Segunda Leitura

Caso do senador boliviano merece análise jurídica

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

1 de setembro de 2013, 8h00

Spacca
O caso é de todos conhecido. Dia 23 de agosto o senador Roger Pinto Molina, da Bolívia, hóspede da Embaixada do Brasil em La Paz, onde pediu abrigo, foi transportado da capital boliviana para Corumbá (MS), por ordem e junto com o ministro-conselheiro Eduardo Saboia, que exercia as funções de encarregado de negócios. A viagem durou 22 horas em veículo oficial brasileiro, acompanhado de outro automóvel da Embaixada e sob a escolta de dois fuzileiros navais.

A inusitada iniciativa do diplomata brasileiro foi, por ele justificada, pelo fato de o senador encontrar-se há 452 dias exilado na Embaixada, vivendo em um pequeno quarto, adoentado e ameaçando cometer suicídio.

Em entrevista, o ministro Saboia afirmou ter agido em defesa das regras mínimas de proteção à dignidade humana. Esta não foi, contudo, a posição do governo brasileiro, que viu no ato uma quebra de hierarquia que pôs em risco a segurança do exilado, visto que algo poderia ter-lhe acontecido no trajeto.

A longa permanência do senador na Embaixada brasileira foi motivada pela inexistência de concessão de salvo-conduto por parte do governo da Bolívia, concluindo o pedido de asilo político que o Brasil já lhe havia dado.

A fuga rocambolesca originou incidente diplomático entre os dois países e inflamados discursos. Como consequência imediata, o embaixador Antonio Patriota foi destituído do cargo de ministro das Relações Exteriores. Para Saboia, ficou a promessa implícita de rigoroso processo administrativo, cujo final, por certo, não será um happy end, mas possivelmente a sua demissão a bem do serviço público.

A atitude do ministro Eduardo Saboia surpreendeu pela altivez. Com efeito, em tempos em que a maioria prefere exercer sua função administrativa ou política sem assumir risco de espécie alguma, o encarregado de negócios enfrentou o perigo de frente. Certamente pesou bem as consequências de seu ato e o risco de perda do cargo. Não é pouca coisa para alguém com 45 anos de idade e que teria que reinventar-se em uma nova profissão, com todas as dificuldades existentes no mercado. Sempre é bom constatar que ainda existem os que se arriscam por uma causa e não se escondem na rotina da burocracia.

Feito este registro, passo à análise dos fatos sob a ótica jurídica, abstraídas as paixões políticas que o caso suscita. Quais são os possíveis reflexos jurídicos imediatos e futuros?

O asilo político é individual e beneficia aqueles que, por razões religiosas, raciais ou políticas, estão sendo perseguidos em seus Estados. Nada tem a ver com ondas migratórias, como os refugiados do Haiti que migram para o Brasil em busca de sobrevivência, vítimas de graves problemas econômicos no seu país de origem.

O asilo político fundamenta-se na “Convenção sobre Asilo Diplomático”, celebrada pelos membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Caracas, em 28 de março de 1954 e promulgada no Brasil pelo Decreto 42.628, de 13 de novembro de 1957. Referida Convenção estabelece que:

Artigo XII. Concedido o asilo, o Estado asilante pode pedir a saída do asilado para território estrangeiro, sendo o Estado territorial obrigado a conceder imediatamente, salvo caso de força maior, as garantias necessárias a que se refere o Artigo V e o correspondente salvo-conduto.

Portanto, em princípio, a obrigação da Bolívia era de conceder o salvo-conduto. Todavia, ele vinha sendo adiado. Segundo o asilado, que faz oposição ao partido da situação, por motivos políticos. De acordo com o governo boliviano, porque o senador responde a diversas ações penais na Justiça local. Mas a tradição na diplomacia é a concessão de salvo-condutos e, obviamente, sempre quem pede asilo responde a algum tipo de ação penal.

