Observatório Constitucional

Constitucionalismo brasileiro para além dos 25 anos

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

12 de outubro de 2013, 10h32

Há um ano, explicava nesta coluna que o 5 de outubro tornou-se uma data rica em significados para mim[1], pois, há dois anos, comemoram-se não só a promulgação da Constituição da República, mas, em especial, o aniversário de meu filho João Vítor. Assim como pensar em seu nascimento, leva-me a tempos muito mais remotos do que o 5 de outubro de 2011, a exemplo da decisão de ter um filho, da decisão de casar-me com sua mãe, da descoberta do amor e do início do nosso relacionamento há mais de 10 anos, assim também a história da Constituição do Brasil é bem mais antiga do que o 5 de outubro de 1988 faz supor. Claro, não estou sugerindo, em hipótese alguma, que não devamos celebrar o primeiro quartel da nossa Constituição. Pelo contrário, seus 25 anos simbolizam uma rara oportunidade de externarmos, com mais vigor ainda, os nossos sentimentos e consciência cívica, sobretudo, num país que, em tão pouco tempo, já contabiliza sua oitava Constituição.

Na coluna da semana passada, o professor e ministro Gilmar Ferreira Mendes[2] ressaltou, com admirável concisão e densidade, que a Constituição Federal deve ser valorizada, e seus 25 anos devem ser celebrados. Nesse breve espaço de tempo, anotou o professor Gilmar, a Constituição foi muito bem testada, mostrando toda sua força e desenvoltura para lidar com crises internas e externas. Seja por sua origem democrática, resultado da intensa participação dos movimentos sociais e do povo, seja por sua força normativa, robustez e longevidade, a Carta de 1988 tem conseguido regular institucionalmente situações de extrema gravidade política, jurídica e econômica, a exemplo do impeachment do ex-presidente Fernando Collor.

Nossa história constitucional, no entanto, vai bem além desse período. O Brasil, como Estado constitucional, constituiu-se há quase 200 anos, já que, desde 1824, nossa vida política e institucional orbita no eixo de uma Constituição. 

Por isso, mesmo estando no auge dessa fase comemorativa, não dedicarei a presente reflexão ao primeiro (de muitos, assim espero!) quartel da vigente Constituição. Dentro do contexto de pensar-se a Constituição no tempo, isto é, sob a perspectiva de uma história constitucional, acho que poderia prestar melhor homenagem à nossa Carta Magna, ao adotar um marco temporal mais estendido, a fim de suscitar algumas discussões, que, no fundo, relacionam-se com o aniversário da Constituição, o qual afinal de contas opera a feliz síntese entre direito e história. 

De fato, direito e história têm uma relação íntima, mas pouco tematizada no âmbito da práxis judicial e política. Como a história poderia ajudar o Direito? Qual o papel que a história deveria exercer na argumentação jurídica? Quais são os usos da história de que o Direito poderia legitimamente se valer? A história deveria ter um peso determinante no conteúdo de uma decisão jurídica/judicial ou política/legislativa? Naturalmente, este não seria o espaço apropriado para aprofundar o tópico, em todos os seus aspectos, mas algumas ideias podem ser apresentadas. 

Tais questionamentos foram estimulados, devo confessar, pelo voto do ministro Celso de Mello sobre o cabimento dos Embargos Infringentes, na Ação Penal 470[3], além de algumas circunstâncias a ele ligadas. Com efeito, no dia daquela sessão plenária, realizada em 18 de setembro de 2013, o decano do Supremo Tribunal Federal recordou a feliz coincidência de que a Constituição de 1946, que dissolveu a ordem autocrática do Estado Novo e restaurou a democracia no Brasil, completava 67 anos de promulgação. Ele congratulou o discurso do então presidente do STF, ministro José Linhares, que, na primeira sessão da Corte sob a égide da nova Constituição, enfatizara o alto significado da supremacia do Direito, do rule of law e do respeito incondicional às liberdades fundamentais na prática jurisdicional do STF. 

