Senso Incomum

O cego de Paris II — o que é “a verdade” no Direito?

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17 de outubro de 2013, 8h01

Em “O Cego de Paris I”…
… eu perguntava (clique aqui para ler) como é que se dá esse fenômeno da “busca da verdade real” (ou da verdade lato sensu). Na doutrina jurídica mais consumida, a verdade ora é confundida com um dado bruto (o fato em si?) ao qual o sujeito cognoscente deve se amoldar, ora é resumida a uma construção, erguida — a partir de uma pseudo “consciência metodológica” — pelo sujeito cognoscente, algo que aparece claramente no conceito de “livre convencimento” ou “livre apreciação da prova”.

Já em outros momentos a dogmática jurídica produz um mix. De todo modo, o que fica claro é que não há qualquer preocupação (por assim dizer, epistêmica) com as condições de possibilidade desse “pensamento”.

O quero explicitar é que é extremamente relevante que estudemos as teorias da verdade (Wahrheitstheorien). Os filósofos discutem isso desde sempre, e parece que alguns juristas não sabem disso, assumindo, ingenuamente, uma teoria da correspondência, sem saber disso, como se o real pudesse ser açambarcado pelo sujeito.

“Real” em que sentido? A dogmática corre sozinha… e perde!
Vê-se (e ouve-se) de tudo. Com efeito. Ao mesmo tempo em que “existiria” a verdade como um “dado” real, haveria também o “livre convencimento…” (ou livre apreciação da prova), tudo isso independentemente dos problemas que as próprias concepções clássicas ou modernas da filosofia revelem. Mas, então, permito-me indagar: de que modo ela — a verdade — seria, então, um dado “real”? “Real” em que sentido? O real é o verdadeiro “em si” ou algo verdadeiro dito sobre o real? Qual é a diferença entre a verdade e o verdadeiro?

Outra pergunta: independente da correlação com uma ou outra concepção filosófica sobre o conceito de “verdade”, de que modo seria possível compatibilizar essas “teses”? Ao exame de parcela considerável da doutrina processual penal brasileira (embora esse problema esteja nos demais ramos do direito também), confesso que não foi possível encontrar uma resposta satisfatória a esse dilema. Dessa maneira, do que lê por aí, tem-se que:

— De um lado, há uma verdade real “nos fatos”, onde o intérprete “busca” a verdade nas essências das coisas/dos fatos e que são verdades irrefutáveis, indiscutíveis e, portanto, não há convencimento, uma vez que sequer há sujeito – chamemos a isso de metafísica clássica (ou de objetivismo[1] ou, talvez, de uma vulgata construída assistematicamente);

— De outro, há um livre convencimento, no qual é possível se deduzir, autônoma e racionalmente, através do método construído pela subjetividade, aquilo que é verdadeiro ou não (chamemos a isso, de forma bem generosa, de filosofia da consciência).[2]

No mais, o que mais preocupa é que tais teses ignoram o fato de que as teorias da verdade estão sempre relacionando alguma coisa (normalmente o logos) ao invés de serem “qualidades” de um determinado locus. Ainda que o locus seja “a coisa”, os gregos já sabiam que não poderiam ter acesso “tátil” a essa coisa. O problema é que determinados processualistas acham que isso é possível depois de 2.500 anos de filosofia. Incrível. De todo modo, para o espaço desta coluna, é suficiente dizer o que estou dizendo.

Assim, buscando traduzir isso em outras palavras, perguntaria: de que modo é possível esperar que avancemos em termos de teoria processual ou na elaboração de questões de concursos públicos se a dogmática-jurídica-não-consegue-apresentar-uma-noção-adequada de “verdade processual” e, muito menos, explicar o-que-quer-dizer-com-essa-ficção-chamada “verdade real”? Isso para dizer (ou perguntar) o mínimo. Só para iniciar a discussão. E isso é coisa séria. Os céticos — e entendam a minha ironia do duplo endereçamento — podem acreditar nisso. Com certeza (sic).

