Embargos Culturais

Conheça o pensamento de José Bonifácio (parte 1)

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

1 de setembro de 2013, 8h01

José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1763. Seu pai era comerciante, a segunda maior fortuna da cidade. O patriarca da independência do Brasil seguiu ainda novo para Portugal e em Coimbra estudou Direito, Filosofia e Matemática. Foi da Academia de Ciências de Lisboa. Bonifácio mantinha relações culturais e de amizade com renomados sábios[1]. É de um contemporâneo, Eunápio Deiró, interessante e laudatório traço biográfico:

(…) vemos Jose Bonifácio como mentor do duque de Bragança, ser um dos principais autores do movimento e exercer pujante influência no coração do príncipe; ensiná-lo, dirigi-lo, educá-lo na tarefa árdua do governo do Estado; incutindo-lhe no cérebro ideias, dando-lhe o exemplo do método de administrar, amestrando-o no jogo dos negócios; preparando-o a vencer e suplantar as exigências dos patriotas, preconizando e convertendo o arbítrio do absolutismo patriarcal em ciência de governar, usando de hórridas devassas como expressão ou afirmação das liberdades dos cidadãos – de repente, no mês de julho, ser expulso do ministério e logo brandir o Tamoio, como se fora arma de combate, contr5a o Defensor Perpétuo e seu governo, que pelo decreto de 12 de novembro, dissolve a Câmara, mete num cárcere o patriarca da Independência, o seu sábio mestre e desvelado mentor![2]

E é o mesmo autor quem nos deixou não menos romântica passagem que apreende a época e seus personagens, com tintas românticas:

José Bonifácio e Pedro I (na realidade crua e inegável) não são os personagens glorificados pela lenda e pelo entusiasmo. A lenda desvirtua e falseia a verdade histórica, convertendo o ministro em patriarca, atribuindo-lhe a iniciativa da independência, apregoando-o criador dela. O entusiasmo popular elevou o príncipe como Defensor Perpétuo, autor a emancipação e fundador do império. O príncipe e o ministro – ambos – fizeram relevantíssimos serviços à causa nacional; deram-lhe forma; bem ou malo, organizaram-na. O que não foi de pouca monta; pode-se dizer um sopro de vida, que a avigorou nimiamente… A Independência, porém, não é obra da iniciativa exclusiva de nenhum deles. A nação inteira instintivamente a queria, e, antes deles, reclamando-a, a iniciativa. Eis aí por que não há um só homem que se erga e possa dizer – eu a iniciei, eu a fiz. Nem Garibaldi, na Itália, o devia dizer; ele a achou na herança, qual o mais doloroso legado das gerações extintas. As cortes de Lisboa concorreram também para o fato glorioso, provocando brios, açulando ódios, pretendendo recolonizar as terras de Santa Cruz. Nenhum brasileiro, à vista do tentâmen hostil das cortes, hesitou em tomar parte da luta em prol de uma ideia que borbulhava em todas as consciências. Entretanto, alguns escritores, entre nós, inspirando-se na lenda, afirmam que Jose Bonifácio é o patriarca, porque só dele partiu a iniciativa da Independência. Escrevem o9s feitos históricos, segundo a escola que somente reconhece as grandes individualidades, como se vê na teoria do filósofo mais eloquente do século XIX[3].

O santista estudou Mineralogia e Química em Paris. Visitou a Áustria, Alemanha e Itália, morou na Suécia e na Dinamarca. Retornou para o Brasil em 1819, iniciou sua carreira política em 1821 como presidente da junta provisória da província de São Paulo. Bonifácio notabilizou-se, de início, como um “cientista na burocracia portuguesa”. Segundo uma biógrafa recente, “suas preocupações, típicas dos pensadores ilustrados, nunca se restringiam às questões econômicas, mas contemplavam o desenvolvimento social, e este, por sua vez, vinha acompanhado de uma espécie de projeto civilizador”[4].

Privou com D. Pedro I, que o nomeou ministro do Reino e dos Estrangeiros. Elaborou projeto para Constituição, desentendeu-se com D. Pedro I, voltou para a Europa, retornando para o Brasil somente em 1829. Inesperadamente, foi indicado tutor de D. Pedro II em 1831, sendo destituído no ano seguinte. José Bonifácio morreu em 1838[5].