O segundo fato a merecer referência é o relacionado com a atitude do ministro-conselheiro Eduardo Saboia. Do ponto de vista administrativo, o regime disciplinar está previsto no artigo 25 da Lei 11.440, de 29 de dezembro de 2006, no qual se menciona o princípio da obediência à hierarquia e disciplina.

Abram-se aqui parênteses para a análise da invocação de quebra da hierarquia. Não existe conceito mais mudado nos últimos anos do que a hierarquia. A democratização e os novos tempos tornaram-na mais horizontal. Impossível aceitar-se hoje a lição de J. G. Menegale em obra de 1957, quando afirmava que “a relação de subordinação, em que se encontram os órgãos com referência aos superiores, a de supremacia dos superiores com referência aos inferiores, é a hierarquia (Direito Administrativo e Ciência da Administração, Borsoi, p. 112).

O ministro Saboia, todavia, invocou a obediência a direitos humanos para sustentar sua atitude. Neste quadro, há que se perguntar se ele estava vinculado à norma administrativa ou à Constituição Federal do Brasil (lembre-se, a Embaixada é território brasileiro) que, no artigo 4º, inciso II, manda que nas relações internacionais haja prevalência dos direitos humanos.

No âmbito infraconstitucional, o Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, no artigo 116, inciso III, determina que sejam obedecidas as normas legais e regulamentares. Um tipo administrativo aberto, vago, que exigiria análise detida de todas as normas que precederam o fato e a intenção do agente em desobedecê-las.

Mas, incurso neste ou naquele dispositivo, não é difícil imaginar o desfecho do processo administrativo. Tudo aponta, hoje, para a demissão. Se isto ocorrer, provavelmente no dia seguinte o ministro-conselheiro ingressará com uma ação judicial e pedirá antecipação da tutela para permanecer no cargo até a decisão final. A flagrante preocupação dos operadores jurídicos com a defesa dos direitos humanos indica grande possibilidade de sucesso.

Ainda no âmbito administrativo, possivelmente não serão esquecidos os fuzileiros navais que deram cobertura à operação e quem autorizou suas saídas. Provavelmente, aguarda-os uma Comissão Processante. Estão, todavia, em situação mais cômoda, pois terão como escudo a obediência à ordem legal. E trarão de sobra o testemunho das circunstâncias em que vivia o asilado no interior da embaixada.

O ato administrativo que retirou o embaixador Antonio Patriota do cargo de ministro das Relações Exteriores não terá reflexos jurídicos, muito embora seja discutível sua validade diante do artigo 37 da Constituição, que consagra o princípio da impessoalidade. À toda evidência, este diplomata nada teve a ver com a saída do senador boliviano. De qualquer forma, dele não virá qualquer inconformismo, até porque assumiu a posição de embaixador do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York.

Em seguida, vejamos o futuro do parlamentar boliviano. Com certeza seu Estado pedirá sua extradição ao Brasil. O pedido terá que passar pelo Ministério da Justiça, onde será examinado, ou melhor, reexaminado pelo Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça. Não será fácil justificar a revogação do asilo concedido ao senador Roger Pinto Molina. Afinal, em 2009 o Ministério da Justiça concedeu asilo político a Cesare Battisti, italiano condenado por atos de terrorismo e pela prática de quatro homicídios entre 1977 e 1979. Como o boliviano sequer tem sentença condenatória transitada em julgado, presume-se dificuldades de embasamento na posição administrativa do ministério. O princípio da isonomia é acatado em nossa Constituição.

Porém, supondo-se que na esfera administrativa o asilo já concedido venha a ser revogado, restará o recurso ao Supremo Tribunal Federal. Nossa Corte máxima, todavia, no caso Battisti, decidiu pela manutenção do asilo concedido.

Em suma, o caso do senador Molina ainda suscitará muitas manifestações e terá vários desmembramentos com reflexos jurídicos, além dos políticos. Independentemente dos resultados, já entrou na história como um ato de coragem e audácia de um representante diplomático no exterior que, diante de um problema real, arriscou não só a sua carreira, como a própria vida, no longo trajeto.

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