Consultor Jurídico

Cássio Cavalli: Negociação deve ser cultivada em recuperação de empresa

24 de outubro de 2013, 13h29

Por Cássio Cavalli

imprimir

Um dos grandes desafios atuais da recuperação judicial, tal como disciplinada pela Lei 11.101/05, consiste na preservação do espaço de liberdade deixado para a negociação de um plano de recuperação entre devedor e credores. Como é sabido, a natureza negocial é um dos principais aspectos a distinguir o instituto da recuperação judicial de empresas do antigo instituto da concordata, a qual, segundo as palavras de Pontes de Miranda, de concordata nada tinha. Aliás, diz-se que a superação da antiga noção de favor legal, que não deixava espaço para negociação, é o que viabiliza que empresas sejam preservadas no regime atual.

Entretanto, cabe indagar-se: por que conferir maior espaço para negociação entre devedor e credores é melhor do que outorgar ao juiz poder para ditar a melhor solução para a crise da empresa? Como o objetivo da recuperação judicial é maximizar o valor dos ativos do devedor, mediante a preservação de uma operação que detém um surplus value de going concern que excede o valor de liquidação decorrente da venda por parte dos ativos da empresa, deve-se determinar tanto o valor de liquidação como o valor de going concern de uma empresa. Se aquele for superior a este, deve-se liquidar a empresa; se este for superior àquele, deve-se preservar a empresa. Se o juízo onde tramita a recuperação judicial possuísse informações perfeitas sobre o valor da empresa, ele poderia ditar qual o melhor plano de recuperação. Entretanto, como ele não possui esta informação, é melhor deixar aos credores a tarefa de decidir qual valor lhes é mais vantajoso, se o de liquidação ou o de going concern. Daí a importância da negociação do plano de recuperação em uma Assembleia-Geral de Credores.

Na jurisprudência, entretanto, verifica-se uma tendência de aumento do controle judicial sobre as deliberações tomadas em Assembleia-Geral de Credores na recuperação judicial. As decisões que integram a jurisprudência são individualmente coerentes e bem-fundamentadas, mas, em seu conjunto, parece-me, constituem incentivos contrários à negociação de um plano em Assembleia. Essa tendência manifesta-se de duas formas distintas.

A primeira delas consiste na desqualificação do direito de voto de credor que tenham rejeitado o plano de recuperação quando o direito de voto tiver sido exercido abusivamente. As decisões neste sentido identificaram como sendo abusivo o voto contrário ao plano que tivesse sido promanando de único ou de um dos poucos credores de uma das classes de credores. É que, neste caso, em que um único credor possui grande poder de voto, se estaria a concentrar, em um único ou em poucos indivíduos, o poder de decidir pelo destino da empresa em recuperação, inviabilizando-se inclusive que se atingisse o quorum alternativo para cram down. A intuição subjacente a perpassar estes diferentes julgados é a de que poucos não possuem legitimidade para decidir o destino de muitos. Neste sentido, a deliberação ideal seria aquela em que vários credores, senão todos, comparecessem à Assembleia-Geral de Credores para deliberar. Sendo pequeno o número de credores presentes, abrem-se as portas para o controle judicial, exercido sob a forma de desqualificação do voto tido por abusivo. Como resultado, poderia parecer que há um viés decisório orientado a homologar planos com vista à preservação da empresa.

A segunda forma de controle judicial consiste na possibilidade de o magistrado não homologar plano de recuperação aprovado por maioria em Assembleia-Geral de Credores. Neste caso, em que pese os credores terem aprovado o plano, o magistrado recusa-se a homologá-lo, sob fundamento de violação da lei e de princípios gerais de direito. Aqui, por evidente, desfaz-se a impressão de que há viés judicial pró-preservação da empresa. Porém, o que releva é que esta linha decisória reduz o poder deliberativo dos credores.

A confluência destas duas linhas decisórias, parece-me, coloca em risco à recuperação judicial enquanto mecanismo de negociação de uma solução para a crise da empresa. É que, pela lógica da ação coletiva, se os credores perceberem que o exercício de seu poder de voto (que para ele representa um custo, como, por exemplo, deslocar-se até o local da assembleia) for irrelevante para o resultado final da negociação (à medida que o juiz pode decidir pela concessão da recuperação cujo plano foi rejeitado, ou pela não homologação de plano aprovado em assembleia), eles deixarão de comparecer à assembleia. Quanto menor o número de credores a comparecer à Assembleia, menor será a legitimidade dos poucos presentes, aumentando a probabilidade de controle judicial da deliberação.

Entretanto, o objetivo manifesto do instituto da recuperação judicial é preservar a empresa, vale dizer, maximizar o valor de going concern da empresa, mediante negociação entabulada entre devedor e credores. Deve-se, pois, cultivar a cultura de negociação em torno do plano de recuperação, delimitando-se minuciosamente as hipóteses de controle judicial sobre a deliberação assemblear.