A relação inicial de Bonifácio com D. Pedro I é pintada de um modo apologético na percepção de um biógrafo:

Mas ao moço e ao velho aproximavam alguns traços comuns. José Bonifácio, com sessenta anos, era alegre, brincalhão, zombeteiro, sem nada dessa falsa gravidade ou compostura de que se revestem geralmente os homens de sua idade. Nele havia, e houve sempre, um certo feitio de espírito característico do século XVIII. Grande falador, grande conversador, discursava com franqueza, sem a preocupação de filtrar as palavras, de evitar as menos polidas e por isso mesmo muitas vezes as mais adequadas, mais exatas, mais pitorescas. De cabelos brancos, a significarem convencionalmente circunspecção e serenidade, era apaixonado, irreverente, capaz de indignar-se, de exaltar-se e de tronar-se parcial, maldizente, agressivo. O príncipe e o ministro eram bravos, suscetíveis de fogachos e entusiasmos, impetuosos e ardentes. Mocidade havia de sobra em José Bonifácio e da melhor, da que os anos não conseguem ressecar[6].

O pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva reflete as novas gerações que se formaram em Coimbra em 1772[7]. Os estudos de Direito naquela faculdade foram reformados em 1770, com muita ênfase em programas de Direito Natural[8]. Prenhe de um pensamento dotado da certeza da existência de direitos naturais e alienáveis, a época esperava do Estado a salvaguarda de direitos individuais e originários[9]. Jusnaturalismo, individualismo e liberalismo formam o encapsulamento conceitual do pensamento jurídico de José Bonifácio de Andrada e Silva. Acrescentaria a observação de que

José Bonifácio de Andrada e Silva é a figura central numa formulação que o Brasil teria de si mesmo como Nação. Este termo designa algo que vai muito além daquilo que define um país: uma população num determinado território, com governo próprio. Certamente, José Bonifácio teve um papel muito importante no momento-chave da constituição do país: quando o Brasil se implantou, com um governo independente e a soberania sobre o território, ele era o homem mais importante na obra de instaurar as formas de exercício de autoridade. Por esta sua ação na construção do país, comandando o reconhecimento da autoridade do governo do território, acabou sendo considerado o Patriarca da Independência. Esta qualificação enfatiza seu papel de estadista, levando a imaginar a atuação política como o centro de sua obra[10] .

Em 1823 José Bonifácio de Andrada e Silva representou contra a escravidão, junto a nossa primeira Assembleia Nacional Constituinte. Concebeu projeto de lei com vistas a abolir o comércio de escravos, a garantir o direito de o escravo comprar a própria manumissão, de manter-se na companhia da família.

Avançando modernas discussões em torno do trabalho infantil, José Bonifácio fez constar de projeto que encaminhou que “antes da idade de doze anos não deverão os escravos ser empregados em trabalhos insalubres e demasiados”[11]. Na mesma época, “a maçonaria, multiplicando suas lojas, infiltrando-se em toda parte, propaga o iluminismo e o cristianismo liberal”[12]. Essa contradição precisava ser enfrentada.

O santista insistia na necessidade de se abolir o tráfico de escravos, de melhorar a sorte dos cativos e de promover sua progressiva emancipação. Para ele, o tráfico era um atentado manifesto contra as leis eternas da Justiça e da religião[13]. Temia ser acusado de pregar contra a propriedade ao defender o fim do trabalho escravo[14].

No entanto, ainda para ele, a propriedade fora sancionada para o bem de todos. O escravo não poderia deixar de ser pessoa e tornar-se coisa. Ele observava que se queria defender o direito de força, e não o de propriedade, o que de certa forma inusitado em seu tempo. Assim, se a lei deve proteger a propriedade, deveria, com mais razão, manter a liberdade pessoal dos homens, enquanto seres humanos. A escravidão era um crime contra o direito natural e contra as leis do Evangelho[15].

Intérprete do jusnaturalismo oitocentista, José Bonifácio denunciou a ignomínia da escravidão, refletindo modo de pensar de época, que exerceu, aliás, influência entre os Nabuco, pai e filho[16]. Para José Bonifácio a escravidão era repelida pelo direito natural. Ainda, com certo enfoque em princípios de eficiência, o escravo não era produtivo. De tal modo, “causa raiva, ou riso, ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas muares”[17].

