Diário de Classe

Após 25 anos de Constituição, o que há para ser feito?

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12 de outubro de 2013, 8h00

Spacca
No último sábado (5/10), a Constituição de 1988 completou um quarto de século de vigência. Um acontecimento alvissareiro, sem dúvida alguma. Afinal, trata-se do maior período de estabilidade institucional, dentro de um regime político democrático-republicano, vivenciado pela comunidade política brasileira. Antes, tivemos a experiência de 1946 a 1964 — prato cheio para quem se impressiona com essas coincidências numéricas… entre 46 e 64, basta inverter a posição dos algarismos — que, do ponto de vista político, não foi tão estável assim: o primeiro presidente dessa nova “era democrática” foi um militar, eleito por uma eleição de fachada (o Estado de Emergência havia sido revogado apenas dois dias antes do pleito que elegeu o Marechal Dutra como presidente bem como os constituintes). Além disso, tivemos um presidente eleito pelo voto popular, mas ex-ditador, que cometeu suicídio no final de seu mandato. Por fim, depois do período Kubistchek, tivemos a eleição de Jânio e Jango e o desfecho da história é de todos conhecido: o país mergulharia em 20 anos de sucessivos governos militares convivendo com embargos ao Congresso Nacional e suspensão de direitos civis e políticos, além da perseguição — por parte do Estado — de pessoas consideradas pelas instâncias de governo como “subversivas”.

Não que o período 1988-2013 tenha sido isento de desafios que abalaram a estabilidade das instituições democráticas e republicanas. Logo durante o primeiro mandato de um presidente civil, verdadeiramente eleito pelo voto popular, a comunidade política brasileira teve que enfrentar um processo de impeachment de um presidente da República. E o enfrentamos dentro dos sólidos marcos institucionais estabelecidos pela Constituição.

Crises políticas graves foram enfrentadas, também, pelos governos FHC e Lula. O primeiro, por conta da situação que envolveu a chamada “emenda da reeleição” e o segundo, em face das questões derivadas do “mensalão”. De todo modo, ambas as crises foram enfrentadas a partir da Constituição de 1988 e da discussão sobre a sua concretização.

Isso sem falar nos sucessivos escândalos de corrupção envolvendo os mais diversos níveis de governo e instâncias federativas que encandeceram o debate sobre a improbidade administrativa e sua tutela jurídica. Tutela esta que foi sensivelmente expandida pela Constituição de 1988 e devidamente aparelhada a partir da configuração de um Ministério Público independente e com possibilidade de articular judicialmente as medidas necessárias para defender a boa administração pública.

Tivemos, ainda, que superar as agruras derivadas da instabilidade econômica e que, de algum modo, a ordem constitucional pós-1988 ajudou-nos a vencer. Sem a estabilidade política e o funcionamento regular das instituições e processos democráticos, dificilmente o fantasma da inflação teria sido debelado.

Na última década, pudemos assistir — em face da garantia da estabilidade política somada, agora, à estabilização econômica — um progressivo avanço em direção à redução dos índices de desigualdade material a partir da inclusão de setores menos favorecidos no mercado de consumo. Agora, é possível dizer que, além de uma democracia de massas, somos também uma sociedade de consumo de massas. O aumento do acesso ao sistema de créditos e financiamentos possibilitou uma maior inserção também no âmbito da formação acadêmica, fazendo com que um número muito maior de pessoas chegassem até as cadeiras das universidades. Assim, além de uma democracia de massas e de uma sociedade de consumo de massas, vivenciamos, também, um período de educação superior de massas.

Mas, sem maiores projeções críticas a respeito daquilo que lancei acima, é possível afirmar que ainda há muito a ser feito. Principalmente com relação à solidificação daquilo que Pablo Lucas Verdú chamava de sentimento constitucional. Com efeito, sem embargo dos 25 anos de Constituição, ainda temos dificuldades para lidar com temas de Direito Constitucional. Principalmente quando pensamos na necessidade de preservação da ordem constitucional contra investidas afoitas e passionais que pretendem albergar algum tipo de clamor popular.