O voto do ministro Celso centrou-se na ideia de que o Supremo “sempre se caracterizou como solo historicamente fértil em que germinou e se desenvolveu a semente da liberdade”. Ao citar o professor João Mendes de Almeida Júnior, que se tornara juiz do STF em 1917, ele sustentou que as lições de João Mendes, datadas de 1911, guardavam ainda plena atualidade, pois não se poderia entender hoje, como não se podia há um século, o processo penal senão “como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica do réu”. 

De seu voto, gostaria de apontar dois aspectos, que me pareceram bem interessantes, e que, talvez, guardem relação entre si: primeiro, a história constitucional brasileira é bem anterior à década de 80; segundo, o uso da história na argumentação jurídica com o fim de reforçar ou legitimar argumento jurídico determinado.

Quanto ao primeiro, adotarei parcialmente a estratégia — “coincidência de datas” — do ministro Celso de Mello, o que, em certo sentido, conduzirá nossas considerações ao segundo aspecto. Este sábado, por sinal, 12 de outubro, tem uma dimensão constitucional importantíssima na história brasileira. Não se trata apenas do “Dia das Crianças”, nem do dia da celebração de Nossa Senhora Aparecida, a “Padroeira do Brasil”. Foi o dia em que nasceu o imperador do Brasil, o príncipe Pedro de Alcântara, no ano de 1798. Foi, também, no 12 de outubro, do não tão longínquo ano de 1822, que esse mesmo príncipe foi, “por aclamação unânime dos povos”, reconhecido “Imperador Constitucional do Brazil e seu Defensor Perpetuo”, dado que, nesse momento, teria sido fundada a Monarquia Constitucional, obtendo o imperador a legitimação popular do exercício do poder político[4]. Tamanha foi a relevância social e política desse título, que, durante boa parte da década de 1820, o 12 de outubro foi a data política mais importante, suplantando, inclusive, o 7 de setembro de 1822[5].

O dia 11 de outubro, de igual modo, representa uma data de significativa relevância para nossa história constitucional. Não me refiro ao 11 de outubro de 1881, data de nascimento de Hans Kelsen, jurista e filósofo reconhecido pela elaboração da “Teoria Pura do Direito”, sua obra-prima, e pela criação do controle concentrado da constitucionalidade, ao elaborar o Projeto de Constituição da Áustria, que deu origem à Constituição Austríaca, de 1º de outubro de 1920 (“Constituição de Outubro”), na qual foi instituído o Tribunal Constitucional. O modelo austríaco de controle concentrado, como sabemos, influenciou todas as Constituições do Brasil, a começar pela de 1934[6]. Daí em diante, foi progressivamente ampliado e consolidado, a ponto de muitos autores afirmarem que o controle concentrado da constitucionalidade das leis configura a principal modalidade de fiscalização em nosso sistema constitucional vigente[7].

Maior relevância tem para a história constitucional brasileira o 11 de outubro do ano de 1890, que, de certa forma, ligou-se à posterior influência de Kelsen no direito brasileiro. Na esteira da “Constituição Provisória”, estabelecida pelo Decreto 510, de 26 de junho de 1890, o Governo Provisório Republicano editou o Decreto 848, que “Organiza a Justiça Federal”, dando o passo decisivo à introdução do controle judicial da constitucionalidade das leis no sistema brasileiro, que posteriormente foi ratificado pela Constituição de 1891[8]. O mecanismo do controle de constitucionalidade, por sua vez, veio a ressignificar completamente o princípio da separação dos poderes na tradição constitucional brasileira, redesenhar o equilíbrio entre os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, além de redefinir os rumos dos conflitos e tensões ligados à autoridade do exercício do poder político. Tema, por sinal, ainda carente de maior estudos.

De fato, antes de inaugurado o regime republicano, isto é, na vigência da ordem constitucional imperial, era forte a desconfiança que a população nutria contra a classe dos juízes, que gozavam de péssima reputação social. Tecnicamente despreparados, corruptos, nepotistas, arbitrários, subservientes, eis algumas das adjetivações mais comuns que se lhes imputavam, o Poder Judicial foi concebido, na prática, com status inferior em relação aos demais poderes. Com efeito, naquele contexto, ao qual se somavam a influência do constitucionalismo francês e a herança jurídico-cultural portuguesa, na Constituição do Império prevaleceu a concepção de que o Judiciário deveria ser um poder neutro do ponto de vista político, e os juízes deveriam ocupar-se tão-somente da literal aplicação do texto da lei, eliminando-se qualquer margem de discricionariedade judicial. A prerrogativa de exercer o controle da constitucionalidade das leis – e precisamos reter este detalhe em mente — antes de haver sido omitida ou fortuitamente esquecida, foi, portanto, ao Poder Judiciário negada.