No fundo, é possível dizer que a dificuldade de a dogmática jurídica lidar com conceitos como o da “verdade real” é apenas a ponta do iceberg da crise da Teoria do Direito em terrae brasilis. A mesma dificuldade a dogmática tem para lidar com o que os conceitos de positivismo, princípios, mutação constitucional, etc, bastando ver a derrota sofrida pela dogmática jurídica no julgamento do mensalão. Algo do tipo: “correu sozinha e chegou em segundo lugar”…

O estado d’arte
Não nego que a Ação Penal 470 (mensalão) me instigou a esta reflexão, assim como o exame de uma série de livros de processo penal que tratam desse “mistério”. Faço-o, pois, com respeito a todos os autores. Por amor à ciência jurídica (ou do que dela resta) e ao debate. Mesmo que parcela considerável da comunidade jurídica despreze discussões filosóficas.

Apenas quero dizer que o direito não está imune à filosofia. O Direito não está blindado aos paradigmas filosóficos. O que temos, então? Simples: o que há no horizonte dogmático é uma mixagem produzida no âmbito do senso comum teórico. E, lembremos: o senso comum por si já denota uma falácia realista-objetivista; portanto, também aqui estamos na presença da filosofia.

Por isso, não é temerário afirmar que a própria dogmática jurídica não consegue “colocar” a propalada “verdade” (“real” ou não) no respectivo (ou em algum) solo filosófico, eis que, não raras vezes, confunde o paradigma ontológico-clássico (ou ontoteológico) com o da filosofia da consciência (ou de suas diversas vulgatas) e vice-versa, resultando disso um conceito absolutamente sincrético, autocontraditório.

Tudo é relativo, não existem verdades etc?
Poderia iniciar minha apreciação analisando dezenas de manuais jurídicos que buscam tratar do assunto. Esses manuais são os livros mais utilizados nas salas de aula e fomentam os cursos de preparação para concursos e, por justiça, cabe referir que são citados por ministros do STJ e STF, o que também comprova que a crise do Direito avançou para o interior dos tribunais superiores; veja-se que se trata de uma mera descrição daquilo que é possível constatar facilmente. Um simples olhar para as bancadas já dá uma ideia…

As análises desses livros oscilam entre a “busca da verdade real” e sua antítese — o “ceticismo” e/ou “relativismo” (embora, diga-se, em nenhum dos autores essa discussão adentra no terreno da filosofia, como se essa fosse despicienda para a explicação do fenômeno). Os “céticos” (ou neo-céticos-neo-niilistas) o são por “pura intuição” (sic). Seguem o senso comum, do tipo “cada-um-tem-sua-opinião-sobre-o-mundo”, “cada-um-tem-a-sua-verdade”, “tudo-é-relativo”, “não-existem-verdades”, e mais uma centena de citações anêmicas, fofas, flambadas…

Já escrevi sobre isso.[3] Efetivamente, não é fácil entender o que a dogmática processual pretende dizer com a defesa da “verdade real” (ou à sua crítica). Como já referi em O cego de Paris parte I, por vezes, parece que a “tal” verdade real é uma busca ontológica clássica, uma adeaquatio intellectum et rei; em outras passagens, fica-se convencido que a verdade real é o corolário da filosofia da consciência (adeaquatio rei et intellectum). Mas, enfim, o que estaria por trás de toda essa discussão no processo penal?

Na verdade, isso é apenas uma pequena parcela do problema. Alguém poderá dizer/perguntar: por que o professor Lenio insiste neste ponto? Por que essa chatice epistêmica? Qual é a razão de o professor insistir nas críticas à dogmática jurídica (mais) tradicional? E por que, raios, agora vem criticar de novo a Guilherme Nucci, já que já o havia feito em outro contexto (sobre a PEC 37)?

Minha resposta, com o benefício da tutela antecipatória é: a crítica deve ser feita aos juristas mais citados nas salas de aula, nos cursinhos de preparação e nos próprios tribunais pátrios. Se vou fazer uma crítica aos narradores de futebol, por certo a farei a Galvão Bueno e não ao locutor da Rádio Indinópolis, de Lagoa do Brejo. Como se diz por aí, cada um é responsável por aquilo que cativa… e escreve.