Quero dizer, basta que uma fagulha de revolta seja acessa no seio de nossa sociedade para que uma série de autoridades se pronunciem no sentido de defender assembleias constituintes parciais, mini-constituintes etc… que possuem a finalidade de efetuar uma reforma constitucional ampla e com dificuldades menores do que aquelas observadas para alteração do texto constitucional pelo processo formal de emenda. Uma tal defesa é assentada na justificativa de que a medida seria necessária para poder levar adiante aquilo que a sociedade brasileira reivindica a título de reforma política, por exemplo.

Uma Constituição, todavia, é muito mais do que o seu texto. Ela comporta também uma dimensão de sentimento, de fundação de uma comunidade política, que permanece ligada pelos fios que foram conectados durante sua formação e que continua sendo retroalimentada no momento de sua concretização.

Claro que seu texto também é importante. Na verdade, o próprio texto demarca os limites da atuação de todos os intérpretes da Constituição. Todavia, o sopro que dá vida e sentido à Constituição vem do sentimento constitucional que a envolve. É esse sentimento constitucional que impulsiona a lógica dos pré-compromissos que estão na base do direito constitucional. Ou seja, com Stockton, é possível dizer que “Constituições são correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi”. São, portanto, restrições que os próprios autores políticos estabelecem para si e para as gerações futuras, a fim de garantir um governo que esteja sob o direito e não sobre ele. Como assevera Cass Sunstein: “as estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam servir para superar a miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”[1].

É certo que a Constituição de 1988 é coberta por bênçãos mistas. Se por um lado ela representa a Carta de direitos mais generosa de nossa história, por outro ela é fruto de um processo político de acomodação das reivindicações que pululavam dos movimentos sociais do início da década de 1980 através da lógica do chamado Centrão.

Nesse particular, concordo com a interpretação oferecida por Marcos Nobre, apresentada em seu livro sobre aquilo que ele nomeou como “revoltas de junho”. Segundo o filósofo da Unicamp, o processo constituinte representa o momento de solidificação de uma lógica política que se caracteriza por efetuar uma blindagem contra as demandas sociais verdadeiras, a partir de um processo de acomodação de interesses manobrado por maiorias parlamentares. Ou seja, as crises sociais são enfrentadas pelas maiorias políticas de modo a evitar o atendimento das demandas sociais. Nas palavras do autor: “a primeira crise enfrentada por essa blindagem se deu durante a Constituinte, quando essa unidade forçada deu de cara com movimentos e organizações sociais, sindicatos e manifestações populares que não cabiam nos canais estreitos da abertura política. Sob o comando do chamado Centrão, bloco suprapartidário que contava com maioria de parlamentares do PMDB, o sistema político encontrou uma maneira de neutralizá-los, apostando na ausência de uma pauta unificada de um partido (ou frente de partidos) que canalizasse as aspirações mudancistas”.[2]

O próprio Marcos Nobre nomeará — em “homenagem” ao partido que capitaneou a transição para a democracia — essa forma de blindagem do sistema político contra a sociedade do peemedebismo.

As raízes do pemedebismo estão assentadas ainda no regime militar, principalmente a partir do modo como foi levado adiante o processo de abertura e redemocratização. Posteriormente, esse processo afirmou-se de forma clara durante a constituinte e permaneceu, não sem transformações, em todos os governos posteriores. Um detalhe adicional interessante: para Nobre, o motivo difuso que pairava sobre todas as manifestações que formaram o caleidoscópio das revoltas de junho seria um ataque ao peemedebismo e ao modo de fazer política por ele instalado.

E, de fato, a lógica que preside o peemedebismo é tão forte que, por vezes, o impeachment do presidente Collor é retratado não como uma consequência das manifestações das ruas, mas pela dificuldade que o então presidente tinha para formar maiorias no Congresso Nacional. Ou seja, o presidente caiu não porque “o povo quis”. Ao contrário, seu tombo teve lugar em face de não ter ele competência para se acomodar dentro da lógica do peemedebismo, garantindo assim “condições de governabilidade”. O exemplo de Collor foi decisivo para quem veio depois. Com efeito, os governos posteriores aderiram, em algum momento, ao peemedebismo. Nos termos propalados por Nobre: “tanto o ‘neoliberalismo’ do período FHC como o que se chama de ‘lulismo’ são figuras do peemedebismo, são configurações mais avançadas dessa cultura política inerentemente conservadora. Mas são também momentos e figuras do social-desenvolvimentismo que se cristalizou a partir do segundo mandato de Lula. Se a própria consolidação do social-desenvolvimentismo só se deu acoplada a certa instrumentalização do peemedebismo, isso acabou levando também a tornar o peemedebismo algo de ‘normal’ e ‘aceitável’, algo de ‘justificável’ em vista da conquista de avanços sociais”.[3]