 

 

E é preciso, ainda, dizer que tal recusa, consistente em proibir-se a discricionariedade judicial no ato de aplicação da lei, não suprimiu a possibilidade de existência do controle da constitucionalidade das leis no sistema imperial. Existiu, sim, o controle das leis, a fim de se manter a integridade e superioridade da Constituição do Império. A prática do controle, entretanto, não era realizada pelo Judiciário, nem mesmo pelo Supremo Tribunal de Justiça, seu órgão máximo, mas pelo Poder Legislativo e Executivo/Moderador[9].

Com a edição do Decreto 848, de 1890, tentaram-se criar as condições normativas para promover substancial ruptura dessa concepção do Poder Judiciário, que, a partir de então, passaria a ter um efetivo papel político e uma missão institucional muito mais relevante, conforme podemos extrair da leitura da Exposição de Motivos ao Decreto 848, de autoria do então ministro de Justiça Campos Salles[10]:

Mas, o que principalmente deve caracterisar a necessidade da immediata organização da Justiça Federal é o papel de alta preponderancia que ella se destina a representar, como orgão de um poder, no corpo social.

A magistratura que agora se installa no paiz, graças ao regimen republicano, não é um instrumento cego ou mero interprete na execução dos actos do poder legislativo. Antes de applicar a lei cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção, si ella lhe parecer conforme ou contraria á lei organica.

O poder de interpretar as leis, disse o honesto e sabio juiz americano, envolve necessariamente o direito de verificar se ellas são conformes ou não á Constituição, e neste ultimo caso declarar que ellas são nullas e sem efeito.

O Decreto 848, no plano jurídico-formal, implementou um novo Poder Judiciário, que deixava de ser simples órgão vinculado ao Executivo, do que se queixavam muitos juristas e políticos do Império. Em tais bases, acelerara-se o processo de transformação do Poder Judiciário em poder independente de fato, investido com a competência de não só aplicar a letra da lei, mas, sobretudo, de interpretá-la e, além disso, interpretar a própria Constituição, sendo-lhe, inclusive, permitido rejeitar a aplicação de qualquer lei incompatível com a Constituição. Em consequência, foi atribuída ao Judiciário uma prerrogativa de inegável índole política e de grande relevância institucional, o controle judicial da constitucionalidade das leis[11].

Um ligeiro olhar sobre a história constitucional brasileira, por meio de uma perspectiva temporal estendida e com algumas rápidas “pinceladas” de datas, autoriza-nos, desde logo, perceber que o constitucionalismo brasileiro enfrentou, desde sempre, problemas relativos à autoridade de dizer o direito em última instância, o que a própria história da introdução do controle judicial de constitucionalidade nos revela. Essa em si já seria uma importante razão para não esquecermos que nossos desafios constitucionais vão além do ano de 1988, de sorte que toda consciência história pré-88 é relevante e edificante.

Nesse ponto, passando ao segundo aspecto proposto, com referência à citada ação penal, farei uma brevíssima consideração sobre os usos da história na argumentação jurídica.

O voto do ministro Celso de Mello, do ponto de vista histórico, assumiu um pressuposto problemático, que redundou num discurso constitucional evolutivo, linear e contínuo da história do STF, desde sua fundação. De fato, ponderou o ministro, o STF “sempre se caracterizou” como instância de defesa da liberdade, o que nos permite inferir, das entrelinhas, sua implícita crença na ideia de progresso, que teria permeado a história do STF[12]. O uso da história na sua argumentação jurídica, ao que tudo indica, destinou-se a reforçar e legitimar a solução jurídica para o caso específico, de modo que a história, ao fim, aparentou apenas coroar sua conclusão, quase que com ares professorais.

