Partido britânico quer fim de Lei dos Direitos Humanos
23 de outubro de 2013, 20h57
Esse impactante anúncio foi feito por Theresa May, ministra do Interior do Reino Unido, para quem o modelo dual de proteção dos direitos fundamentais, que conjuga o Poder Judiciário britânico e a Corte Europeia de Direitos Humanos, está inviabilizando a segurança dos súditos de Sua Majestade, abrindo frestas perigosas no sistema antiterrorismo e desmoralizando as decisões da jurisdição interna. O ministro da Justiça
Chris Grayling corroborou as declarações de sua colega de gabinete e informou que será elaborado um calendário para a reforma dessa legislação, o que resultará na publicação, em 2014, de um documento-base para ser utilizado, caso os conservadores ganhem as eleições gerais, no segundo mandato do primeiro-ministro David Cameron.
Segundo as autoridades ministeriais britânicas, há dezenas de milhares de pedidos de extradição e deportação de presos que se fundamentam na Convenção Europeia de Direitos Humanos e que, em última análise, paralisam a ação das forças policiais e de segurança, além de impedir o envio de parte desses custodiados para outros países, como a Jordânia, sob o argumento de que não seriam observadas as necessárias garantias judiciais desses extraditandos.[1]
O Human Rights Act é uma lei aprovada pelo Parlamento do Reino Unido e sancionada pela rainha Elizabeth II em novembro de 1998, que entrou em vigor no ano de 2000. A instituição dessa lei de direitos fundamentais integrou um pacote de reformas políticas e jurídicas do Partido Trabalhista, de entre as quais a criação da Suprema Corte e o esvaziamento das funções jurisdicionais da House of Lords. Além disso, a lei de 1998 permitiu o Reino Unido se ajustasse às exigências da União Europeia, por efeito de sua ratificação da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Com isso, os tribunais locais passaram a contar com uma regra de natureza estatutária, objetiva, genérica e uniforme, para decidir as questões ligadas ao tema dos “direitos humanos” (que, no continente, são mais comumente estudados sob a rubrica de “direitos fundamentais”), sem necessidade de um reenvio permanente ao tribunal europeu homólogo.[2]
Em termos resumidos, o Human Rights Act 1998 estabelece quanto à eficácia de suas normas, os seguintes princípios:[3]
1. A vinculação dos tribunais britânicos, independentemente de sua competência ou de seu nível hierárquico, às normas da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Desse modo, os órgãos judiciários locais devem examinar se a lei britânica é conforme ou não aos preceitos do tratado europeu. Se não houver conformidade, a Corte britânica declará-la e suscitar a mudança legislativa, por meio de um procedimento sumário. Esses novos poderes dos juízes do Reino Unido instauraram um debate sobre se o país havia finalmente ingressado na era do controle concentrado de matriz continental. Em se cuidando de um sistema tão peculiar como o existente nas Ilhas, por si só, essa já seria uma questão interessantíssima.
2. Outra determinação do estatuto britânico de direitos humanos é a vinculação a suas normas por autoridades administrativas, nos diversos níveis de poder estatal. Nessa regra de eficácia dos direitos humanos, contudo, não se inclui o Parlamento.
3. A interpretação das normas jurídicas pelos tribunais britânicos deve-se pautar pelo catálogo de direitos fundamentais da convenção europeia.
O Human Rights Act tem sido objeto de duras críticas do Partido Conservador, de setores da mídia e de juízes. Os argumentos contra a lei são de três ordens: a) ela permitiu o aumento da interferência judiciária em detrimento da histórica preeminência do Poder Legislativo; b) sua interpretação enfraqueceu a ação policial de combate ao crime e ao terrorismo; c) a lei diminuiu sensivelmente a soberania britânica, além de dar margem para um controle dual da legislação interna. Quanto a essa última censura, há certo consenso nos meios jurídicos do Reino Unido quanto à (aparente) inferioridade técnica dos órgãos judiciais europeus, especialmente a Corte Europeia de Direitos Humanos, em relação a seus homólogos britânicos. Essa crítica relaciona-se ao modo de escolha dos juízes da corte europeia, muitos deles sem a experiência e a formação que um magistrado britânico possuiria.
Na academia, no meio político e na mídia, reconhece-se a transposição para as Ilhas Britânicas de um debate tipicamente europeu (e bem brasileiro, diga-se) sobre a judicialização da vida, o que era algo impensável em termos de sistema de common Law. Em relação a isso, tem-se, ainda, o problema do enfraquecimento da doutrina dos precedentes, a base do sistema inglês e galês há séculos, que se vê em contraste com “normas estatutárias” (rectius, legais, em uma tradução forçada do conceito de statute law), cuja supremacia é sustentada pela rigidez do modelo continental, algo revelador de outra violência contra as tradições do modelo adotado nas ilhas.
O estopim para as declarações das mais elevadas autoridades do Governo britânico, na convenção do Partido Conservador, foram decisões da Suprema Corte do Reino Unido e da Corte Europeia de Direitos Humanos, que interferiu em decisões administrativas de extradição de prisioneiros, supostamente implicados em delitos de terrorismo, para o Reino Hachemita da Jordânia. Os serviços secretos e a polícia real da Jordânia são conhecidos como os mais eficientes do Oriente Médio, após seus equivalentes do Estado de Israel, e mantém estreita cooperação com o Reino Unido e com os Estados Unidos da América. O envio de custodiados do sistema prisional britânico para a Jordânia tem sido objetado sob o argumento de que essa transferência é apenas uma forma de permitir que esses indivíduos possam ser submetidos a interrogatórios, digamos, mais “severos”, o que seria impossível sob as leis britânicas ou norte-americanas. Essas alegações são fortemente refutadas pelas autoridades dos três países referidos.
Uma das alternativas propostas pelos conservadores é a adoção de um Bill of Rights inteiramente britânico, em substituição ao excessivamente europeu Human Rights Act.
O resultado dessa disputa só será conhecido após as eleições gerais britânicas e se houver a manutenção dos conservadores no poder, hoje mantidos sob uma frágil aliança com os liberais-democratas. A liderança de David Cameron não é tão inspiradora e o partido se divide entre setores mais à direita e aqueles que, como o atual primeiro-ministro, defendem um “conservadorismo compassivo”.
Por trás das cortinas, além do que se revela no palco político, há um inegável desejo de grande parte dos britânicos de preservar o quanto possível as peculiaridades de seu sistema jurídico, que tanto surpreende, quanto encanta os estudiosos de Direito Comparado de todas as épocas.
[1] Notícia divulgada na imprensa britânica: http://www.theguardian.com/law/2013/sep/30/conservitives-scrap-human-rights-act. Acesso em 22-10-2013.
[2] Não se desconhecem as diferenças sutis entre “direitos humanos” e “direitos fundamentais”. O uso desses dois termos neste texto não obedece a essa distinção, que é necessária, mas à linguagem britânica que prefere human rights a fundamental rights, expressão mais ao gosto do Direito continental.
[3] O inteiro teor dessa lei está disponível aqu: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1998/42/contents. Acesso em 22-10-2013.
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