Para José Bonifácio, por outro lado, o que nos horroriza hoje em dia, os índios eram “preguiçosos, dorminhocos, pesados e voluptosos”[18]. Assim, “indolentes, detestam o trabalho”[19]. Visão oposta, então, do Frei Bartolomeu de Las Casas, que lhe é cronologicamente anterior, porém para quem os índios eram “mui humildes, mui pacientes, mui pacíficos e amantes da paz, sem contendas, sem perturbações, sem querelas, sem questões”[20]. Ou ainda uma posição pouco realista, dada a afirmação do Padre Antônio Vieira, para quem, mal tratados, os índios tinham medo dos brancos[21].

Patriarca independência do Brasil, José Bonifácio cogitava de índios catequizados, porém inventariava uma série de dificuldades, injuriando o nativo e anotando diatribes como o “índio bravo, sem bens e sem dinheiro, nada tem que calcular, e todas as idéias abstratas de quantidade e número, sem as quais a razão do homem pouco difere do instinto dos brutos, lhe são desconhecidas”[22].

Por outro lado, José Bonifácio invocava uma isonomia de cunho liberal que lentamente excluía o índio de seus contornos. Ele escreveu que “o Brasil é uma terra de igualdade. Igualdade no exercício dos direitos, igualdade nas pretensões legais, igualdade perante a justiça, igualdade nos impostos, igualdade no modo de adquirir, possuir e transmitir a propriedade. Não há, pois, interesses e privilégios de indivíduos e de classes”[23]. Neste sentido, o ideário de José Bonifácio parece contraditório.

A isonomia excluiria o índio e então não seria isonomia. E assim o índio deveria ser isolado, com que o José Bonifácio não concordava ao defender a catequização. Ou deveria ser emancipado, o que conflitaria com o seu pensamento, de algum modo paternalista e protetor putativo dos aborígenes.

Egresso da província de São Paulo, na qual se falava uma língua geral[24], que misturava português e rudimentos de línguas nativas[25], onde o índio era mais expressivo do que o africano, José Bonifácio não conseguiu equacionar o jusnaturalismo com os preconceitos que seu pensamento revelava. Sua pretensa isonomia caracteriza uma equidade inútil.


[1] CALÓGERAS, Pandiá, Formação Histórica do Brasil, São Paulo: Editora Nacional, 1980, p. 84.
[2] DEIRÓ, Eunápio, cit., p. 21.
[3] DEIRÓ, Eunápio, cit., p. 41.
[4] DOLHNIKOFF, Miriam, José Bonifácio, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 51.
[5] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, Projetos para o Brasil, p. 37.
[6] SOUSA, Octávio Tarquínio, José Bonifácio, Belo Horizonte: Itatiaia e São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 142.
[7] PAIM, Antônio, cit., p. 223.
[8] GOMES DA SILVA, Nino J. Espinosa, História do Direito Português, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 365.
[9] COSTA, Mário Júlio de Almeida, História do Direito Português, p. 389.
[10] CALDEIRA, Jorge, José Bonifácio de Andrada e Silva, São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 9.
[11] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, op.cit., p. 71.
[12] MERCHIOR, José Guilherme, De Anchieta a Euclides, Breve História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 43.
[13] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, op.cit., p. 51.
[14] A relação entre o conceito de propriedade e a escravidão, no sentido de que a abolição da escravidão poderia ter ensejado ações de indenização, por parte dos proprietários de escravos, contra o Estado, é suposta razão pela qual Rui Barbosa teria ordenado a queima de todos os arquivos e registros brasileiros que tratavam da escravidão. A matéria, especialmente sob um ângulo da defesa de Rui Barbosa, é tratada por Américo Jacobina Lacombe, Eduardo Silva e Francisco de Assis Barbosa, em Rui e a Queima dos Arquivos, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.
[15] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, op.cit., p. 60.
[16] NABUCO, Joaquim, Um Estadista do Império, p. 35.
[17] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, op.cit., p. 57.
[18] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, op.cit., p. 133.
[19] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, op.cit., p. 144.
[20] LAS CASAS, Bartolomeu de, Brevíssima Relação da Destruição das Índias, p. 24.
[21] VIEIRA, Antônio, Escritos Instrumentais sobre os Índios, p. 20.
[22] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, op.cit., p. 93.
[23] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio, op.cit., p. 189.
[24] O debate em torno da existência e da importância de uma língua geral ao longo do Brasil Colônia é assunto enfrentado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, pp. 130 e ss.
[25] TEYSSIER, Raul, História da Língua Portuguesa, p. 93 e ss.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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