Sobre esse mesmo julgamento, o jurista e membro da Comissão Nacional da Verdade, José Paulo Cavalcanti Filho, defendeu uma visão completamente distinta da história do STF[13], isto é, passou-nos a impressão de um órgão condescendente e complacente com o status quo e destituído de independência para proferir julgamentos imparciais. Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, no mesmo dia em que ocorreu o aludido julgamento, com o sugestivo título “Toga no chão”, ele recordou episódios da vida do parlamentar e ministro Adaucto Lucio Cardoso, quem não se curvava à força dos interesses pessoais ou dos homens do poder. Repleto de “coragem cívica”, o então ministro do STF agiu contra a estrutura legal vigente, mas em favor da Constituição e da democracia. Foi voto isolado. Não mais se sentiu à vontade entre seus pares, a quem disse envergonharem o Supremo, e jogou sua toga no chão ou no curul. Em seguida, deixou o Supremo.

Na entrevista concedida no dia seguinte à decisão de Celso de Mello[14], o jurista pernambucano, observou que, no Brasil, historicamente se construiu um modelo de recursos que eterniza os julgamentos e inviabiliza a administração real da justiça. Por conseguinte, o respeito formal a tal modelo, na linha perfilhada pelo STF, no julgamento da AP 470, implicou reiterar uma estrutura legal historicamente consolidada que vem assegurando a impunidade de quem está no poder, com nítido favorecimento de certos grupos de elite. Em determinadas situações concretas, ele afirmou, a estrutura legal funciona como “desculpa formal”, em consequência, com sua decisão, o STF não se mostrou um verdadeiro guardião da Constituição e de valores republicanos.

O interessante, aqui, é constatar que o uso da história, com o propósito de firmar certo posicionamento jurídico (cabimento ou não dos embargos infringentes), conduziu a soluções opostas. Não é por mera coincidência, pois, que tanto historiadores, quanto juristas têm analisado comparativamente suas respectivas funções e percebido muitas semelhanças[15].

Não obstante, no caso do jurista José Paulo, há outra especificidade do uso da história. Cuida-se de sua perspectiva crítica, embora não de todo evidente, que oportuniza combater sutilezas e estratégias próprias do discurso jurídico, que, não raro, se apoia na sua peculiar formalização para tangenciar o peso político das decisões judiciais[16]. O uso crítico da história na argumentação jurídica, nessa perspectiva, permite desnudar estratégias legitimadoras e opções ideológicas, que tendem a se infiltrar subliminarmente no ato decisório, através da consolidação de uma imagem segundo a qual as decisões judiciais são puramente guiadas pela razão técnica e científica, independentemente dos conflitos subjacentes.

Ora um uso crítico da história, ora um uso legitimador da história, ora o mesmo uso da história, com resultados opostos. Diante das incertezas e resultados do uso da história, parece legítimo, então, perguntar qual seria o papel da história no direito? Ou será que deveríamos defenestrá-la do Direito?

O uso da história, longe de ser escorraçado da argumentação jurídica, deve ser, ao revés, intensificado e aprimorado, porém cautelas são necessárias.

É que também sobre a história existe uma disputa, não raro, uma luta intensa fomentada por interesses políticos, econômicos etc[17]. De fato, esquecimento e memória são ferramentas utilíssimas e efetivamente manipuladas, para seletivamente se fazer ou compor-se uma determinada narrativa da história, de acordo com orientações e posições que se pretendam sustentar, em determinado argumento jurídico ou político[18].

A história do Direito corresponderia a um instrumento destinado à melhor compreensão das tradições e dos percursos que guiaram nossos passos até o presente, segundo Thomas Duve [19], atual diretor do Instituto Max Planck para História do Direito Europeu, em Frankfurt. A história não deve servir à satisfação de agenda políticas determinadas, conforme aconteceu com a história do Direito europeu, que procurou conceber um conceito de “Europa” e construir uma identidade, com uma tradição, uma cultura, um direito e uma história comum.