É dever da doutrina que se pretende crítica (como é o meu caso nesta coluna que, não por acaso, se chama Senso Incomum) trazer à lume essa problemática. A crítica, portanto, é meritória. Não vou atrás de textos que não tenham importância simbólica no contexto da operacionalidade cotidiana do Direito. No mínimo, trago à lume as contradições dos doutrinadores. O Brasil não está acostumado ao debate. Via de regra, as críticas são levadas para o plano pessoal. Não deve(ria) ser assim. Temos que nos acostumar a enfrentar os mais acalorados debates (circunstância muitas vezes não compreendida pelos leitores-comentadores dos sites jurídicos, que, também não raras vezes, ofendem os colunistas).

Então, vamos lá: O conceito de Nucci sobre “verdade real”
Por tais razões, sim, elejo, pela sua importância, um dos doutrinadores brasileiros mais festejados, Guilherme Nucci (Manual de processo penal e execução penal, RT, 2012, p. 112), que, embora tente fazer uma ressalva no sentido de que “jamais, no processo, pode assegurar o juiz ter alcançado a verdade objetiva”, na sequência assevera que o juiz possui, isso sim, “uma crença segura na verdade que transparece através das provas colhidas (…)”. Pergunto: como explicar tal contradição do ilustre processualista? Para ele, existe “verdade” e, ao mesmo tempo, não existe? Como assim?

A partir do que diz Nucci, qual é a diferença entre “verdade objetiva” e “verdade que transparece através das provas colhidas”? De que modo Nucci responde(ria) a isso? Mas, por que digo isso? Pela simples razão de que, afinal, ambas as assertivas do autor fazem parte daquilo que se pode denominar de adequatio intellectum et rei (pelo menos é o que se pode depreender dessa espécie de realismo filosófico). Portanto, o que surpreende, neste caso, é que Nucci diz não acreditar no objetivismo… Mas, veja-se que, como contraponto, faz uso do próprio objetivismo (filosófico).

Em outras palavras: Nucci não acredita na possibilidade de haver uma verdade, mas a seguir afirma existir uma verdade que transparece das provas colhidas… Afinal, como essa verdade “transparece”? Ela estaria contida “na coisa”? Existiria, então, uma essência a ser descoberta pelo juiz? Ora, desde logo é necessário lembrar que, após Kant — que na Crítica da Razão Pura afirmava a impossibilidade de apreensão da realidade como noumeno, restando-nos, portanto, apenas o phaenomenon — é suprema ousadia tentar reivindicar a realidade em essência.

Mas, não estou satisfeito. E, por amor ao debate e por dever acadêmico, preciso avançar, até para evitar mal entendidos. Aponto, então, para a gravidade da afirmação seguinte de Nucci: “a verdade é una e sempre relativa” (op. cit., p. 114). Redarguo, com toda a lhaneza acadêmica: se a verdade é relativa, a própria afirmação do autor deve ser assim considerada, isto é, a própria afirmação de Nucci deve ser considerada “relativa”… Logo, Nucci caiu em uma contradição insolúvel.

Por isso — e, por favor, isso não é assim porque eu quero, portanto, não deve ser visto como implicância minha — se a verdade é una, como diz Nucci, não é possível que ela seja, também, relativa. E vice-versa. De fato, ou se trata de uma verdade una (absoluta, apodítica) ou se trata de uma “verdade relativa” (e que nem pode ser “a verdade”, eis-que-é-relativa!). Ora, não é possível compreender esse medo da afirmação de existirem verdades, eis que qualquer afirmação a respeito da verdade deve ser verdadeira (pois deve ser aplicada sobre a própria afirmação). Consequentemente, não parece existir dúvida de que Nucci resvala em uma contradição performática (poderíamos dizer que é a kantiana aporia da “coisa em si).

Entretanto, as contradições não terminam nesse ponto. Isto porque, ao final, Nucci vai dizer que “a verdade é apenas uma noção ideológica da realidade, motivo pelo qual o que é verdadeiro para uns, não o é para outros” (op. cit., p.114). Já de pronto, permito-me acrescentar, ao final dessa frase, a afirmação “inclusive-isto-que-o-autor-acabou-de- afirmar”, de modo que ela seria lida dessa forma: “a verdade é apenas uma noção ideológica da realidade, motivo pelo qual o que é verdadeiro para uns, não o é para outros”, “inclusive isto que acabo de afirmar”! Então, esta própria afirmação é válida para uns e não o é para outros! Observe-se o grau de sincretismo: Nucci navega pelo objetivismo (ou uma vulgata do realismo filosófico) até chegar ao relativismo pós-moderno. Um “salto paradigmático” considerável, pois.