Coincidentemente — ou não! — o ex-presidente Lula, em evento promovido pela OAB cuja temática versava sobre os 25 anos da Constituição de 1988, foi aplaudido de pé depois de um discurso que louvou a Constituição e a sua importante contribuição para a garantia de estabilidade institucional pós-1988 (veja aqui notícia da ConJur que repercutiu o evento). Todavia, é de todos conhecido que o mesmo Lula, bem como os parlamentares da bancada do PT, votou contra a Constituição quando da aprovação de seu texto.

De todo modo, é preciso um esforço para não se confundir alhos com bugalhos. O fato de a Constituinte ter ventilado, em algum grau, a lógica do sistema peemedebista, não faz com que a Constituição de 1988 tenha sua legitimidade comprometida. Ao contrário, esses 25 anos fizeram por assentar, ainda mais, o alto grau de legitimidade que o documento promulgado em 5 de outubro de 1988 possui.

As contribuições democráticas são notáveis. Um número expressivo de direitos consagrados e garantias instrumentais disponibilizadas aos cidadãos para defendê-los em juízo. Por outro lado, houve um substancioso incremento institucional de proteção ao sistema democrático, seja pela cristalização de importantes funções em torno do Ministério Público; seja pela previsão efetiva de uma Defensoria Pública que defenda os interesses dos necessitados, quer no âmbito federal ou estadual. Também merece destaque o aumento do acesso à jurisdição constitucional e a democratização dos instrumentos de controle de constitucionalidade.

Em suma, o que temos a fazer nos próximos 25 anos é solidificar o sentimento constitucional a partir da luta intransigente pela concretização dos direitos, bem como da luta pela preservação das instituições democrático-republicanas frente à lógica predatória que rege a política pemedebista. Mas essas lutas devem ser travadas no campo da ação social. Nunca deveremos permitir que discursos de ocasião envenenem nosso sentimento constitucional, possibilitando o esboroamento da rede de pré-compromissos que foi edificada pela Constituição de 1988. Assim, o que há para ser feito diz respeito mais a uma afirmação da Constituição que temos do que pelo ajuste de novos conteúdos ao texto. Reformas constitucionais?! Somente se efetuadas dentro do sistema de alteração formal do texto, previsto pela própria Constituição.

E, à Constituição de 1988, vida longa e próspera!


[1] Ambos citados por Elster (Cf. Elster, Jon. Ulisses Liberto. Estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: Unesp, 2009, p. 120). Aliás, é importante anotar, que foi Elster quem melhor trabalhou a aproximação entre a idéia de pré-compromisso que aparece na Odisséia de Homero e as modernas Constituições, principalmente aquela que representa a consagração do constitucionalismo norte-americano. Com efeito, no épico de Homero, Ulisses, durante seu regresso a Ítaca, sabia que enfrentaria provações de toda sorte. A mais conhecida destas provações é o “canto das sereias” que, por seu efeito encantador, desviava os homens de seus objetivos e os conduzia a caminhos tortuosos, dos quais dificilmente seria possível voltar. Ocorre que, sabedor do efeito encantador do canto das sereias, Ulisses ordena aos seus subordinados que o acorrentem ao mastro do navio e que, em hipótese alguma, obedeçam qualquer ordem de soltura que ele venha a emitir posteriormente. Ou seja, Ulisses sabia que não resistiria e, por isso, cria uma auto-restrição para não sucumbir depois. Do mesmo modo, as Constituições poderiam ser vistas como as correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou monocráticas). Todavia, Elster revisitou essa sua construção e a entende, atualmente, apenas parcialmente correta. Isso por uma série de questões que não cabem serem aqui analisadas. Para efeitos do que aqui pretendo encaminhar, entendo continuar correta a idéia de pré-compromissos constitucionais tal qual Elster havia descrito em Ulisses and the Sirens.
[2] Nobre, Marcos. Choque de Democracia: Razões da Revolta. São Paulo: Companhia das Letras, Kindle Edition, 2013, pos. 69.
[3] Nobre, Marcos. op., cit., pos. 522.
 

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