da conscientização recíproca dos interlocutores de uma relação, cf. Enrique Dussel, Ética da libertação, p. 437 e ss.

6 Sobre o papel do advogado, à luz da Constituição brasileira, escrevi na obra CF Constituição Federal comentada, 2. ed., comentário ao art. 133.

7 Nesse sentido, decidiu o STJ que “o direito de acesso à justiça compreende, entre outros, o direito daquele que está em juízo poder influir no convencimento do magistrado, participando adequadamente do processo. Nessa dimensão, assume especial relevância a função do advogado no processo como fator de concretização do acesso à justiça, na medida em que, utilizando os seus conhecimentos jurídicos, otimiza a participação do seu cliente no processo de convencimento do magistrado” (STJ, REsp 1027797/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 17.02.2011).

8 “Art. 220. Suspende-se o curso do prazo processual nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, inclusive. § 1º Ressalvadas as férias individuais e os feriados instituídos por lei, os juízes, os membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública, e os auxiliares da Justiça exercerão suas atribuições durante o período previsto no caput. § 2º Durante a suspensão do prazo, não serão realizadas audiências e julgamentos por órgão colegiado.”

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