 

 

Cumpre sua função a história, quando abre perspectivas novas de análise, quando nos permite olhar por horizontes mais estendidos e perceber fenômenos, dimensões, circunstâncias e detalhes que, de outro modo, nos escapariam ao conhecimento, quando problematiza e questiona mitos e narrativas tradicionais consolidadas por força de sua repetição e inércia. É ela que nos ajuda a compreender aonde, como e porque chegamos. Nesse sentido, o uso da história no direito adquire uma função extremamente crítica, já que sua função não seria propriamente olhar para o passado e proclamar a decisão a ser tomada no presente, com os olhos voltados para um futuro antecipável, certo e determinado.

Mais do que isso, a história no direito, volta e meia, deverá voltar-se contra a própria história tal como utilizada na argumentação jurídica, já que, nesse caso particular, consoante apontado acima, o uso da história é eminentemente retórico e legitimador, de modo que a história será seletivamente lembrada e esquecida de modo a elaborar-se a melhor versão ou narrativa para a defesa de uma pretensão jurídica.

É fato, contudo, que atribuir normatividade à história representa, antes de mais nada, uma má-compreensão da própria história, em seu estatuto epistemológico. A história não decide o futuro; aliás, há muito aquela concepção ciceroniana “historia magistra viatae” já não vigora mais entre os historiadores[20]. Porém, na argumentação jurídica, todas as razões, independentemente de sua natureza, são utilizadas com um fim preciso.

O limite, portanto, para o uso retórico da história na argumentação jurídica será posto pelo uso crítico da história no Direito. Isto é, desconstrução de narrativas lineares e progressistas, questionamentos de eventuais beneficiados ou prejudicados com certas decisões ou jurisprudência, problematização de fatos, versões ou argumentos tidos por incontroversos ou verdadeiros, e assim por diante. Mas, vejamos, a história deve servir-nos para enriquecer-nos com possibilidades e ângulos diferentes, a fim de melhor podermos compreender e refletir sobre o presente e de em melhor posição encontrar-nos para a tomada de decisões, que se projetam para o futuro. Ela não substitui o direito, tampouco o historiador se sentará no lugar do juiz ou lhe vestirá a toga.

A história é, pois, menos solução e mais problematização; é mais apta a abrir discussões do que a estabelecer conclusões; é mais desconstrução e crítica, do que propriamente solução e certeza. O próprio passado não é imutável, no sentido de que a história está em permanente construção e reconstrução sobre aquilo que aconteceu.

Em conclusão, e já encerrando esta reflexão já bastante prolongada, a pretexto dos 25 anos da Constituição de 1988, quero dizer que a história constitucional do Brasil não deve se fechar numa perspectiva temporal tão pequena, afinal já temos um aprendizado de quase 200 anos de constitucionalismo. Quando ampliamos nosso horizonte de observação, percebemos que alguns dos problemas atuais têm sido confrontados há décadas ou séculos, a exemplo do eterno conflito entre os Poderes Judiciário e Legislativo, que se evidencia pela história brasileira do controle da constitucionalidade. Não que a solução esteja prefigurada no passado, e a história possa resgatá-la ensinando-nos o que fazer no futuro. Entretanto, ao viabilizar o conhecimento do passado, a história abre-nos perspectivas plurais, de modo que possamos ver menos essências e mais contingências, bem como aumentar a responsabilidade das nossas decisões no presente que repercutirão no futuro.

[1] Cf. CONTINENTINO, Marcelo Casseb. A Constituição é aprendizagem, assim como os filhos. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-out-06/observatorio-constitucional-constituicao-antes-tudo-aprendizagem [5 de outubro de 2013].

[2] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Celebremos os 25 anos da Constituição Federal! Revista Eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em: www.conjur.com.br/2013-out-05/observatorio-constitucional-celebremos-25-anos-constituicao-federal [5 de outubro de 2013].

[3] Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AP_470__EMBARGOS_INFRINGENTES.pdf [5 de outubro de 2013].

[4] Cf. BRASIL. Coleção de decretos, cartas e alvarás de 1822. Parte II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887, p. 59-61.

[5] Cf. KRAAY, Hendrik. The Invention of Sete de Setembro, 1822-1831. Almanack Braziliense. São Paulo: n. 11, Mai/2010, p. 62-71.

[6] Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 339.

[7] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Direito fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 189-216. Em sentido contrário, defendendo que o controle difuso é o mais adequado à tradição constitucional brasileira, dentre outros, vide: CARVALHO NETTO, Menelick de. Controle de constitucionalidade e democracia. In: Constituição e Democracia (Org. Antônio G. Moreira Maués). São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 215-232.