De todo modo, seria interessante esclarecer de que maneira é possível fazer esse mix de posições filosóficas, principalmente se considerarmos que, no início de sua explanação sobre o “princípio” (sic) da verdade real, Guilherme Nucci se posiciona a favor da verdade objetiva (que, ao fim e ao cabo, representaria o cerne da assim denominada “verdade real”), assumindo, entretanto, na sequência, uma postura relativista. E, o pior: no plano da dogmática do Direito (e quiçá em algumas teorias sedizentes críticas), o magistrado e professor Nucci não está só. Portanto, o problema na Teoria do Direito (se quisermos, no processo em geral) é responder a pergunta: De que modo se compatibilizam essas teses contraditórias entre si? De que maneira esse sincretismo sobrevive no imaginário dos juristas de terrae brasilis? Será que alguns juristas ainda não descobriram que os autos do processo são apenas uma narrativa? Ora, a própria frase "o que não está nos autos não está no mundo" (quod non est in actis, non est in mundo) indica isso!

É o que veremos na coluna que se chamará O Cego de Paris III — A Missão. Já comecei a escrevê-la. Como falei, em se tratando de obras que “fazem a cabeça” de milhares de estudantes e profissionais (como é o caso da extensa obra de Guilherme Nucci), o dever de quem deseja fazer Teoria do Direito é colocar os pontos contraditórios e apontar os lugares em que não se dá a compreensão do fenômeno. No caso específico tratado nessa trilogia (Cego de Paris I, II e III), a temática diz respeito à questão da verdade (real) no processo penal (que de certo modo pode ser estendida ao processo civil).

Numa palavra: examinando as posturas da dogmática jurídica sobre o conceito de verdade, nota-se, facilmente, que nem de longe se coloca em questão a própria dicotomia sujeito-objeto (S-O). De onde surge isso? As primeiras linhas da "Metafísica" de Aristóteles trazem luz a essa indagação. Essa mediação do real aparece exemplarmente em Aristóteles: "a alma é de alguma forma todas as coisas (pánta tá ónta)"; ou ainda: "o ente (tó ón) é dito de diversas maneiras"); ou nos escolásticos: quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur. Bem, por enquanto, paro por aqui.

Como disse, isso tudo não é assim por implicância minha ou por minha chatice epistem(ológ)ica. Paradigmas filosóficos conformam a nossa existência. Não posso pensar que estou fora deles. Ou seja, tenho que sempre me preocupar com os efeitos colaterais de uma paralaxe cognitiva (lembro, aqui, da coluna sobre o Combo de Palavras… esse combo da paralaxe valeria uma fortuna no mercado futuro – uma verdadeira commodity). Até o Cego de Paris III — A Missão!


[1] Objetivismo no sentido filosófico e não no sentido da dicotomia vontade da lei-vontade do legislador.
[2] Um ponto decisivo para compreensão do direito e da hermenêutica contemporânea é a compreensão do papel assumido pelo sujeito na modernidade. É preciso compreender que a modernidade efetivamente “cria” o sujeito (e o sujeito “cria” a modernidade). Antes da vigorosa ruptura filosófica operada por Descartes – que é quem institui a modernidade filosófica – o conceito de sujeito cobria uma outra esfera de significados. É preciso, portanto, encontrar um meio de conseguir notar como as transformações no conceito do hipokeimenon aristotélico e do sub-jectum medieval acontecem na configuração do sujeito moderno. Nesse sentido, Koselleck oferece um importante instrumento de análise para colocação de temas histórico-filosóficos no direito. De todo modo, é importante lembrar que aquilo que chamo de “filosofia da consciência” no direito é, na verdade, uma vulgata, porque se trata de um voluntarismo praticado a partir da concepção individual (ou daquilo que se pensa ser a subjetividade do intérprete). Ver, também, Gadamer, Verdade e Método II: A história do conceito como filosofia. Ainda, Heidegger, Nietzsche II.
[3] V.g., “O que é isto – a verdade real? Uma crítica ao sincretismo jusfilosófico de terrae brasilis, na Revista dos Tribunais, Volume 921.
 

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