Direito Comparado

Partido britânico quer fim de Lei dos Direitos Humanos

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

23 de outubro de 2013, 20h57

O Partido Conservador britânico, que governa o país em coalização com o Partido Liberal-Democrata, anunciou em sua última convenção nacional que, caso vença as próximas eleições, vai propor a revogação do Human Rights Act 1988 e denunciar a Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Esse impactante anúncio foi feito por Theresa May, ministra do Interior do Reino Unido, para quem o modelo dual de proteção dos direitos fundamentais, que conjuga o Poder Judiciário britânico e a Corte Europeia de Direitos Humanos, está inviabilizando a segurança dos súditos de Sua Majestade, abrindo frestas perigosas no sistema antiterrorismo e desmoralizando as decisões da jurisdição interna. O ministro da Justiça

Chris Grayling corroborou as declarações de sua colega de gabinete e informou que será elaborado um calendário para a reforma dessa legislação, o que resultará na publicação, em 2014, de um documento-base para ser utilizado, caso os conservadores ganhem as eleições gerais, no segundo mandato do primeiro-ministro David Cameron.

Segundo as autoridades ministeriais britânicas, há dezenas de milhares de pedidos de extradição e deportação de presos que se fundamentam na Convenção Europeia de Direitos Humanos e que, em última análise, paralisam a ação das forças policiais e de segurança, além de impedir o envio de parte desses custodiados para outros países, como a Jordânia, sob o argumento de que não seriam observadas as necessárias garantias judiciais desses extraditandos.[1]

O Human Rights Act é uma lei aprovada pelo Parlamento do Reino Unido e sancionada pela rainha Elizabeth II em novembro de 1998, que entrou em vigor no ano de 2000. A instituição dessa lei de direitos fundamentais integrou um pacote de reformas políticas e jurídicas do Partido Trabalhista, de entre as quais a criação da Suprema Corte e o esvaziamento das funções jurisdicionais da House of Lords. Além disso, a lei de 1998 permitiu o Reino Unido se ajustasse às exigências da União Europeia, por efeito de sua ratificação da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Com isso, os tribunais locais passaram a contar com uma regra de natureza estatutária, objetiva, genérica e uniforme, para decidir as questões ligadas ao tema dos “direitos humanos” (que, no continente, são mais comumente estudados sob a rubrica de “direitos fundamentais”), sem necessidade de um reenvio permanente ao tribunal europeu homólogo.[2]

Em termos resumidos, o Human Rights Act 1998 estabelece quanto à eficácia de suas normas, os seguintes princípios:[3]

1. A vinculação dos tribunais britânicos, independentemente de sua competência ou de seu nível hierárquico, às normas da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Desse modo, os órgãos judiciários locais devem examinar se a lei britânica é conforme ou não aos preceitos do tratado europeu. Se não houver conformidade, a Corte britânica declará-la e suscitar a mudança legislativa, por meio de um procedimento sumário. Esses novos poderes dos juízes do Reino Unido instauraram um debate sobre se o país havia finalmente ingressado na era do controle concentrado de matriz continental. Em se cuidando de um sistema tão peculiar como o existente nas Ilhas, por si só, essa já seria uma questão interessantíssima.

2. Outra determinação do estatuto britânico de direitos humanos é a vinculação a suas normas por autoridades administrativas, nos diversos níveis de poder estatal. Nessa regra de eficácia dos direitos humanos, contudo, não se inclui o Parlamento.

3. A interpretação das normas jurídicas pelos tribunais britânicos deve-se pautar pelo catálogo de direitos fundamentais da convenção europeia.

O Human Rights Act tem sido objeto de duras críticas do Partido Conservador, de setores da mídia e de juízes. Os argumentos contra a lei são de três ordens: a) ela permitiu o aumento da interferência judiciária em detrimento da histórica preeminência do Poder Legislativo; b) sua interpretação enfraqueceu a ação policial de combate ao crime e ao terrorismo; c) a lei diminuiu sensivelmente a soberania britânica, além de dar margem para um controle dual da legislação interna. Quanto a essa última censura, há certo consenso nos meios jurídicos do Reino Unido quanto à (aparente) inferioridade técnica dos órgãos judiciais europeus, especialmente a Corte Europeia de Direitos Humanos, em relação a seus homólogos britânicos. Essa crítica relaciona-se ao modo de escolha dos juízes da corte europeia, muitos deles sem a experiência e a formação que um magistrado britânico possuiria.

Na academia, no meio político e na mídia, reconhece-se a transposição para as Ilhas Britânicas de um debate tipicamente europeu (e bem brasileiro, diga-se) sobre a judicialização da vida, o que era algo impensável em termos de sistema de common Law. Em relação a isso, tem-se, ainda, o problema do enfraquecimento da doutrina dos precedentes, a base do sistema inglês e galês há séculos, que se vê em contraste com “normas estatutárias” (rectius, legais, em uma tradução forçada do conceito de statute law), cuja supremacia é sustentada pela rigidez do modelo continental, algo revelador de outra violência contra as tradições do modelo adotado nas ilhas.

O estopim para as declarações das mais elevadas autoridades do Governo britânico, na convenção do Partido Conservador, foram decisões da Suprema Corte do Reino Unido e da Corte Europeia de Direitos Humanos, que interferiu em decisões administrativas de extradição de prisioneiros, supostamente implicados em delitos de terrorismo, para o Reino Hachemita da Jordânia. Os serviços secretos e a polícia real da Jordânia são conhecidos como os mais eficientes do Oriente Médio, após seus equivalentes do Estado de Israel, e mantém estreita cooperação com o Reino Unido e com os Estados Unidos da América. O envio de custodiados do sistema prisional britânico para a Jordânia tem sido objetado sob o argumento de que essa transferência é apenas uma forma de permitir que esses indivíduos possam ser submetidos a interrogatórios, digamos, mais “severos”, o que seria impossível sob as leis britânicas ou norte-americanas. Essas alegações são fortemente refutadas pelas autoridades dos três países referidos.

Uma das alternativas propostas pelos conservadores é a adoção de um Bill of Rights inteiramente britânico, em substituição ao excessivamente europeu Human Rights Act.

O resultado dessa disputa só será conhecido após as eleições gerais britânicas e se houver a manutenção dos conservadores no poder, hoje mantidos sob uma frágil aliança com os liberais-democratas. A liderança de David Cameron não é tão inspiradora e o partido se divide entre setores mais à direita e aqueles que, como o atual primeiro-ministro, defendem um “conservadorismo compassivo”.

Por trás das cortinas, além do que se revela no palco político, há um inegável desejo de grande parte dos britânicos de preservar o quanto possível as peculiaridades de seu sistema jurídico, que tanto surpreende, quanto encanta os estudiosos de Direito Comparado de todas as épocas.


[1] Notícia divulgada na imprensa britânica: http://www.theguardian.com/law/2013/sep/30/conservitives-scrap-human-rights-act. Acesso em 22-10-2013.

[2] Não se desconhecem as diferenças sutis entre “direitos humanos” e “direitos fundamentais”. O uso desses dois termos neste texto não obedece a essa distinção, que é necessária, mas à linguagem britânica que prefere human rights a fundamental rights, expressão mais ao gosto do Direito continental.

[3] O inteiro teor dessa lei está disponível aqu: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1998/42/contents. Acesso em 22-10-2013.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!