Aberração jurídica

Decisão do STJ sobre leasing viola prerrogativa do Legislativo

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21 de outubro de 2013, 6h00

Não faz muito tempo, adotou o sistema jurídico posto a regra segundo a qual para que o Supremo Tribunal Federal admita o recurso extraordinário é preciso demonstrar-lhe que a deliberação a ser por ele tomada não ficará restrita à demanda, melhor dito, que o supino entendimento a ser proclamado por certo irá alcançar algum segmento da sociedade e não apenas as partes envolvidas em determinada quizília. É o que deflui dos comandos do parágrafo 3° do artigo 102 da Carta da República e do artigo 543-A do Código de Processo Civil. A tal qualidade atribuída ao possível resultado jurisdicional se convencionou chamar tecnicamente de “repercussão geral”.

Desse modo, sob o entendimento do ordenamento jurídico vigente, a uma causa somente poderá ser atribuído o caráter de repercussão geral se tiver transcendência jurídica, política, social ou econômica.

Segundo a melhor doutrina consultada, transcendência jurídica seria o desrespeito patente aos direitos humanos fundamentais ou aos interesses coletivos indisponíveis, com comprometimento da segurança e estabilidade das relações jurídicas; a  transcendência política seria o desrespeito notório ao princípio federativo ou à harmonia dos Poderes constituídos; a transcendência social seria a existência de situação extraordinária de discriminação, de comprometimento do mercado de trabalho ou de perturbação notável à harmonia entre capital e trabalho; e a transcendência econômica seria a ressonância de vulto da causa em relação à entidade de direito público ou economia mista, ou a grave repercussão da questão na política econômica nacional, no segmento produtivo ou no desenvolvimento regular da atividade empresarial. 

Pois bem.

Todos que laboram na província do direito tributário sabem que, até 27 de novembro de 2012 e desde a sua fundação em 1989 — quando vigorava o Decreto-lei 406/68, depois substituído pela Lei Complementar 116/2003 —, o Superior Tribunal de Justiça reiteradamente vinha dizendo que — em face do princípio da territorialidade das leis — o ISS incidente sobre as operações de arrendamento mercantil era devido para o ente municipal em cujo território acontecem tais negócios (assinatura do contrato, compra do bem e transferência da sua posse ao arrendatário, atividades que configuram o efetivo e não o artificial, fictício, inventado, deturpado, fato gerador do tributo sobre o leasing), pois, dentro do nosso ordenamento, uma lei de um município não pode servir para este arrecadar imposto no território de outro. Ou nunca pôde, até então, melhor dizendo.

Naquela mencionada data, referida Corte, por sua Primeira Turma, surpreendeu a comunidade brasileira ao detonar com a segurança jurídica até então existente e, julgando o REsp 1.060.210/SC, proclamar o seguinte entendimento (in verbis):

“7. (…) Assim, há se concluir que, tanto na vigência do DL 406/68 quanto na vigência da LC 116/03, o núcleo da operação de arrendamento mercantil, o serviço em si, que completa a relação jurídica, é a decisão sobre a concessão, a efetiva aprovação do financiamento.”

“12. Recurso Especial parcialmente provido para definir que: (…) a partir da LC 116/03, é aquele onde o serviço é efetivamente prestado, onde a relação é perfectibilizada, assim entendido o local onde se comprove haver unidade econômica ou profissional da instituição financeira com poderes decisórios suficientes à concessão e aprovação do financiamento — núcleo da operação de leasing financeiro e fato gerador do tributo.

Ora, qualquer analista perfunctório e descomprometido constata a olho nu que — como tais regramentos sublinhados não constavam da norma jurídica primeira (DL 406/68), nem integram a segunda (LC 116/03) — a respeitável deliberação (in)explicavelmente violou o princípio republicano da separação dos poderes e a prerrogativa constitucional da feitura das leis, porquanto os 8 respeitáveis Ministros da Primeira Turma do STJ nitidamente usurparam os direitos legislativos exclusivos dos 513 deputados e dos 81 senadores que foram eleitos por mais de 138 milhões de eleitores para exercer a nobre função de legislar.

Noutro ponto, até quem não é muito versado ou interessado na matéria tributária vislumbra com extrema facilidade que a respeitabilíssima decisão contém um fatal equívoco em relação aos princípios básicos do instituto leasing — que não é por acaso ou por simpatia chamado (na tradução correta do Banco Central do Brasil) de arrendamento mercantil e não de financiamento mercantil. Basta ler com atenção a sua lei matriz (Lei 6.099/74) e simultaneamente conferir no site da autarquia federal que regula o sistema financeiro nacional para constatar sem muito esforço a inexistência de financiamento nesse tipo especialíssimo de operação locatícia mista.

Ademais, a óbvia inexistência de financiamento na operação de arrendamento mercantil se reforça pelo fato de que seu contrato não prevê os penduricalhos inventados pela área da usura para exagerar seus obscenos ganhos, tais como as abomináveis taxas de abertura de crédito, os juros capitalizados (inerentes a financiamentos), as tarifas, a correção monetária, etc.; do mesmo passo, nesse tipo especialíssimo de negócio, a única previsão para o inadimplemento dos aluguéis é a retomada do bem arrendado pela arrendadora (não financiadora); jamais o pagamento de comissões de permanência, etc.

É, assim, por demais evidente que a adoção do modelo de leasing gerado pela ainda não transitada em julgado decisão do STJ indiscutivelmente configurará um instituto de arrendamento mercantil tupiniquim, por ser bem diferente do adotado nos demais países do planeta.

Diante da possibilidade de, por descuido ou negligência, se tornar efetivo esse monstrengo jurídico (arrendamento financeiro ou financiamento mercantil) gerado por uma deliberação judicial no mínimo equivocada, almeja-se que os atentos procuradores municipais e os amicus curiae de Tubarão/SC e alhures consigam levar o estranhíssimo caso ao exame sempre correto do Supremo Tribunal Federal, porquanto a repercussão geral financeira na hipótese é inequívoca.

Tal providência jurídico-abortiva surge oportuna, imprescindível e inadiável porque não só é imperioso evitar o nascimento com vida deletéria de mais uma aberração jurídica gerada em ninho de visíveis interesses contrários ao bem-estar social (para onde se destinam os impostos), como ainda porque e principalmente haverá gravíssimos reflexos nos orçamentos dos (99,99%) municípios brasileiros que não são paraísos fiscais e estão condenados a perder em favor da poderosa e influente plutocracia uma notável fatia do seu ISS por decorrência de uma desastrada interpretação de um instituto de uso mundial.

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