Segunda Leitura

As manifestações devem ter limites estabelecidos?

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

27 de outubro de 2013, 7h00

Spacca
O Brasil assiste a uma onda de manifestações das mais diversas origens, formas e objetivos. Algumas com um foco certo. Outras, sem objetivo específico, um autêntico desabafo contra uma situação que se considera injusta.

Nesta atual fase da vida nacional, o que impressiona não é a novidade, mas sim a intensidade. Há muitos anos movimentos de trabalhadores rurais ou dos chamados “sem teto” buscam solução para suas reivindicações, através de invasões de áreas públicas ou privadas ou de manifestações públicas.

Lembro-me que em 1981, recebi pedido de reintegração de posse da Caixa Econômica Federal, porque famílias “sem teto” invadiram uma área urbana chamada “Vila Formosa”, em Curitiba. Talvez tenha sido a primeira do Brasil. O prefeito de então os alojou em outro local e saíram pacificamente.

Tais movimentos revelavam a busca de solução fora do sistema legal, sob o argumento de que este não estaria disponível às classes menos favorecidas ou não seria eficaz quando provocado. São argumentos fortes. O Código de Processo Civil de 1973 foi criado para resolver conflitos individuais e não coletivos. Ademais, há alguns anos não havia defensorias públicas, na maioria absoluta dos estados, o que tornava a defesa dos interesses dos necessitados quase inexistente.

Os atuais movimentos são diferentes. Regra geral, não se confundem com a desobediência civil. Esta pressupõe um protesto político, pacífico, contra a ação do Estado, a fim de que implante melhorias. Seu idealizador foi Henry David Thoreau. Mahatma Gandhi e Martin Luther King foram algumas de suas maiores expressões.

Não existe previsão explícita para as manifestações na Constituição ou nas leis. Elas acabam sendo justificadas pelo raciocínio oposto, ou seja, de que algum dispositivo da Constituição não está sendo cumprido. Por exemplo, pessoas sem moradia podem participar de uma invasão de edifício abandonado, sob o argumento de que o artigo 6º da Carta Magna lhes garante tal direito.

Pois bem, tais movimentos, que não são novidade na vida nacional, assumiram notoriedade e importância muito maior a partir de 13 de junho deste ano, quando se deu em São Paulo uma caminhada chamada “Movimento Passe Livre”, que protestava contra o aumento da passagem de ônibus de R$ 3 para R$ 3,20. A partir dali, aos poucos, quase todas as capitais viram-se envolvidas em passeatas. Algo novo estava a ocorrer e o poder público não estava preparado para lidar com o problema.

Aquele protesto nacional, que teve início em junho, não tinha direção certa. Ao que tudo indica, era uma justa e compreensível revolta contra uma realidade que mostrava a despreocupação de governantes com a situação de milhares de brasileiros sem condições de usufruir um razoável sistema de saúde, de educação ou de transporte. O gigante adormecido acordava e mostrava consciência contra os excessos exteriorizados em ações de corrupção ou de uso particular da coisa pública.

No entanto, nem todos pareciam sensibilizar-se. No dia 3 de julho de 2013 o site da Folha de S.Paulo noticiava que o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), usou um avião da Força Aérea Brasileira para levar a noiva, parentes dela, enteados e um filho a um jogo da seleção no Rio de Janeiro

Os protestos continuaram, acabaram assumindo nova feição, através da destruição do patrimônio público ou privado. Polemizou-se sobre o uso de máscaras. Os manifestantes do início foram se afastando intimidados.

Atualmente, é possível dizer que as manifestações de junho acabaram. É difícil avaliar o seu alcance mas, sem dúvida, tiveram um papel importante na reconstrução da vida nacional. Várias reivindicações foram, no mínimo, objeto de análise.

Porém, com certeza, nem todos compreenderam bem o alcance da insatisfação popular. A Câmara dos Deputados, por exemplo, deu uma perfeita mostra de insensibilidade no dia 28 de agosto, ao manter o mandato de Natan Donadon, (PMDB-RO) condenado pelo STF a 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão pelos crimes de formação de quadrilha e peculato.

Agora os protestos e manifestações continuam sob outra forma. Multiplicam-se os atos desordenados de inconformismo, em locais diversos e pelos mais variados motivos. Vejamos dois exemplos. Um, de extrema complexidade. Outro, de grande simplicidade.

Ocorrência complexa: dia 18 de outubro, cerca de 100 pessoas ligadas à defesa dos direitos dos animais, após seis dias de vigília, invadiram o Instituto Royal, em São Roque (SP), retirando do local 178 cães da raça beagle, coelhos e ratos, usados na vivissecção, ou seja, em testes para medicamentos e cosméticos.

Ocorrência simples: dia 25 de outubro trabalhadores da Fiat interditaram, a partir das 5h15, a rodovia Fernão Dias, na altura do km 483, em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte, reivindicando aumento salarial, causando o ato o congestionamento de vários quilômetros da rodovia.

Não entro na análise do mérito das duas manifestações. Não discuto, aqui, as reivindicações salariais dos empregados da Fiat. Menos ainda o dilema dos experimentos ou morte, certamente com sofrimento, dos cachorros condenados para justificar experiências com medicamentos para nós, humanos. A discussão aqui chega até a filosofia (antropocentrismo x biocentrismo).

Fico só nas generalidades. Qual o resultado econômico dos congestionamentos decorrentes das manifestações? Compromissos descumpridos? Imagine-se uma audiência em que as partes, seus advogados ou testemunhas não consigam chegar a tempo e que é adiada para um ano depois. E a ambulância que leva o doente ao hospital, resultando do atraso a sua morte?

Nos casos de destruição do patrimônio público, quem arca com o prejuízo? Os contribuintes, sem dúvida. Pior é a sorte de comerciantes que viram destruídos seus bens. Quantos anos esperarão pelo ressarcimento em eventual ação indenizatória contra o Estado?

Tudo isto suscita algumas indagações. O Estado e suas instituições fracassaram? A via legal não atende mais os interesses da sociedade? Se a resposta for positiva, o que é pior: um Estado com instituições fracas que funcionem com deficiências, ou a ausência de instâncias públicas para satisfação dos anseios da sociedade?

Se a conclusão for intermediária, devendo permanecer as instituições, mas utilizando-se cada vez mais as manifestações, qual será o limite? Até onde deve ser assegurado o direito democrático de manifestação? Ele é absoluto? É relativo?

Uma reivindicação, mesmo que reconhecidamente justa, pode ser exercida diretamente pelos interessados sem interveniência do Estado? Isto é conveniente? Configura o crime de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no artigo 345 do Código Penal?

O uso das manifestações, como vem sendo feito, está adequado? Constitui um avanço da democracia? Ou, ao inverso, pode levar a uma sociedade caótica?

Estas e outras indagações fazem parte da realidade social contemporânea e precisam ser enfrentadas pelos operadores jurídicos. O que pensa, disto tudo, o leitor?

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