[8] Cf. BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, êsse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 9-14.

[9] Sobre o tema do controle da constitucionalidade no Império, dentre outros, vide: VILANOVA, Lourival. A dimensão política nas funções do Supremo Tribunal Federal. In: Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Editora da UnB, 1982, p. 25-45; MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 366-373; LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos: conselho de estado no Brasil-império. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 198-205.

[10] BRASIL. Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil (Décimo Fascículo, de 1 a 31 de outubro de 1890). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p. 2737-2738.

[11] Tamanho era o ímpeto da mudança, que a parte final desse Decreto trazia uma disposição bem curiosa, que evidenciava inequivocamente a iniciativa de romper-se com o modelo constitucional europeu para aproximar-se o sistema brasileiro do norte-americano. Cuidava-se do art. 386, que alçava o direito e a jurisprudência dos Estados Unidos da América à condição de fonte normativa subsidiária, no Brasil. Eis o inteiro teor do artigo: “Art. 386. Constituirão legislação subsidiaria em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e commercial, não sendo contrarias ás disposições e espirito do presente decreto. Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações juridicas na Republica dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity, serão tambem subsidiarios da jurisprudencia e processo federal”.

[12] A relação entre progresso, história e direito constitucional/internacional é criticamente explorada pelo professor George Galindo em: GALINDO, George. Constitutionalism forever. Finnish Yearbook of International Law: Vol. 21, 2010, p. 137-170.

[13] Cf. CAVALCANTI FILHO, José Paulo. Toga no chão. Folha de S.Paulo: Opinião, 18/09/2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/09/1343514-jose-paulo-cavalcanti-filho-toga-no-chao.shtml [5 de outubro de 2013].

[14] A entrevista está disponível em: http://radiojcnews.ne10.uol.com.br/2013/09/19/juristas-discordam-sobre-o-resultado-do-julgamento-do-mensalao/ [5 de outubro de 2013].

[15] Dentre outros, vide: GINZBURG, Carlo. Il giudice e lo storico. Milano: Feltrinelli, 2006, p. 16 e ss, p. 33 e ss; CALAMANDREI, Piero. Il giudice e lo storico. Milano: Giuffrè, 1939.

[16] Cf. HESPANHA, António Manuel. Storia delle istituzioni politiche. Trad. Adelina Aletti. Milano: Jaca Book, 1993, p. 28-32.

[17] Cf. DUVE, Thomas. European Legal History – Global Perspectives. Working paper for the Colloquium ‘European Normativity – Global Historical Perspectives’ (Max-Planck-Institute, September, 2nd – 4th, 2013). Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2292666 [5 de outubro de 2013].

[18] Em estudo sobre a história do mandado de injunção, pretendi mostrar, por exemplo, que a história foi seletivamente utilizada pelo ministro Moreira Alves, a fim de fundamentar seu voto no MI n.º 107 QO/DF. Cf. CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Uma reflexão histórica sobre o mandado de injunção e a eficácia subjetiva das decisões” In: Mandado de Injunção: Estudos sobre sua Regulamentação (Coord. Gilmar Ferreira Mendes et ali.). São Paulo: Saraiva, 2013, p. 57-94.

[19] Para o professor Duve (Op. cit.), a disciplina de história do direito europeu teve seu desenvolvimento ligado à agenda política e econômica da época, a qual a atenção dos europeus estava voltada ao processo de unificação europeia. Com uma releitura crítica historiografia europeia, Thomas Duve ressaltou o uso finalístico da história do direito, no caso da história do direito europeu, que visava a atender à agenda política do presente, chegando ao ponto de formular uma noção de “Europa”, de direito europeu, que seria produto de uma cultura europeia comum, com existência histórica própria e, portanto, justificaria o projeto da comunidade europeia.

[20] Cf. KOSELLECK, Reinhart. Historia magistra vitae: the dissolution of the topos into the perspective of a modernized historical process. Future Past (on the semantics of historical times). Transl. Keith Tribe. New York: Columbia University, 2004, p. 26-42.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

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